Em tempos em que a sociedade está presenciando
diariamente bárbaros atos de violência perpetrados por indivíduos aparentemente
comuns; em que a corrupção é revelada em todas as instâncias de poder estatais
ou não, provocando um imensurável ódio da sociedade civil contra as
instituições e, especialmente contra as instituições políticas; em que o
autoritarismo paira sobre as relações sociais de maneira desvelada. Nesses
períodos de crise social, econômica e política afloram-se como nunca espíritos
- leia-se personalidades - extremamente autoritários, ignorantes e insensíveis,
formando no seio social um ambiente hostil e repressor. E isso, assumindo-se a
conhecida divisão esquerda x direita, atinge indistintamente as duas categorias
do espectro político.
No Direito, a mais perceptível consequência desse processo
de hostilização da vida social é tida na seara do Direito Penal, não só com o
recrudescimento de penalidades aos agentes delitivos, mas com a mudança nos
objetivos da punição, abandonando-se o ideal de recuperação do indivíduo
violador dos bens jurídicos e apelando-se para a extirpação definitiva desse
indivíduo do corpo social. Isso significa que os legisladores modificam não
apenas quantitativa, mas qualitativamente o sistema penal, transformando este em
um sistema ainda mais proeminente e cruel.
Cá para nós, a esquerda política sempre se destacou por
requerer punições mais brandas ou alternativas a delinquentes, e também por
denunciar a seletividade de agentes da justiça para com certos grupos ou
classes sociais, ao fazerem, por exemplo, vista grossa de delitos praticados
por ricos, brancos etc. e acentuar a punição ao se tratar de pobres, negros
etc. Infelizmente, ao mesmo tempo em que a esquerda bradava por menos
seletividade e discriminação, primitivamente vociferava requerendo mais rigor
na punição dos privilegiados da sociedade, o que de certa forma, na visão de
Maria Lúcia Karam, serviu apenas para reproduzir e manter os anseios por um
sistema penal ainda mais repressor.
A
Esquerda Punitiva
Por
Maria
Lúcia Karam – 06/03/2015
As primeiras reivindicações repressoras:
o combate à criminalidade dourada
Na
história recente, o primeiro momento de interesse da esquerda pela repressão à
criminalidade é marcado por reivindicações de extensão da reação punitiva a
condutas tradicionalmente imunes à intervenção do sistema penal, surgindo
fundamentalmente com a atuação de movimentos populares, portadores de
aspirações de grupos sociais específicos, como os movimentos feministas,
notadamente a partir dos anos 70, incluíram em suas plataformas de luta a busca
de punições exemplares para autores de atos violentos contra mulheres, febre
repressora que logo se estendendo aos movimentos ecológicos, igualmente
reivindicantes da intervenção do sistema penal no combate aos atentados ao meio
ambiente, acaba por atingir os mais amplos setores da esquerda.
Distanciando-se
das tendências abolicionistas e de intervenção mínima, resultado das reflexões
de criminólogos críticos e penalistas
progressistas, que vieram desvendar o papel do sistema penal como um dos
mais poderosos instrumentos de manutenção e reprodução da dominação e da
exclusão, características da formação social capitalista. Aqueles amplos
setores da esquerda, percebendo apenas superficialmente a concentração da atuação
do sistema penal sobre os membros das classes subalternizadas, a deixar
inatingidas condutas socialmente negativas das classes dominantes, não se
preocuparam em entender a clara razão desta atuação desigual, ingenuamente
pretendendo que os mesmos mecanismos repressores se dirigissem ao enfrentamento
da chamada criminalidade dourada, mais especialmente aos abusos do poder
político e do poder econômico.
Parecendo
ter descoberto a suposta solução penal e talvez ainda inconscientemente saudoso
dos paradigmas de justiça dos velhos tempos de Stalin (um mínimo de coerência
deveria levar a que em determinadas manifestações de desejo ou aplauso a
acusações e condenações levianas e arbitrárias se elogiassem também os
tristemente famosos processos de Moscou), amplos setores da esquerda aderem à
propagandeada ideia que, em perigosa distorção do papel do Poder Judiciário,
constrói a imagem do bom magistrado a partir do perfil de condenadores
implacáveis e severos.
Assim se entusiasmando com a perspectiva de ver estes
“bons magistrados” impondo rigorosas penas a réus enriquecidos (só por isso
visto como poderosos) e apropriando-se de um generalizado e inconsequente
clamor contra a impunidade, estes amplos setores da esquerda foram tomados por
um desenfreado furor persecutório, centralizando seu discurso em um histérico e
irracional combate à corrupção, não só esquecidos das lições da história, a
demonstrar que este discurso tradicionalmente monopolizado pela direita já
funcionara muitas vezes como fator de legitimação de forças as mais
reacionárias (basta lembrar, no Brasil, da eleição de Jânio Quadros e do golpe
de 64), como incapazes de ver acontecimentos presentes (pense-se na simbólica
vitória dos partidos aliados a Berlusconi nas eleições italianas, no auge da
tão admirada Operação Mãos Limpas).
