O texto que segue abaixo é de Alípio de Sousa Filho, que é um cientista social brasileiro,
professor da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, em Natal, atuante no
campo das teorias críticas contemporâneas.
Desde Marx, o sentido
outorgado ao termo ideologia o tornou sinônimo de uma inversão na imagem que a
realidade social oferece de si mesma quanto aos seus fundamentos, assim como
correspondente às representações (crenças, ideias etc.) que a classe econômica
e politicamente dominante na sociedade capitalista produziria e procuraria
impor a todas as demais classes, através do Estado, com o objetivo de garantir
sua posição de classe dominante. A ideologia seria capaz de tornar a dominação
(dessa classe particular) algo natural ou mesmo invisível, concorrendo
igualmente para tornar invisível a dominação da ordem social capitalista sobre
todos. Esse sentido para o termo ideologia não mais abandonaremos e conserva
sua importância até hoje.
À reflexão pioneira de Marx
novas considerações sobre o fenômeno da ideologia se seguiram. Contribuições
como a de Louis Althusser (1974; 1985), Maurice Godelier (1980; 1996),
John Thompson (1995), Claude Lefort (1979), Slavoj Zizek (1996),
Terry Eagleton (1997) e, no Brasil, Marilena Chauí (1980; 1981) trouxeram elementos
novos para o estudo da ideologia, embora contribuições que permaneçam nos
marcos da análise marxista.
Hoje, o conceito de ideologia
permite pensar mais aspectos do fenômeno que apenas o ponto de vista de uma
classe particular no interesse de sua dominação. Pelos próprios estudos
antropológicos e sociológicos, torna-se possível pensar a ideologia como
fenômeno ligado aos efeitos de sentido de toda estruturação social, ao cada uma
delas ratificarem-se no simbólico como ordens de caráter natural, divino,
universal, necessário. Portanto, um fenômeno que não é exclusivo da sociedade
fundada na divisão de classes e na separação entre sociedade e poder do Estado,
sociedades capitalistas ou outras. Nem fenômeno cuja natureza se restrinja à
justificação das relações de produção e para a reprodução do modo de produção.
Anterior a toda outra coisa, a
ideologia assegura, por meio de representações imaginárias, crenças coletivas e
certas ideias sociais, que todos os sistemas de sociedade funcionem e durem
como realidades que existiriam por si próprias, sem o concurso da ação humana.
Resultado que a ideologia procura obter invertendo e ocultando o caráter de
coisa construída, arbitrária e convencional de toda ordem social-cultural e
suas instituições, e cujo efeito é a eficácia de sua dominação sobre os
indivíduos, engendrada e reproduzida sem o recurso da força. Nesses termos, a
ideologia constitui o modo de operar de toda cultura (enquanto sistema de
sociedade), ao procurar naturalizar-se, universalizar-se e eternizar-se, e atua
por meio dos discursos sociais (variando do mito ao chamado discurso
científico) que oferecem os sentidos e as significações legitimadoras do que em
cada cultura está instituído e aceito.
A ideologia, em primeiro
lugar, preserva as crenças, ideias e representações que asseguram a consagração
simbólica de normas, padrões, instituições, costumes, convenções de cada ordem
social, dando-lhes legitimidade, permitindo sua assimilação, incorporação – o
que não constitui um fenômeno específico desta ou daquela expressão social, mas
é inerente a todo sistema de sociedade, e só secundariamente (por extensão de
seus efeitos) podemos pensar que concorre para a reprodução das relações de
produção. Enquanto um fenômeno de cultura, a ideologia – da ordem de um
acontecer anônimo, involuntário, impessoal, coletivo – é propriamente o
trabalho de toda ordem social na procura de se sancionar no simbólico.
