O feminismo através da História
Tradução de Amanda Soares de Melo
Por Ana de Miguel
Que o feminismo existe desde sempre, pode-se afirmar em
diferentes sentidos. No sentido mais amplo do termo: sempre que as mulheres,
individual ou coletivamente, queixaram-se do seu destino injusto e amargo sob o
patriarcado e reivindicaram uma situação diferente, uma vida melhor. No
entanto, nesse ensaio abordaremos o feminismo de uma forma mais específica:
trataremos dos distintos momentos históricos em que as mulheres vieram a
articular, tanto na teoria como na prática, um conjunto coerente de
reivindicações e organização para consegui-las [1].
Nesse percurso pela história do movimento feminista
dividiremos a exposição em três grandes blocos: o feminismo pré-moderno, em que
se apresenta as primeiras manifestações de “discussões feministas”; o feminismo
moderno, começando com o trabalho de Poulain de La Barre e os movimentos de mulheres e feministas da
Revolução Francesa, que ressurgirá com força nos grandes movimentos sociais do
século XIX e, por último, o feminismo contemporâneo, em que se analisa o
neofeminismo da década de 60-70 e as últimas tendências. Esse último, ficará para o próximo ensaio.
1. Feminismo pré-moderno
O processo de recuperação da memória histórica do feminismo,
apenas começou. A cada dia que passa, pesquisas acrescentam novos nomes à
genealogia do feminismo e novos dados aparecem ao redor da longa luta pela
igualdade sexual. Em geral, pode-se afirmar que foram nos períodos de esclarecimento
e transição para formas sociais mais justas e libertárias que surgiu com mais
força a discussão feminista.
É possível rastrear sinais dessa discussão sobre os mesmos
princípios, desde a Antiguidade Clássica. Os sofistas produziram um pensamento
de igualdade entre os sexos, embora, como observado por Valcárcel, a reação
patriarcal sobreviveu de uma maneira muito melhor: “nas brincadeiras de
Aristófanes, na Política de Aristóteles, na coleção de Platão” [2]. Com tais precedentes ilustres, a
história ocidental foi tecendo minuciosamente –desde a religião, direito, e
ciência- o discurso e a prática que afirmava a inferioridade da mulher em
relação aos homens. Discurso que parecia dividir em dois a espécie humana: dois corpos, duas Razões, duas morais, duas
leis.
O Renascimento trouxe consigo um novo paradigma humano, o da
autonomia, mas que não foi estendido às mulheres. A sobreposição do humano aos
homens permitiu a universalidade do “ideal de homem renascentista”. No entanto,
o culto renascentista pela graça, beleza, sagacidade e inteligência teve alguma
consequência para as mulheres [3]. A importância da educação gerou numerosos
tratados pedagógicos e abriu o debate sobre a natureza e funções dos sexos. Um
importante precedente e marco no feminismo foi a obra de Christine de Pisan, “A
cidade das damas” (1405). Pisan ataca o discurso de inferioridade das mulheres
e oferece uma alternativa para a sua situação, porém, como indica Alicia H.
Puleo, não se pode confundir essas obras com um discurso apologético cultivado
no Renascimento e destinado a agradar as senhoras da época. Esse discurso
elogia a superioridade das mulheres – “o vício é masculino. A virtude é
feminina” – fabricando cartazes de mulheres excepcionais. Como por exemplo, o
tratado de Agripa de Nettesheim dedicado à regente dos Países Baixos em 1510, de
nobilitate et praecellentia foeminei sexus [4]. Apesar dessas diferenças, deve-se
aguardar o século XVII para a formulação da igualdade.
A cultura e a educação eram demasiado escassas e, logicamente,
foi de outra índole as ações que envolveram mais mulheres e provocaram uma
maior repressão: a relação das mulheres com inúmeras heresias, como as milenaristas. Guillerme de Bohemia, ao
final do século XIII, afirmava que a redenção de Cristo não havia alcançado as
mulheres e que Eva não havia sido salva.