Este
histérico e irracional combate à corrupção, reintroduzindo o pior do
autoritarismo que mancha a história de generosas lutas e importantes conquistas
da esquerda, se faz revitalizado na hipócrita prática de trabalhar com dois
pesos e duas medidas (o furor persecutório volta-se apenas contra adversários
políticos, eventuais comportamentos não muito honestos de companheiros ou
aliados sempre sendo compreendidos e justificados) e do aético princípio de
fins que justificam meios, a incentivar o rompimento com históricas conquistas
da civilização, com imprescindíveis garantias das liberdades, com princípios
fundamentais do Estado de Direito [1].
Desejando
e aplaudindo prisões e condenações a qualquer preço, estes setores da esquerda
reclamam contra o fato de que réus integrantes das classes dominantes
eventualmente submetidos à intervenção do sistema penal melhor se utilizam de
mecanismos de defesa, frequentemente propondo como solução a retirada de
direitos e garantias penais e processuais, no mínimo esquecidos de que a desigualdade
inerente à formação social capitalista que, lógica e naturalmente, proporciona
àqueles réus melhores utilização dos mecanismos de defesa, certamente não se
resolveria com a retirada de direitos e garantias, cuja vulneração repercute
sim – e de maneira muito mais intensa – sobre as classes subalternizadas, que
vivem o dia-a-dia da Justiça Criminal, constituindo a clientela para a qual esta
prioritariamente se volta. Inebriados pela reação punitiva, estes setores da
esquerda parecem estranhamente próximos dos arautos neoliberais apregoadores do
fim da história, não conseguindo perceber que, sendo a pena, em essência, pura
e simples manifestação de poder – e, no que nos diz respeito, poder de classe
do Estado capitalista – é necessária e prioritariamente dirigida aos excluídos,
aos desprovidos deste poder.
Parecendo
ter se esquecido das contradições e da divisão da sociedade em classes, não
conseguem perceber que, sob o capitalismo, a seleção de que são objeto os
autores de condutas conflituosas ou socialmente negativas, definidas como
crimes (para que, sendo presos, processados ou condenados, desempenhem o papel
de criminosos), naturalmente, terá que obedecer à regra básica de tal formação
social – a desigualdade na distribuição de bens. Tratando-se de um atributo
negativo, o status de criminoso necessariamente deve recair de forma
preferencial sobre os membros das classes subalternizadas, da mesma forma que
os bens e atributos positivos são preferencialmente distribuídos entre os
membros das classes dominantes, servindo o excepcional sacrifício, representado
pela imposição de pena a um ou outro membro das classes dominantes (ou a algum
condenado enriquecido e, assim, supostamente poderoso), tão somente para
legitimar o sistema penal e melhor ocultar seu papel de instrumento de
manutenção e reprodução dos mecanismos de dominação.
Não
percebem estes setores da esquerda que a posição política, social e econômico
dos autores dos abusos do poder político e econômico lhes dá imunidade à
persecução e à imposição da pena, ou, na melhor das hipóteses, lhes assegura um
tratamento privilegiado por parte do sistema penal, a retirada da cobertura de
invulnerabilidade dos membros das classes dominantes só se dando em pouquíssimos
casos, em que conflitos entre setores hegemônicos permitem o sacrifício de um
ou outro responsável por fatos desta natureza, que colida com o poder maior, a que
já não sirva. Não percebem que, quando chega a haver alguma punição relacionada
com fatos desta natureza, esta acaba recaindo sobre personagens subalternos [2].
Ao
centralizarem o combate à corrupção na utilização da reação punitiva e somarem
suas vozes ao clamor contra a impunidade e ao apelo por uma maior eficiência da
repressão, estes setores de esquerda aderem à ideia de que um maior rigor
repressivo seria necessário para acabar com aquelas práticas de corrupção e com
a impunidade de seus autores, assim ignorando o fato de que nenhuma reação
punitiva, por maior que seja sua intensidade – e ainda que fosse possível a
superação dos condicionamentos de classe – pode pôr fim à impunidade ou à
criminalidade de qualquer natureza, até porque não é este seu objetivo.
A
imposição da pena vale repetir, não passa de pura manifestação de poder,
destinada a manter e reproduzir os valores e interesses dominantes em uma dada
sociedade. Para isso, não é necessário nem funcional acabar com a criminalidade
de qualquer natureza e, muito menos, fazer recair a punição sobre todos os
autores de crimes, sendo, ao contrário, imperativa a individualização de apenas
alguns deles, para que, exemplarmente identificados como criminosos, emprestem
sua imagem à personalização da figura do mau, do inimigo, do perigoso, assim
possibilitando a simultânea e conveniente ocultação dos perigos e dos males que
sustentam a estrutura de dominação e poder.
A
excepcionalidade da atuação do sistema penal é de sua própria essência,
regendo-se a lógica da pena pela seletividade, que permite a individualização
do criminoso e sua consequente e útil demonização, processo que se reproduz
mesmo quando se pretende, como nos delitos socioeconômicos, trabalhar com a
responsabilidade penal de pessoas jurídicas, pois a individualização e a demonização
do criminoso são características inerentes à reação punitiva, empresas ou
instituições também podendo perfeitamente ser individualizadas e demonizadas,
de igual forma se ocultando, através destes mecanismos ideológicos, a lógica e
a razão do sistema gerador e incentivador dos abusos do poder realizados em
atividades desenvolvidas naqueles organismos.
