Odeio
os indiferentes. Acredito que viver significa tomar partido. Não podem existir
os apenas homens, estranhos à cidade. Quem verdadeiramente vive não pode deixar
de ser cidadão, e partidário. Indiferença é abulia, parasitismo, covardia, não
é vida. Por isso odeio os indiferentes. – Antonio Gramsci
Sobre o Escola Sem Partido, Alexandre Frota não é o autor desse projeto. Sua
caricata figura apenas tornou a coisa mais visível. Tampouco é de agora esse
movimento. Vem de 2004, mas certamente que as ocupações dos secundaristas deixaram
os defensores dessa aberração com os cabelos em pé e estejam aproveitando o
período interino de Michel Temer e seus apaniguados para avançar com o projeto.
¹
Então
quem está por trás desse nefasto plano de criar analfabetos políticos?
Miguel
Nagib é o pai da criatura. Em 2003, sua filha chegou da escola
dizendo que o professor de história havia equiparado Che Guevara a São
Francisco de Assis. Foi o bastante para que ele se mobilizasse. Nagib é
advogado, procurador do Estado de São Paulo e estava indignado com a “doutrinação
política e ideológica dos alunos por parte dos professores”, com a “usurpação
dos direitos dos pais na educação moral e religiosa de seus filhos”, e seja lá
o que ele quis dizer com isso, no ano seguinte nascia o Escola Sem Partido.
Para Nagib, “os pais têm direito a que seus filhos recebam
a educação religiosa e moral que esteja de acordo com suas próprias
convicções.” Em sua convicção tacanha, o advogado ignora que o papel da escola
é exatamente o de mostrar o mundo que existe do outro lado do muro.
Mas se a ideia brotou na cabeça retrógrada de um pai
conservador, os deputados que encabeçam os projetos de lei para implantação do
Escola Sem Partido nos estados são um show à parte:
Em Brasília, o autor é Izalci Lucas (PSDB). O deputado
Izalci é, de fato, um nome ligado a educação. Proprietário de uma escola
particular nos anos 80, o tucano invadiu um terreno que pertencia a uma escola
pública. Invadir áreas públicas parece ser o fraco do deputado. Sua mansão no
Lago Sul também ocupava ilegalmente e tornava privativa a orla do lago
brasiliense.
Sempre no tema educação, em sua campanha eleitoral o
deputado Izalci recebeu doações de empresas que depois foram agraciadas com
recursos do Programa DF-Digital sem que precisassem se submeter a licitação
pública. Como secretário de Ciência e Tecnologia do Distrito Federal, Izalci
Lucas destinou milhões de reais dos cofres públicos para que essas empresas
fornecessem equipamentos de informática para cursos de capacitação profissional
oferecidos pela Fundação de Amparo à Pesquisa (FAP-DF), que era subordinada à
sua pasta. Pelo esquema de subcontratações irregulares, Izalci está com seus
sigilos fiscal e bancário quebrados a pedido do STF.
No Rio de Janeiro, quem assina o projeto de lei é Flavio
Bolsonaro, da família que dispensa apresentações. Os Bolsonaro, como não
poderia deixar de ser, também fazem imensa confusão com o termo ‘ideologia’ na
cabeça de seus eleitores e o mais famoso deles, o patriarca Jair, no ano
passado emitiu mais uma de suas pérolas ao comentar a prova do ENEM.
Numa questão de ciências humanas que abordava o tema das
lutas feministas, foi citada uma frase da escritora e filósofa Simone de
Beauvoir. Em reação, Jair Bolsonaro postou nas redes sociais: “O sonho petista
em querer nos transformar em idiotas materializa-se em várias questões do
ENEM”, que ele define como ‘Exame Nacional do Ensino MARXISTA’. Perceberam a “ideologia”
aí? A crítica serve para ele também.