Ele criou uma igreja de mulheres que acolhia tanto as mulheres do povo
como burguesas e aristocratas. A seita foi condenada pela Inquisição, no começo
do século XIV. Embora as posições das doutrinas heréticas sobre a natureza e a
função da mulher fossem confusas, elas conferiam uma dignidade e um escape
emocional e intelectual que dificilmente podia se encontrar em outro espaço
público [5]. O movimento de renovação religiosa que foi a Reforma Protestante
significou a possibilidade de uma mudança no estado da questão. Ao afirmar a
primazia da consciência individual e o sacerdócio universal de todos os
verdadeiros crentes contra uma relação hierárquica com Deus, abria-se as portas
à pergunta feminina: Por quê não nós?
Paradoxalmente, o protestantismo acabou reforçando a
autoridade patriarcal, já que se necessitava de um substituo para a autoridade
enfraquecida do sacerdote e do rei. Por mais que a Reforma concedesse uma maior
dignidade para o papel de mulher-esposa, a figura do Pai se convertia no novo e
último intérprete das Escrituras, o deus-rei da casa. No entanto, como
aconteceu com as heresias medievais e renascentistas, a lógica dessa tese levou
à formação de grupos mais radicais. Especialmente na Inglaterra, a força do
movimento puritano, em meados do século XVII, deu lugar a algumas seitas que, como
os quakers, desafiaram claramente a
proibição do apóstolo Paulo. Estas seitas incluíram mulheres como pregadores e
admitiam que o espírito poderia ser expresso através delas. Algumas mulheres
encontraram uma maneira interessante de mostrar a sua individualidade: “O
espírito poderia induzir uma mulher para o celibato, ou confiar o direito de
seu marido para governar sua consciência, ou indicar-lhe onde deveria acontecer
o culto. Os espíritos tinham pouca consideração pelo respeito às coisas
terrenas do patriarcado; só reconheciam o poder de Deus” [6].
Então, essas seitas foram acusadas de pacto com o diabo. As
acusações frequentes de feitiçarias contra as mulheres individualistas, ao
longo dos séculos e sua posterior queima nas fogueiras, foi o contrapeso
“divino” a quem desafiava o poder patriarcal. Na França do século XVII, os salões começaram
a ser espaços públicos capazes de gerar novas normas e valores sociais. Nos
salões, as mulheres teriam uma notável presença e protagonizariam o movimento
literário e social conhecido como preciosismo.
As preciosas, que declaravam preferir a aristocracia do espírito que a do
sangue, revitalizaram a língua francesa e impuseram novos estilos;
estabeleceram, pois, suas normativas em um terreno que as mulheres raramente
tinham decidido. Para Oliva Blanco, a
especificidade da contribuição dos salões do século XVII ao feminismo é que
“graças a eles a ’querelle féministe’ deixa de ser privilégio de teólogos e
moralistas e passa a ser um assunto de opinião pública” [7].
No entanto, tal como aconteceu
com os sofistas, provavelmente é mais conhecido hoje, a reação patriarcal a
esse fenômeno, reação bem explicitada em obras misóginas como “As mulheres
sábias” de Molière e “La culta latiniparla” de Quevedo.
2. Feminismo Moderno
As raízes iluministas e a Revolução Francesa
Diferentes autoras, como
Geneviève Fraisse e Celia Amorós, concordaram em apontar a obra do filósofo
cartesiano Poulain de la Barre e os movimentos de mulheres e feministas que
tiveram lugar na Revolução Francesa, como dois momentos chaves- um teórico,
outro prático- na construção do feminismo moderno. Assim, o texto de Poulain
“Sobre a igualdade dos sexos” publicado em 1673 – em pleno desenvolvimento do
movimento de preciosas– seria a primeira obra feminista que se concentra
explicitamente em fundamentar as demandas pela igualdade sexual. Fraisse mostra
que essa obra levou a uma verdadeira mudança no estatuto epistemológico da
disputa de "guerra entre os sexos": "a comparação entre o homem
e a mulher deixa o centro do debate, e torna possível uma reflexão sobre
igualdade. "[1].