A
monopolizadora reação punitiva contra um ou outro autor de condutas socialmente
negativas, gerando a satisfação e o alívio experimentados com a punição e consequente
identificação do inimigo, do mau, do perigoso, [3] não só
desvia as atenções como afasta a busca de outras soluções mais eficazes,
dispensando a investigação das razões ensejadoras daquelas situações negativas,
ao provocar a superficial sensação de que, com a punição, o problema já estaria
satisfatoriamente resolvido [4]. Aí se encontra um dos principais ângulos da
funcionalidade do sistema penal, que, tornando invisíveis as fontes geradoras
da criminalidade de qualquer natureza, permite e incentiva a crença em desvios
pessoais a serem combatidos, deixando encobertos e intocados os desvios estruturais
que os alimentam.
Chega a ser, assim, espantoso que forças
políticas que se dizem (ou, pelo menos, originariamente, se diziam) voltadas
para a luta por transformações sociais prontamente forneçam sua adesão a um mecanismo
tão eficaz de proteção dos interesses e valores dominantes de sociedades que supostamente
deveriam ser transformadas.
As novas preocupações com a
criminalidade de massas e com a criminalidade organizada
Mais
graves que as ilusões político-ideológicas
que levam às reivindicações de extensão da reação punitiva aos abusos do poder
político e econômico, são as novas preocupações da esquerda com a criminalidade
de massas e com as reais ou supostas manifestações da chamada criminalidade organizada,
preocupações que logo se seguiram àquela sua descoberta do sistema penal.
O
abandono da utopia da transformação social, cedendo lugar a desejos mais
imediatos de conquista de cargos políticos no aparelho de Estado, parece ser
uma primeira explicação para o surgimento destas novas preocupações [5]. Mas,
talvez, se deva pensar também no processo de envelhecimento e estabilização
material de grande parte dos antigos militantes – em sua maioria, oriundos das
classes médias -, agora temerosos e sensibilizados com a violência da
criminalidade de massas, a ameaçar seus novos ideais de “paz” e tranquilidade.
Perdendo
sua antiga visão crítica sobre a “imprensa
burguesa”, amplos setores de esquerda reproduzem literalmente o que dizem
os órgãos massivos de informação, quanto a um aumento descontrolado da
criminalidade, sendo comum ouvir de suas vozes a repetição do apelido de Vietnam dado a determinados locais –
certamente do Rio de Janeiro – onde roubos praticados principalmente por
meninos de rua acontecem com certa frequência, vozes preocupadas em aumentar a
segurança para combater tal violência, parecendo ter trocado de posições, agora
desempenhando o papel de EUA, na busca de fórmulas para conter o avanço dos Vietcongs… Talvez esta troca de posições
também pudesse ser uma boa explicação para a acrítica aceitação da
expressão narcotráfico, que se incorporou ao vocabulário da esquerda, refletindo
sua submissão às regras da internacionalização da política de drogas, ditada
pelos EUA, a partir da década de 80, quando, simultaneamente ao desenvolvimento
da “guerra contra as drogas”, pautada pela eleição do agente externo (os
produtores e distribuidores dos países latino-americanos) como o inimigo a ser enfrentado,
adotou-se o uso do radical da palavra inglesa narcotics, utilizável também em espanhol ou em português,
passando-se então a falar de narcotráfico,
narcodólares, etc. Inobstante, o principal alvo da política do momento – a cocaína – sequer pudesse ser visto
como narcótico, tratando-se, ao contrário, de evidente estimulante [6].
Envernizando
suas inquietações com a criminalidade convencional de massas (decerto ameaçadora
para quem quer usufruir dos privilégios de uma estabilização material, sem ser incomodado
com roubos e furtos) e preocupados em melhor justificar sua ideologia
repressora, amplos setores da esquerda aderem ao apelo de maior intervenção do
sistema penal, trabalhando – à semelhança da ideologia dominante – não com
aquelas mais verdadeiras inquietações com a criminalidade convencional, mas com
poderosos fantasmas de uma suposta criminalidade organizada (aqui também
reproduzindo discurso importado dos países centrais), fantasmas que, ecoando
nos sentimentos de insegurança e no medo coletivo difuso, característicos das
sociedades contemporâneas. Favorecem os crescentes anseios de segurança, de
intensificação da repressão, de maior rigor penal, fortemente presentes no
momento histórico em que vivemos.
Trabalhando
com estes fantasmas do mal definido fenômeno da chamada criminalidade organizada, estes setores da esquerda apressam-se em
identificá-lo – como o discurso dominante
– na atuação dos varejistas do comércio das drogas ilícitas estabelecidos nas
favelas cariocas, embora quem foi acostumado a ter na prática o critério
da verdade talvez devesse prestar mais atenção à sinalização que vem da
realidade, dando conta das constantes disputas por pontos de venda, a melhor sugerir
uma certa desorganização em tal atividade. Mas, organizada ou
desorganizadamente, o fato é que esta criminalidade ligada ao tráfico de drogas
nas favelas do Rio de Janeiro trouxe ao discurso destes setores criminalizantes
da esquerda o verniz de que necessitavam, passando a justificar sua ideologia
repressora e punitiva com os argumentos de que aquela dita criminalidade
organizada estaria dominando as favelas do Rio de Janeiro e oprimindo seus
moradores, controlando as associações pela intimidação e cooptação de lideranças
(generalização, aliás, bastante questionável), assim sufocando os movimentos
populares. Será mesmo que é a intimidação ou a cooptação de lideranças que
impedem a organização popular? Não seria esta uma cômoda desculpa para a
incapacidade política da própria esquerda?