O desconhecimento ideológico por quem quer criticar uma ideologia:
Por “ideologia”, Nagib entende qualquer manifestação que
não obedeça aos critérios científicos de objetividade, comumente expressa em
disciplinas como história, filosofia, sociologia, artes e geografia.
O pressuposto é equivocado por diversas razões. A primeira delas
é que o próprio conceito de ideologia está não apenas mal-empregado, como
invertido. Se não foi o primeiro a pensar sobre, Karl Marx foi, sem dúvidas, o intelectual que mais se debruçou sobre
a ideologia para compreendê-la como instrumento de poder num século de
importantes transformações. Em A
Ideologia Alemã e, depois, em Contribuição
à Crítica da Economia Política, o filósofo percebeu que, grosso modo, o
principal papel da ideologia era o de naturalizar condições sociais
historicamente construídas. É o mecanismo pelo qual, dizia Marx, o capitalismo
se faz parecer justo diante do mar de desigualdades por ele provocado. ²
Na prática, o projeto do Escola Sem Partido pode resultar
tanto na criminalização de posições dissonantes em sala de aula quanto por
pior: naturalizar elaborações de direita
entendidas como neutras. Pois foi exatamente o que Marx concebeu como
ideologia. E, verdade seja dita, nada muito diferente de iniciativas que
levaram o Ocidente a experiências totalitárias na primeira metade do século XX.
Apesar da alegada renúncia a princípios morais no processo
educativo, o que faz o Escola Sem Partido é potencializar a agenda moral em
ascensão na política nacional; um conservadorismo e pseudocientífica perigosas
ao nosso progresso humano. Como disse o doutor em História e professor da
Unicamp, Leandro Karnal em entrevista ao programa Roda Viva:
“É uma asneira sem tamanho, uma bobagem
conservadora, de gente que não é formada na área e que decide ter uma ideia
absurda, que é substituir o que eles imaginam que seja uma ideologia por outra
ideologia…É uma crença fantasiosa de uma direita delirante e absurdamente
estúpida de que a escola forme a cabeça das pessoas e que esses jovens saem
líderes sindicais. Os jovens têm sua própria opinião. Os jovens não são massa
de manobra…. Toda a opinião é política, inclusive a ‘escola sem partido’…. A
demonização da política é a pior herança da ditadura militar, que além de matar
seres humanos, ainda provocou na educação um dano que vai se arrastar por mais
algumas décadas”.
Outro deputado do PSDB, deputado Rogério Marinho (PSDB-RN)
é autor do PL 1411/2015, que tipifica e estabelece punições para o crime de
“assédio ideológico”. O deputado João Campos de Araújo (PSDB-GO) compara a
discussão política na escola ao ‘assédio sexual’.
O Escola Sem Partido nasceu, segundo seu fundador, como
“reação ao fenômeno da instrumentalização do ensino para fins
político-ideológicos, partidários e eleitorais”. A partir daí tem ganhado
volume e seguidores tão abilolados que defendem a exclusão de disciplinas como
Filosofia e Sociologia. “Se História e Geografia já serviam de plataforma para
a militância ideológica, imagine o que vai acontecer com a Filosofia e a Sociologia!”,
afirmou no auge de sua psicodélica “ideológia” Miguel Nagib.
Escola Sem Partido é farsa e, mais além, perigosa:
A ideia de que haja ou possa haver essa tal “doutrinação”
dos alunos por parte dos professores pressupõe; 1) que os alunos recebam
passivamente aquilo que os professores dizem em aula, como numa espécie de
“lavagem cerebral” em laboratório, o que só existe em ficções das mais tolas;
2) que o próprio mundo humano não esteja permeado por ideias políticas, vindas
de todos os lugares, e bem mais dos meios de comunicação (incluindo blogs) do
que da escola – mas quem proíbe os filhos de assistir à TV, acessar a internet
e sair do quarto?; 3) que o caráter político e ideológico dos assuntos que um
professor aborda em sala de aula seja necessariamente danoso à formação cidadã
do aluno; 4) que tal caráter político e ideológico não esteja presente também
na metodologia de ensino, e que haja assuntos, áreas e conteúdos ideológica e
politicamente neutros. ³
Tudo isso quando, ao contrário, ser “doutrinado” por uma
ideologia ou muitas, bem como pela crítica às ideologias, não apenas é
inevitável, como também faz parte da formação para a vida em sociedade.