Enquanto Amorós, encaixa a obra
de Poulain no contexto mais amplo do Iluminismo. Mesmo reconhecendo o caráter
pioneiro e específico da obra, ela forma parte de um continuo que se
caracteriza por universalizar a lógica da Razão, racionalista primeiro e
iluminista depois. Sustenta também que o feminismo como um corpo coerente de
reivindicações e, como um projeto político susceptível de constituir um sujeito
revolucionário coletivo, só pode ser articulada teoricamente a partir de
premissas iluministas: afirmações de que todos os homens nascem livres e iguais
e, portanto, com os mesmos direitos. Embora as mulheres tenham sido deixadas
inicialmente fora do projeto igualitário – tal como aconteceu na referida
França revolucionaria e em todas as democracias do século XIX e boa parte do
XX. Nesse sentido, afirma que o feminismo supõe a efetiva radicalização do
projeto igualitário iluminista. A Razão iluminista, razão fundamentalmente
crítica, possui a capacidade de voltar-se para si e detectar suas próprias
contradições [2]. E assim foi utilizada, pelas mulheres da Revolução Francesa,
quando observaram com espanto como o novo Estado revolucionário não encontrava
contradição alguma em proclamar aos quatro ventos igualdade universal e deixar
sem direitos civis e políticos todas as mulheres.
Na Revolução Francesa vemos
parecer o forte protagonismo das mulheres nos acontecimentos revolucionários,
como também o surgimento de mais contundentes demandas por igualdade sexual. A
convocação dos Estados Gerais por parte do Luis XVI se constituiu no prólogo da
revolução. Os três estados – nobreza, clero e povo – se reuniram para elaborar
suas queixas e apresentar ao rei. As mulheres foram excluídas desse processo e
começaram a elaborar o seu próprio “Cahiers de Doléance”. Com ele, se
autodenominaram “o terceiro Estado do terceiro Estado”, mostrando sua clara
consciência de grupo oprimido e do caráter “interestamental” de sua opressão
[3].
Três meses depois da tomada da
Bastilha, as mulheres parisienses protagonizaram a crucial marcha Versalles e
mudaram o rei para París, onde seria mais difícil evitar os problemas do povo.
Como comenta Paule-Marie Duhet, em sua obra As mulheres e a Revolução, uma vez
que as mulheres tinham estabelecido o precedente de iniciar um movimento
popular armado, não cederiam ao desejo de serem retiradas da vida política [4].
Logo se formou clubes de mulheres, que expressaram efetivamente sua vontade de
participação, um dos mais importantes e radicais foi dirigido por Claire
Lecombe e Pauline Léon: la Société Republicaine Révolutionnaire. Impulsionadas
por seu autêntico protagonismo e reconhecimento público do mesmo, outras
mulheres como Théroigne de Méricourt não hesitaram em defender e exercer o direito de fazer parte do exército.
No entanto, logo se descobriu que
uma coisa era que a República agradecesse e condecorasse as mulheres pelos
serviços prestados e outra era que estaria disposta a reconhecer outra função
para elas, do que mães e esposas (cidadãs). Em consequência, foi
rejeitado o pedido de Condorcet de que a nova República educasse igualmente as
mulheres e os homens, e o mesmo destino teve um dos melhores argumentos
feministas da época, o escrito de 1790 relativo a admissão de mulheres ao
direito de cidadania. Seguramente um dos momentos mais lúcidos na tomada
gradual de consciência feminista das mulheres está na Declaração dos Direitos
da Mulheres e Cidadã, 1791, sua autora foi Olympe de Gouges.
Uma mulher do povo e de
tendências políticas moderadas, que dedicou a declaração a rainha Marie
Antoinette, com quem eventualmente compartilharia o mesmo destino sob a
guilhotina. Este é seu veredito sobre o homem:
“Estranho, cego, dotado de ciências e degenerado, neste século das luzes e da inteligência, em sua ignorância mais crassa, quer mandar como um déspota sobre um sexo que recebeu todas as faculdades intelectuais e pretende desfrutar da revolução e reinvidicar seus direitos de igualdade, para dizer de uma vez por todas” [5].