Uma
análise séria da organização e dos movimentos populares não poderia omitir a
distorcida política que presidiu a formação das associações de moradores no Rio
de Janeiro, política que, mais do que provocar o enfraquecimento daqueles movimentos,
compactuou com o acirramento das diferenças entre os habitantes das favelas e
os habitantes do asfalto, acirramento que certamente contribui para uma maior
agressividade recíproca e, consequentemente, para um aumento de atitudes
violentas. Em sua organização, impulsionada pela esquerda, notadamente no
início da década de 80, as associações de moradores foram divididas em duas
categorias, que reproduziam a artificial e reacionária separação morro x asfalto, criando-se associações
de bairro, que, tendo maior crescimento na zona sul, integravam em seus quadros
moradores das classes médias, com predominância de militantes de esquerda, e,
paralela e distanciadamente, associações de moradores de favelas, como se estes
não vivessem nos mesmos bairros onde se situavam as associações das classes
médias.
Talvez
antes de lamentar uma suposta perda de associações de moradores para o tráfico
e se assustar com a violência da criminalidade, a ponto de se unir ao desejo
dominante de repressão e punição, devesse a esquerda retomar as sessões de
autocrítica (sempre saudáveis, desde que naturalmente podadas de seus excessos
históricos), de modo a reconhecer e superar os “desvios” que a levaram a
contribuir, ainda que inconscientemente, para a institucionalização de nosso apartheid social.
Embora
apelando para aquela suposta responsabilidade do tráfico pela desorganização de
movimentos populares e tentando manter alguma coerência com seus originários
ideais, ao sugerir que suas preocupações, neste campo, decorreriam da
necessidade de romper com a opressão imposta aos moradores das favelas pelos
agentes do comércio varejista das drogas ilícitas lá instalados [7], o fato é que
tais preocupações só aparecem quando a violência dos conflitos travados nas
desorganizadas disputas de pontos de comércio de drogas, no Rio de Janeiro, se
mostra ameaçadoramente próxima dos locais de moradia das classes médias,
assustadas com as “balas perdidas”,
perturbadas em seus anseios de paz e tranquilidade.
Compactuando
com a repressão, não procurando qualquer alternativa mais sólida e menos perniciosa
do que a reação punitiva, apressando-se em aderir ao discurso dominante (talvez
para não dissentir dos reclamos repressores e punitivos da opinião pública, em
tempos de sonhadas vitórias eleitorais), nem mesmo o antigo instrumental de
análise, que antes parecia lhes permitir desvendar as leis da economia e do
desenvolvimento social, conseguiu estimular estes setores da esquerda a buscar uma
compreensão mais profunda da realidade, para assim encontrar a melhor forma de
transformá-la.
Fazendo
sua a política de guerra interna contra as drogas, sem notar a semelhança com a
política externa de seus antigos arquinimigos nos anos 80, optando pela falsa e
fácil solução penal, não enxergam aqueles setores da esquerda a contradição
(que, em tempos outros, se diria antagônica) entre a pretendida utilização
de um mecanismo provocador de um problema como solução para este mesmo
problema. Ao optarem pela reação punitiva, não percebe que, no campo de
negócios ilícitos, é exatamente esta mesma reação punitiva a criadora da
criminalidade (organizada ou não) e da violência por ela gerada; o processo de
criminalização que, produzindo a ilegalidade do mercado de bens e serviços de
grande demanda (como as drogas ilícitas ou o jogo), igualmente produz a
inserção neste mercado de organizações criminosas, simultaneamente trazendo a
violência e a corrupção como subprodutos necessários das atividades econômicas
assim desenvolvidas. Tampouco conseguem perceber que por mais rigorosa que seja
a repressão, estas atividades econômicas ilegais subsistirão enquanto estiverem
presentes as circunstâncias socioeconômicas favorecedoras de uma demanda
criadora e incentivadora do mercado. No mínimo, deveria sugerir uma alteração de rumos, buscando-se instrumentos menos
perniciosos e mais eficazes de controle de tal demanda.
Desvinculados
de uma análise séria da realidade e acompanhando a exacerbação do desejo punitivo,
que segue o ideal imediatista de “viver
em paz”, sequer estranham aqueles setores da esquerda esse desejo de paz
que admite até a guerra, como expressado na proposta de transferir as tarefas
de segurança pública para as Forças Armadas, concretamente ensaiadas, no Rio de
Janeiro, no final de 1994, e só abandonada porque, como seria de esperar, não
se produziram os resultados concretos com que a fantasia da ideologia
repressora sonhava.
Nem
mesmo esta explícita (e, decerto, antagônica) contradição entre o ideal de
viver em paz e o, apelo à guerra – contradição, sem dúvida, mais facilmente
percebível do que aquela mais sutil, mas, de todo modo, certamente existente,
entre paz e punição – despertou maiores questionamentos sobre os estreitos
limites classistas deste novo ideal, sobre sua transformação em um ideal de
ordem – e, portanto, de manutenção do status
quo – a requerer medidas imediatas de repressão e controle, medidas
como, de regra, dirigidas contra as
classes subalternizadas.