Nesses termos, a ideologia
constitui a imagem que a realidade oferece de si própria, negando a existência
do que com ela rivaliza (o real), e este como eixo ilimitado de possibilidades
sociais, ameaçadoras da ordem existente, que a ideologia visa assegurar. Por
meio da ideologia, a realidade engendra um discurso de naturalização,
universalização e eternização de suas formas, de modo que sanciona, consagra, a
dominação cultural-social-moral na qual ela própria se constitui enquanto
experiência do viver social e coletivo. É a ideologia um discurso da realidade
que procura torná-la natural ou divina, ocultando seu caráter de coisa
construída. A ideologia não é um duplo ilusório da realidade, mas um discurso
de naturalização ou divinização da realidade que procura apresentá-la como
toda. Não é uma duplicação que exigiria o conhecimento chegar até uma “essência
verdadeira”, mas realizar a crítica do discurso ideológico. A ideologia oferece
uma imagem da realidade que não corresponde aquilo que ela é: arbitrária,
convencional, contingente. A ideologia realiza aquilo que Bourdieu denominou a
“eternização do arbitrário” (BOURDIEU, 1999). É a ideologia o que transforma as
manifestações do real em algo ameaçador à ordem, em patologia, em anormalidade,
em violência.
Torna-se importante ressaltar
ainda, a ideologia torna-se o canal de ingresso do indivíduo na cultura. Aquilo
que as ciências humanas chamam de socialização e endoculturação somente são
compreensíveis, em seus efeitos duráveis, se entendemos por esses mecanismos o
trabalho de inculcação de “disposições duradouras” de agir, pensar, maneiras de
ser (que, numa longa tradição, de Aristóteles a Pierre Bourdieu, passando por
Thomas de Aquino, David Hume, Marcel Mauss, entre outros, chamou-se de héxis ou habitus), desconhecidas, pelos sujeitos que as incorporam, como
padrões sociais, culturais, instituídos por um “arbitrário cultural” (BOURDIEU,
1989; 1998), e ao mesmo tempo vividas como coisas naturais e universais: coisas
de natureza social com propriedades de “natureza natural” (ibid.). A
socialização é um processo que, em última instância, significa a interiorização
das convenções culturais, sociais, morais, através de diversos ritos e
instituições, constituindo a via pela qual se tornar membro da sociedade é não
apenas a efetivação de uma destinação forçada a que o ser humano está obrigado
(para se constituir como humano), mas igualmente a via de sua constituição na
alienação e na sujeição, sem que o indivíduo disso se dê conta.
Uma teoria adequada da
socialização se obriga a pensar o trabalho de interiorização dos padrões
culturais como o próprio trabalho pelo qual a ideologia é internalizada, mas
sem que nem esse trabalho nem a ideologia apareçam como existindo. Podemos
apontar que a eficácia da ideologia decorre, dentre outros mecanismos, de sua
ancoragem invisível nas esferas psíquica, emocional e cognitiva do indivíduo –
a “subjetividade” de cada um, produzida nos processos de subjetivação nos
diversos dispositivos de saber e poder, para cuja compreensão são
esclarecedoras as análises de Michel Foucault, embora suas análises não se
refiram à ideologia como existindo e voltem-se apenas para práticas nas
sociedades modernas. Ancoragem que produz o indivíduo submetido à sua cultura,
e produz a alienação do indivíduo que se crê uma natureza também fixa, uma
substância inata, ignorando-se como uma construção social-cultural: o sujeito
particular como efeito do sujeito ideológico universal. Evidentemente, nem a
socialização nem a experiência na cultura se restringem apenas à sujeição
ideológica e à dominação. Resistências, transgressões, subversões, criações
atestam o fracasso da ideologia em sua tentativa de domesticar e homogeneizar a
vida individual e coletiva nas diversas experiências culturais – fatos que
interessam ao construcionismo crítico (...).
SOUSA FILHO, Alípio
de. Por uma teoria construcionista crítica. Bagoas: Revista de
Estudos Gays, v. 1, p. 27-59, 2007. Disponível em: http://docente.ifrn.edu.br/isabeldantas/gestao-desportiva-e-lazer/artigos/por-uma-teoria-construcionista-critica
Nota: texto retirado do blog Bora Discutir.