“Defender” o filho contra o próprio mundo, encerrando-o numa bolha contra tudo
que o mundo lhe traz, o tempo todo, de ideologias e informações, isso sim é
deletério. O desenvolvimento de uma consciência crítica não passa por se
colocar à distância das ideologias, mas pelo saber que elas existem, porquê
elas estão aí e o que elas dizem, para que o indivíduo possa formar uma posição
própria a respeito delas. E isso vai acontecer de um jeito ou de outro,
independente das intenções doutrinárias dos pais e dos professores.
Uma grande força inspiradora deste movimento e destes
projetos de lei é o fanatismo religioso. Os defensores da mordaça nos
professores desejam que as escolas não ensinem conteúdo que se opõe às
convicções religiosas dos alunos e de seus respectivos pais. Em primeiro lugar,
este raciocínio é absurdo porque considera que os pais são os donos das
crianças. Em uma sociedade livre, é aceitável que professores tenham pontos de
vista sobre política, moral e religião diferentes dos pais, e com o
amadurecimento, as crianças (ou adolescentes) decidam por elas próprias quem
está correto. Em segundo lugar, banir o ensino daquilo que contradiz religiões
é um passo para a anti-ciência e para o preconceito. Se professores não tiverem
permissão de ensinar aquilo que vai contra “convicções religiosas”, eles serão
impedidos de ensinar a Teoria da Evolução, pois esta teoria diverge daquilo que
livros sagrados religiosos dizem. Se professores não tiverem permissão de
ensinar aquilo que vai contra “convicções religiosas”, eles serão impedidos de
defender tolerância à homossexualidade. E aí, aumenta o risco de os alunos
virarem futuros carecas agressores de homossexuais (os fascistas)!
O Escola Sem Partido é hipócrita quando diz que defende a
“neutralidade e o equilíbrio”, porque defende “neutralidade e equilíbrio” porra
nenhuma, e mesmo se defendesse, já seria criticável. Em algumas questões, é
difícil falar em “neutralidade e equilíbrio”. Não é possível falar em
“neutralidade e equilíbrio” entre a Teoria da Evolução e a Teoria do Design
Inteligente, porque uma é científica e a outra é pseudocientífica. Não é
possível falar em “neutralidade e equilíbrio” entre o aquecimento global e o negacionismo
do aquecimento global porque 97% dos cientistas que estudaram esta questão
concordam que a atividade humana causa o aquecimento global. Não é possível
falar em “neutralidade e equilíbrio” entre ser a favor e ser contra a
homofobia. Não é possível falar em “neutralidade e equilíbrio” entre ser a
favor e ser contra o racismo.
Portanto, Escola Sem partido é uma idiotice política, um
assalto ideológico a liberdade de expressão e de conhecimento das disciplinas
científicas! O pensamento crítico é o pilar do desenvolvimento humano; é na
crítica, na oposição de ideias, botar às mostras as ‘naturalizações’ das
banalidades desumanas e retirar as máscaras da escuridão de um mundo qual onde
não somos o centro dele e, a partir disso, construir, juntos uma educação libertadora dessas amarras retrógradas
(educação libertadora não é, nem longe, uma espécie de rédeas psicológicas ou limitações
ideológicas):
“Educação
não transforma o mundo. Educação muda pessoas. Pessoas transformam o mundo.”
OBS: todo o texto é um aglomerado de trechos das fontes acima, alguns trechos com adaptações ou resumos.
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