Trocando
quaisquer inquietações de um passado próximo pela adesão à suposta necessidade inadiável
de aprofundamento do combate à criminalidade, os mais amplos setores da
esquerda tranquilamente aceitaram aquela indevida utilização das Forças Armadas
nas tarefas de segurança pública, em nenhum momento levantando suas vozes
(talvez, ainda uma vez, não querendo dissentir da opinião pública – ou, mais
propriamente, da opinião publicada – provavelmente preocupados com os efeitos
de tal dissenso na campanha eleitoral que então se desenrolava), nem mesmo se impressionando
com a tática da repressão militarizada, centrada no cerco e ocupação das
favelas cariocas, conquistadas como se fossem territórios inimigos, tática
que sequer disfarçava a genérica identificação das classes subalternizadas como
classes perigosas, tradicionalmente feitas de forma mais sutil através do
normal funcionamento do sistema penal.
Preocupada
com a criminalidade, embotada pelo desejo repressor e punitivo, deixou a
esquerda passar despercebido o editorial de um grande jornal, preocupando-se em
minimizar a falta de resultados visíveis da Operação Rio e justificar as ilegais, violentas e humilhantes
revistas pessoais dirigidas até contra crianças, bem esclarecia a real
finalidade da repressão militarizada, sugerindo que seus objetivos teriam sido
atingidos, ao permitir que os moradores das favelas reavaliassem suas relações
com a autoridade pública [8], em explícita defesa da necessidade de uma
violenta educação das classes subalternizadas para a submissão.
Mas,
talvez este imobilismo não deva ser assim tão surpreendente, refletindo a mesma
postura (quem sabe, como em outros tempos também se diria, determinada por
condicionamentos de classe) de quem, antes, com suas associações, não se
incomodara em apartar os moradores dos morros dos habitantes do asfalto, de
quem não hesita em dar sua adesão a uma pretendida “paz” classista e excludente de quem “priorizando” o combate à
criminalidade, parece ter definitivamente relegado o segundo plano as medidas
mais profundas e de longo prazo que, aptas a criar melhores condições de vida e
maiores oportunidades sociais para as classes subalternizadas, simultaneamente
contribuam para o rompimento com os mecanismos excludentes (tão eficazmente
reproduzidos pelo sistema penal) e conduzam a uma – não importa quão distante –
transformação social, voltada para a construção de relações mais iguais e mais
solidárias entre todas as pessoas, que assim possam efetivamente viver em paz.
O discurso simplista contra a corrupção
e a violência policial
Em
seus acenos com a violência real ou imaginária de uma suposta criminalidade
organizada, a clamar por maior repressão, os setores criminalizantes da
esquerda recheiam suas reflexões com a necessidade de uma melhor estruturação
dos aparelhos de repressão do sistema penal. Sempre fazendo suas as palavras do
discurso dominante, fazem coro aos que dizem que “a polícia está podre” e precisa ser reestruturada (aqui também,
como quer a mídia, referem-se especialmente à polícia do Estado do Rio de
Janeiro), reivindicando medidas urgentes, adotando as mesmas razões – ou não razões
– que abriram espaço para a já comentada utilização das Forças Armadas em um
suposto combate ao crime, no Rio de Janeiro, no final de 1994.
Repetindo
aquela simplista afirmação de que “a
polícia está podre”, necessitando de urgente reestruturação (admitindo-se
até mesmo sua dissolução), em verberações que, neste campo da atuação do
aparelho policial, priorizam os males da corrupção que estaria a deteriorar
aquela atuação e enfraquecer o desejado combate ao crime (especialmente e, como
sempre, o crime organizado), não se detêm nas razões dos desviados
comportamentos de alguns agentes policiais, ou de muitos, ou mesmo da maioria –
não é isto o mais importante.
Não
notam estes setores da esquerda que toda forma de corrupção (como ocorre com
aquela mais refinada, objeto central de suas campanhas contra a criminalidade
dourada) tem sempre dois vértices, não se perturbam com as cotidianas e
inúmeras práticas desonestas repetidas e interiorizadas pela maioria das
pessoas, desejosas de atender às exigências e obter os favores e
reconhecimentos de uma sociedade egoística e excludente, que certamente não
aposentou a velha máxima do “levar
vantagem em tudo” [9].
Por que apenas a polícia estaria podre e
seria, a partir de uma suposta reestruturação, transformada, como num passe de
mágica, em uma ilha de honestidade?
Não conseguem ver estes setores da esquerda que o discurso histérico e vazio
contra a corrupção policial é análogo ao discurso mais geral sobre a
criminalidade, selecionando preferencialmente nas classes subalternizadas (de
onde vem a imensa maioria dos agentes policiais) personagens que,
convenientemente estigmatizados, desempenham o papel de maus, para que os
demais possam seguir desempenhando seu papel de “cidadãos de bem”.
