Publicado no Jornal do Margs, n° 105, Dezembro 2004. Página
8.
Por Márcia
Tiburi – Prof. de filosofia (Unisinos e Unilasalle)
Autora de Filosofia Cinza (Escritos, 2004) e Diálogo sobre o Corpo (Escritos,
2004).
Podemos dizer: “a arte ensina a pensar”, “a arte é um meio para a reflexão”.
Podemos chegar a algo mais extremo: “a
arte substituiu o pensamento na tarefa da interpretação do mundo”. Frases
como estas correm soltas em nossos meios, sejam eles intelectuais ou não;
conhecemos a ideia da arte como “medium”
de reflexão no romantismo alemão que veio fazer escola no século XX
influenciando artistas, filósofos e até a figura do curador de exposições que
veio a se tornar enfática na atualidade. Sua verdade, porém, só será compreendido
se analisarmos a ambiguidade que veiculam. Um bom método para buscar a
compreensão de algo é sempre ver o que cada frase, cada ideia ou preposição,
oculta. E é sempre útil desconfiar que perguntas camuflem perguntas e respostas
prontas podem evitar ou interromper o processo do pensamento.
Neste contexto é importante
uma crítica sobre a questão “a arte faz pensar” capaz de mostrar sua
pertinência e limites.
Tais preposições estão
extremamente vinculadas à questão da falência da filosofia. Desde Marx, segundo
a famosa 11ª Tese sobre Feuerbach, “os
filósofos até agora se ocuparam da interpretação do mundo enquanto cabe
transformá-lo”. Marx fazia do pensamento um trabalho cuja responsabilidade
era a modificação das condições materiais da existência. A filosofia não
poderia ser mera teoria no sentido da contemplação desligada da realidade
social e política e sem função prática. Neste sentido Marx apenas conclamava os
filósofos, aqueles que se davam à tarefa do pensamento especializado e qualificado
como até hoje, a que, como os proletários do seu tempo – objetos de relações de
poder, mas artífices dos meios de produção – tomassem em suas mãos o poder de
que dispunham e realizassem sua excelência e natureza: que cada um efetivasse
sua função social, que os filósofos fizessem o pensamento valer revolucionando
a vida concreta e que os trabalhadores fizessem seu trabalho valer como poder
que ele de fato era. Mas o que não estava dito era que a falência da filosofia
era igual, neste contexto, à falência do trabalho e ambos deveriam ressurgir
como poderes transformadores.
Neste ponto, a arte aparece
como uma atividade capaz de fazer o que a filosofia não foi capaz, a saber,
oferecer uma reflexão mais profunda e mais crítica da realidade. É interessante
que não tenha se tornado uma questão tão levada a sério a capacidade da arte em
revolucionar o mundo trabalho. A crítica da arte jamais colocou a questão sobre
a pertinência da arte na transformação do mundo que a filosofia teria deixado a
desejar. Uma transformação da ação por meio da arte equivalia a uma
transformação do trabalho que estava na esteira da crítica de Marx à filosofia.
Apenas Marcuse, em meados do século XX, acreditará que a arte é capaz de ser
trabalho não alienado, trabalho que realiza subjetivamente quem o promove. Mas
é curioso que hoje a arte venha reivindicar o lugar especial frente ao
pensamento. Quem defende a ideia de que arte realiza o papel da filosofia tem
em mente esta falência do pensamento no que concerne à sua vocação prática
abandonada. Vocação que não pode, a propósito, ser perdida de vista, devendo –
a cada vez e com urgência – ser recuperada. Filósofos como Theodor Adorno
(autor da Teoria Estética, a maior
obra a relacionar arte e filosofia no século XX) dirá que a arte é autônoma no
que concerne à sua lei formal em relação à sociedade e que isso constitui sua
maior crítica ética e política. O que a arte veio ensinar à filosofia deve ser
compreendido nos termos do que a sensibilidade é capaz de ensinar à razão,
processo cujo reconhecimento é absolutamente necessário desde que a razão
iluminista demonstrou sua necessidade de crítica ao perder-se nos descaminhos
de uma existência separada da sensibilidade.