Em
1792, a inglesa Mary Wollstonecraft redigirá em poucas semanas o famoso “Uma
defesa dos direitos da mulher”.
As mulheres tinham começado a
expor suas reivindicações nos cadernos de queixas e acabam afirmando
orgulhosamente seus direitos. A transformação de séculos anteriores, como muito
bem sintetizado Fraisse, significa a passagem do gesto individual para o movimento
coletivo: a queixa é trazida para a praça pública e toma a forma de um debate democrático:
se converte pela primeira vez de forma explicita em uma questão política
[6].
No entanto, a Revolução Francesa
veio como uma derrota amarga e inesperada para o feminismo. Os clubes de
mulheres foram fechados pelos jacobinos em 1793 e em 1794 se proibiu
explicitamente a presença de mulheres em qualquer tipo de atividade política.
As que haviam tido participam política, fosse qualquer posição ideológica,
compartilharam o mesmo fim: a guilhotina ou o exílio.
As previsões mais pessimistas se
cumpriram amplamente: as mulheres não podiam subir ao palco, mas ao andaime. De
que eram culpadas? A imprensa revolucionária do tempo explica muito claramente:
tinham transgredido as leis da natureza renunciando seu destino como mães e
esposas, querendo ser "estadistas". O novo Código Civil Napoleônico,
cuja influência extraordinária chegou quase aos dias de hoje, é legalmente
responsável por traduzir essa "lei natural".
Século XIX - Feminismo pós-revolução
No século XIX, o século dos
grandes movimentos sociais emancipatórios, o feminismo aparece, pela primeira
vez, como um movimento social de caráter internacional, com uma identidade
autônoma, teórica e organizada. Além disso, ele ocupará um lugar importante
dentro de outros movimentos sociais, o anarquismo e socialismo.
Esses movimentos herdaram em boa
medida as demandas igualitárias do Iluminismo, mas surgiram para dar a resposta
aos problemas que eram gerados pela revolução industrial e o capitalismo. O
desenrolar das democracias censitárias e a industrialização levantou enormes
expectativas a respeito do progresso da humanidade, e se chegou a pensar que o
fim da escassez material estava próximo. No entanto, as esperanças
chocaram frontalmente com a realidade. Por um lado, às mulheres, foram negados
direitos civis e políticos mais básicos, ceifando de suas vidas qualquer
indicio de autonomia pessoal. Por outro, o proletariado –e logicamente, as
mulheres proletárias- estavam totalmente a margem da riqueza produzida pela
indústria e a situação de degradação e pobreza se tornou um dos mais sangrentos
acontecimentos da nova ordem social. Essas contradições foram o foco de teorias
emancipatórias e movimentos sociais do século XIX.
[1] Conforme destacado pelas recentes
histórias de mulheres, elas quase sempre desempenharam um papel importante
nos movimentos sociais. No entanto, se a participação das mulheres
não tem conhecimento de discriminação sexual não pode ser considerado
feminista.
[2] A, Valcárcel, "¿Es el
feminismo una teoría política?, Desde el feminismo, n 1, 1986.
[3] Cf. J. Kelly, "¿Tuvieron las mujeres
Renacimiento?", en J. S. Amelang y M. Nash (eds.) Historia y
género: Las mujeres en la Europa moderna y contemporánea, Alfons el Maganànim,
Valencia 1990, pp. 93-126; y A. H. Puleo, "El paradigma renacentista de
autonomía", en C. Amorós (coord.), Actas del Seminario Permanente
Feminismo e Ilustración. Instituto de Investigaciones Feministas, Universidad
Complutense de Madrid, Madrid 1992, pp. 39-46.
[4] Cf. A. H. Puleo, a. c.,
43-44.
[5] S. Robotham, Feminismo y
revolución, Debate, Madrid 1978, pp. 15-26.
[6] S. Robotham, La mujer
ignorada por la historia, Debate, Madrid 1980, p. 19.
[7] O. Blanco, "La ’querelle
feministe’ en el siglo XVII", en C. Amorós (coord.), Actas del Seminario
Permanente Feminismo e Ilustración, p. 77.