Tão
nefasto quanto este discurso estigmatizante contra a corrupção é o discurso,
igualmente simplista e hipócrita, contra a violência policial. Seguindo a linha
da individualização e demonização de alguns autores de condutas definidas como crimes,
como determina a opção pela reação punitiva, limitam-se estes setores da
esquerda a clamar contra a impunidade de policiais acusados de atos violentos
ou a exigir maior rigor em eventuais punições, especialmente diante de ações
mais divulgadas e mais particularmente cruéis, como aconteceu com o massacre do Carandiru, em São Paulo,
com os extermínios coletivos da
Candelária e de Vigário Geral, no Rio de Janeiro, ou com o homicídio
atribuído a um policial militar, em frente ao shopping Rio-Sul, também no Rio
de Janeiro.
Não
percebem que o clima geral de exacerbação do desejo punitivo, que conta com seu
decidido apoio, é o grande incentivador da violência da repressão informal,
dirigida contra aqueles que correspondem à imagem de criminosos. Não percebem
que o apelo à autoridade e à ordem e a ampliação do poder punitivo do Estado – resultado da demanda de maior repressão à
criminalidade – embute uma crescente desumanidade no combate ao crime,
favorecendo o aprofundamento e a crueldade da repressão informal, seja através
da atuação ilegal de agentes policiais, seja através da ação de grupos de
extermínio, seja através de linchamentos.
O
que alimenta a repressão informal, desenvolvida à imagem e semelhança da
repressão formal, é a própria ideologia que sustenta o sistema penal. A ideia
de pena, de afastamento do convívio social, de punição, baseia-se no maniqueísmo simplista, que divide as
pessoas entre boas e más: o criminoso passa a ser visto como o mau,
o outro, o diferente [10], o que irá permitir e alimentar a violência
punitiva realizada fora do direito (a repressão informal). Produz-se, neste
campo, um processo semelhante ao que alimenta a repressão política das
ditaduras, em que a ideia de que é preciso manter a ordem, aqui se traduz na
ideia de que é preciso combater o crime, gerando todo tipo de violência – da tortura
ao extermínio – nas ditaduras, contra os dissidentes, e, nas democracias mais
ou menos reais, contra os “delinquentes”,
vistos como os inimigos, os maus, os perigosos.
Quando
se concilia com a ideia de que o enfrentamento da criminalidade corresponde a
uma situação de guerra, não se pode, ao mesmo tempo, hipocritamente pretender
que os agentes da repressão pautem sua atuação pelo respeito aos direitos de
eventuais violadores da lei. Em guerras, como é sabido, o combate ao inimigo
significa sua eliminação, não parecendo assim lá muito coerente exigir rigorosa
punição para quem, atuando, como se estivesse em guerra, ponha em prática tal ensinamento.
E, não há dúvida de que amplos setores da esquerda parecem convencidos de que o
combate à criminalidade efetivamente corresponderia a uma situação de guerra.
Não bastassem a passiva aceitação da convocação das Forças Armadas para
assumir, no Rio de Janeiro, no final de 1994, as tarefas da segurança pública,
ou a adoção da denominação de Vietnam para lugares supostamente perigosos, tal
concepção fez-se mostrar ainda mais claramente na escolha de oficiais generais
das Forças Armadas para assumirem os cargos de Secretários de Estado na área da
segurança pública, pelos dois Governadores eleitos pelo PT nas últimas
eleições, um deles acabando por exonerar seu Secretário, quando, somente diante
de declarações explícitas de estímulo a uma atuação mais violenta da repressão,
conseguiu perceber a inadequação da escolha.
Os
agentes policiais, que ilegalmente eliminam os supostos criminosos ou suspeitos
com que se defrontam da mesma forma que os integrantes de grupos de extermínio
ou os pacatos cidadãos autores de linchamentos, na realidade, apenas reproduzem
e concretizam a divulgada ideia – que conta com o apoio de amplos setores da
esquerda – de que o combate à criminalidade há que se fazer a qualquer preço,
com leis excepcionais, com condenações sistemáticas (ainda que arbitrárias), ou
até mesmo com lições extraídas da guerra.
Esquecidos
desta sua inconsciente contribuição para o incremento da violência policial e
já acostumado com a fácil e falsa solução penal, os setores criminalizantes da esquerda direcionam suas reivindicações,
neste campo, pelo repisado clamor contra a impunidade, pretendendo pôr fim
àquela violência com o rigor punitivo que querem se despeje contra os policiais
eventualmente alcançados pelo sistema penal. Assim se mobilizam,
prioritariamente, com questões secundárias, simples decorrências de outras
questões maiores, como a pretendida extinção das Justiças Militares Estaduais,
ou, mais modestamente, a transferência para a Justiça comum da competência para
o conhecimento de causas relativas a homicídios atribuídos a policiais
militares.
Dominados
pelo desejo da repressão e do castigo, deixam de lado – como ocorre sempre que
se opta pela monopolizadora e superficial reação punitiva – a questão maior
consubstanciada na militarização da atividade policial, a sugerir, dentre
outros temas, o questionamento da existência de polícias militares, instituídas
como forças auxiliares do Exército, este sim – e não a derivada existência de
uma Justiça especial – constituindo um ponto relevante no debate em torno
daquela atividade, que, entretanto, é bom ressaltar, certamente não se esgota
na forma de realização do policiamento ostensivo e preservação da ordem
pública.