Seguindo tal caminho, desde
Schopenhauer, Nietzsche e Kierkegaard, pelo menos entre os mais conhecidos, a
filosofia tem tentado ser arte no sentido da aventura criativa do pensamento
que deixa revelar suas sombras e luzes, expandindo-se como consciência e
inconsciência, emoção e lógica num arranjo dialético, ou seja, capaz de
entrelaçar facetas opostas. A arte mostrou e ainda mostra à filosofia os
limites do pensamento meramente racional e lógico. A evolução da filosofia
dependia de que objetos, as obras de arte, devessem ser enfrentados pela
racionalidade e que, na oferta de um choque de sensibilização dado pelas obras
de arte, o pensamento evoluísse rumo ao reconhecimento de seus limites. Isso,
de fato, ocorreu no século XX. A obra de arte mostra o limite da explicação
racional e lógica e evidencia-se como algo “mais” em relação à linearidade do
pensamento lógico.
Mas não é possível dizer que
a arte substitui o pensamento, antes a relação é dialética e Adorno tinha
razão: se a arte auxilia o pensamento, o pensamento também auxilia a arte.
Outra coisa, no entanto, é dizer que o pensamento substitui a arte. Diante
dessa ideia o que encontramos é a ausência de dialética que promove um
retrocesso no trabalho do pensamento tanto quanto no das artes. A dialética é o
método que permite reconhecimento na relação entre opostos, que não elimina
polaridades na intenção de hierarquizar um deles oferecendo uma resposta rápida
e fácil ás dificuldades imanentes ao processo do conhecimento.
É necessário, entretanto,
voltar à questão do trabalho e pensar por que ninguém pergunta sobre a falência
da arte, enquanto a falência da filosofia parece dada. Por que pensamos a arte
como tendo o direito de ser “mais adequada” para a reflexão do que a filosofia,
do que o trabalho especializado com o pensamento que ela quer promover? Se ela
promove pensamento, podemos dizer que ela tem razão ao interferir no método,
colocando a sensibilidade no lugar onde antes estava apenas a lógica. Mas, por
outro lado, não seria de devolver à arte a pergunta sobre a sua própria
incapacidade em transformar o mundo do trabalho, da prática, da ação? Optar
pelo pensamento só tem sentido se carregamos junto dele a ação.
Se a filosofia produziu
pensamento alienado enquanto tentava produzir pensamento qualificado, o fato de
que a arte venha interferir no pensamento é relevante e fundamental, pois ela
alcança para a filosofia algo que ela mesma era incapaz. Mas isto não
transforma a arte na verdade das verdades, o novo tribunal onde o pensamento
qualificado pode ser julgado.
Resta a pergunta sobre o
fato que a arte não tenha se ocupado com
a esfera da prática e do trabalho, afinal, que espécie de “pensamento” ela
pretende ser ou produzir? O que a arte mostra é a possibilidade de mudar o
mundo mudando o pensamento. Adorno interpretou assim a vantagem da arte diante
da filosofia. Tal possibilidade, todavia, possui um limite atroz: a crença da
arte no pensamento (a arte como cosa mentale de
Da Vinci e como artefato conceitual no século XX) mostra também a incompetência
da arte em mudar o mundo do trabalho, da ação.
Há que se colocar uma
questão camuflada: é preciso suspeitar da arte quando ela procura esquivar-se
de uma tarefa que é imanente ao seu sentido enquanto coisa social: a tarefa da
sensibilização.
Aquilo que a arte critica, o
pensamento, define o objeto sobre o qual ela deseja interferir e certamente o
fará ao dar sensibilidade ao pensamento, mas isso não é nenhuma garantia de que
a arte, por si só e simplesmente, possua como absoluto a sensibilidade como
algo que a obra carrega espontaneamente. Este é o grande limite da arte, a
crença na onipotência da sensibilidade como se esta não fosse formada e
educada, instrumento do poder e da ideologia.
E devemos perguntar: quando
a arte se propõe a substituir a filosofia quem realizará a ação de
sensibilização? Não podemos tomar a sensibilidade como dada, ela precisa ser
construída, tanto quanto o pensamento. Assim como o pensamento é uma tarefa
complexa e árdua, do mesmo modo o é a sensibilidade. Neste ponto, a filosofia
avança para além da arte: enquanto a filosofia está procurando chegar à
prática, ter relevância para o mundo da ação após a dura autocrítica que levou
a cabo, a arte, com todas as tentativas revolucionárias promovidas no século
XX, também não chegou onde prometia. É preciso reformular o juízo: a falência
da filosofia é concomitante à falência das artes. Mas se aquela se revisa desde
o século XIX, esta ainda não promoveu a própria autocrítica. O avanço da
filosofia nasceu de sua autocrítica, os artistas e as artes ainda não
realizaram esta auto-avaliação até as últimas consequências.