Mantido
o quadro ditado por uma suposta necessidade de combate implacável à
criminalidade, não serão eventuais punições rigorosas, selecionadamente
impostas (como é da regra da imposição de penas), que irão reduzir o elevado
número de homicídios praticados por policiais contra supostos criminosos ou
suspeitos, ou romper com a rotineira permanência da tortura como método de investigação.
A sólida resistência de tais práticas a mudanças políticas gerais ou a trocas
de comandos nas instituições policiais, que nenhuma repercussão apresenta na
redução destes atentados aos direitos fundamentais de conservação da vida e da
integridade física, já bastaria para demonstrar a inutilidade e a injustiça de
medidas que, como o rigor punitivo que aqueles amplos setores da esquerda querem
fazer abater sobre um ou outro policial acusado da prática de tais atentados,
deixam intacta a concepção ideológica
traduzida no desejo geral da repressão e do castigo.
A luta por transformações sociais e a
necessidade de rompimento com a ideologia da repressão
A
adesão de amplos setores da esquerda à ideologia da repressão, da lei e da
ordem, seu interesse por um implacável combate à criminalidade, sua “descoberta” do sistema penal surgem em
um tempo em que os sentimentos de insegurança e o medo coletivo difuso,
provocados pelo processo de isolamento individual e de ausência de
solidarização no convívio social, aliam-se à decepção enfraquecedora das utopias
e à necessidade de criação de novos inimigos e fantasmas capazes de assegurar a
coesão em formações sociais que, com o desmoronamento das traduções reais do socialismo,
não mais têm exigida a demonstração de sua superioridade democrática.
O
quadro vivido neste novo tempo, proporcionando campo extremamente fértil para a
intensificação do controle social, proporciona e alimenta o crescimento da
demanda de maior repressão, de maior rigor punitivo, de maior intervenção do
sistema penal, trazendo desmedida ampliação do poder punitivo do Estado.
Sofrendo mais diretamente aquela
decepção enfraquecedora das utopias, consequente ao desmoronamento das
traduções reais do socialismo, amplos setores da esquerda voltam-se para objetivos
mais imediatos, abandonando a perspectiva de construção de uma nova sociedade e
se entregando a um pragmatismo político extremamente distante dos princípios e
ideais que a viram nascer.
O
equivocado discurso sobre a criminalidade, encerrando a entusiasmada crença no
sistema penal e as reivindicações repressoras, na linha deste pragmatismo
político-eleitoral, sem princípios e sem ideais, favorecedor da ampliação do
poder punitivo do Estado, hoje faz de amplos setores da esquerda uma
reacionária massa de manobra da “direita penal” e do sistema de dominação
vigente, parecendo dar suporte aos que enganadoramente sustentam que a
contraposição entre direita e esquerda teria perdido sua razão de ser.
Entretanto,
esta contraposição, certamente, ainda se faz fundamental [11]. A ordem injusta
de sociedades não igualitárias, nas quais os privilégios dos que se coloca no
topo da escala social se contrapõem às privações e às discriminações sofridas
pelos que são subalternizados, o isolamento egoísta e a desumana falta de
solidarização no convívio entre as pessoas que avultam nas sociedades
contemporâneas, certamente, estão a clamar por que se reavive a generosidade
dos ideais de transformação social para construção de sociedades melhores e
mais justas, que historicamente distinguiram as lutas da esquerda.
A
compreensão de novas contradições que se põem nas sociedades contemporâneas e o
rompimento com as diversas formas de autoritarismo, que desvirtuaram a
concretização do socialismo, são passos indispensáveis na necessária retomada
do caminho histórico das lutas da esquerda pela transformação social, pela
construção de sociedades melhores e mais justas, que, sendo mais generosas e
solidárias, necessariamente devem ser mais tolerantes.
Este
caminho transformador não pode ser trilhado com a reprodução dos mecanismos
excludentes característicos das sociedades que se quer transformar. Não há como
alcançar sociedades mais generosas e solidárias, utilizando-se dos mesmos
métodos que se quer superar.
Quando
se aceita a lógica da reação punitiva, está se aceitando a lógica da violência,
da submissão e da exclusão, em típica ideologia de classe dominante – ideologia
presente nos trágicos e nefastos equívocos que conduziram às perversidades
totalitárias do socialismo real. Convivendo com a dominação, ao
contraditoriamente pretender aprofundar a democracia através da ditadura do proletariado,
assim apenas substituindo a dominação de uma classe pela dominação de outra (ou
de seus supostos representantes), certamente não poderia a proposta socialista
assim materializada representar a tradução dos generosos ideais transformadores
e emancipadores de que nasceu a esquerda.
Uma
esquerda adjetivável de punitiva, cultivadora da lógica antidemocrática da
repressão e do castigo, só fará reproduzir a dominação e a exclusão cultivadas,
seja na formação social capitalista, seja na contrafação do socialismo, que se
fez real.
Na
retomada da utopia e das lutas pela transformação social, não há lugar para tal
esquerda. A realização dos generosos e solidários ideais igualitários, que a
todos assegure o atendimento das necessidades fundamentais para a sobrevivência
e as mesmas oportunidades de acesso às riquezas e ao desenvolvimento pessoal,
há que se fazer de forma a estabelecer a síntese que incorpore os ideais libertários,
asseguradores da livre expressão e realização dos direitos da personalidade de
cada indivíduo.
O rompimento com a excludente e
egoística lógica do lucro e do mercado há que ser acompanhado do rompimento com
qualquer forma de autoritarismo, para que a bens econômicos socializados
corresponda a indispensável garantia da liberdade individual e do direito à
diferença, para que a solidariedade no convívio supere e afaste a crueldade da
repressão e do castigo, para que um exercício democratizado do poder faça do
Estado tão somente um instrumento assegurador do exercício dos direitos e da
dignidade de cada indivíduo.
(*) Ensaio
publicado na Revista discursos
sediciosos – crime, direito e sociedade nº 1, ano 1,
1º semestre 1996,
Relume-Dumará, Rio de Janeiro, páginas 79 a 92.
Notas e Referências:
[1]
Veja-se, a propósito a furiosa e inaceitável reação de Betinho à absolvição do
ex-Presidente
Collor, manifestada
em artigo publicado à pág.9 da edição do dia 19 de dezembro de 1994, no Jornal
do Brasil, em que, talvez revoltado por não encontrar seus “bons magistrados”,
condenadores implacáveis e severos, não se detinha na crítica discordante da
decisão, arvorando-se em julgador do próprio Supremo Tribunal Federal.
[2] Sobre
a invulnerabilidade dos poderosos, deve ser consultada a obra de
Zaffaroni, en busca de las penas perdidas, Buenos Aires, Ediar, 1989,
especialmente os comentários constantes à pág.113.
[3] Veja-se
no ensaio de Hans Magnus Enzensberger, reflexões diante de uma
vitrine, in Revista USP, nº 9, São Paulo, março/maio 1991, ps.9/22,
seus comentários a respeito dos sentimentos coletivos de necessidade da
identificação de culpados e de satisfação e alívio com a condenação, que, vista
como o reconhecimento da culpabilidade, gera a sensação de inocência para
aqueles que não foram condenados. Mostra Enzensberger que “para o indivíduo, a condenação de outro – de modo geral um criminoso é
sempre considerado como este ‘outro’ – equivale a uma prestação de contas. Quando
se é culpado, se é castigado. Portanto, quando não se é castigado, se é
inocente (…) Quanto mais aumenta a culpabilidade coletiva, mais seus
encadeamentos são difusos, mais anônimas e invisíveis as suas fontes, mais se
torna urgente levar o peso a indivíduos isolados e facilmente reconhecíveis.”
[4] No
que concerne às práticas de corrupção, pense-se, em nossa história recente, no
desvio das atenções provocado, seja pela satisfação com eventuais punições,
seja pelas campanhas por que estas se efetuem, a tirar de cena a discussão de
questões como a instrumentalização do aparelho estatal e sua colocação a
serviço de interesses privados (pessoais ou de grupos), a privatização de
recursos públicos, as privilegiadas relações entre os detentores do poder
econômico e o Estado, que, dentre outros fatores, favorecem e determinam
aquelas práticas.
[5] Bastante
ilustrativa é a afirmação que inicia o artigo de Cid Benjamin às págs.6/10 do
nº 23 da revista teoria e debate (jan-fev/94) – polícia-um caso
de polícia – de que a razão mais imediata da descoberta da necessidade de
discussão de questões relacionadas com a criminalidade encontrava-se na
possibilidade do PT ganhar as eleições para a Presidência da República e para
Governos Estaduais.
[6]
Sobre a internacionalização da política de drogas e o reforço da dominação
norte-americana sobre a América Latina, vejam-se as análises de Rosa del Olmo
em la cara oculta de la droga, Temis, Bogotá, 1988.
[7] Veja-se,
neste sentido, o artigo de Cid Benjamin já citado.
[8] Editorial
de primeira página de o globo, da edição de 25/11/94, a dizer que: “(…) Um
desses objetivos, mais importante do que a apreensão de qualquer quantidade de
drogas ou armas, é a reavaliação, pelo morador honesto das comunidades
carentes, de suas relações com a autoridade pública, com o Estado. No quadro
geral, as operações militares só têm contribuído para tornar esse objetivo mais
próximo a cada dia.”
[9] Neste
ponto, é interessante mencionar a experiência certamente muitas vezes vivida
por todos que militamos como profissionais no campo do Direito, de sermos
procurados por quem quer que tenha uma causa ajuizada, ansioso por saber se
conhecemos o juiz a quem coube seu exame, se pode falar-lhe, angariar sua
simpatia, fazer com que ouça com maior atenção e carinho os argumentos daquela
parte. São cidadãos que se julgam honestos (muitos deles até de esquerda),
revoltados com a corrupção, admiradores das condenações severas e implacáveis,
que talvez apenas esqueçam, por um momento, de sua decantada honestidade,
ofuscada por seus respeitáveis interesses, que não deixam que estes honestos
cidadãos hesitem em solicitar simpatias parciais de quem, para julgar com honestidade,
deve ter, acima de tudo, preservada sua imparcialidade.
[10] Veja-se,
a propósito, o texto de Hans Magnus Enzensberger, já aqui citado.
[11] Sobre
a permanência e atualidade da distinção entre direita e esquerda, é,
certamente, indispensável a leitura do livro de Bobbio: Direita e Esquerda-razões e Significados De
uma Distinção Política, São Paulo, Unesp, 1995. "