Por Fran Alavina
Data 23/03/2017
Artigo publicado originalmente no site Outras Palavras
“Villas, Pondés [e Karnais] e afins são produtos de uma
época sombria. Nunca criticam estruturas. Diluem, em favor da rapidez e do
simplismo, o tempo e esforço exigidos pelo trabalho do pensamento”
Não é de hoje que os intelectuais passaram a exercer uma função midiática
para além das antigas aparições públicas, nas quais a fala do acadêmico se
apresentava como um diferenciador no âmbito do debate público. Entre a
tagarelice das opiniões de pouca solidez, porém repetidas como se certezas
fossem, a figura do conhecedor, do estudioso, ou mesmo do especialista surgia
como um tipo de freio às vulgarizações e distorções do cotidiano. Não que isso
representasse uma alta consideração e respeito da mídia hegemônica em relação
ao conhecimento acadêmico, uma vez que a fala do intelectual ao se inserir em
um debate cujas regras lhes são alheias facilitava a distorção de suas falas,
todavia mantinha-se a diferença explícita entre o conhecimento e
a simples informação.
Ademais, a identificação dos intelectuais com certas causas os afastavam
do centro do poder e de seus bajuladores: os donos da mídia. Tal representava
um entreve por princípio. Era melhor não chamá-los a ocupar um espaço voltado
para um público amplo. Entre uma fala e outra surgiria a criticidade que a
mídia hegemônica procurava “amansar”. Quando era inevitável ceder-lhes espaço,
suas falas nunca poderiam ser identificadas com a informação, nem apresentada
na forma da informação. Isto era o signo divisor, como que dizendo: “não liguem muito, é coisa de intelectual (…)”.
Nos últimos anos, contudo, essa diferença (entre conhecimento e informação,
entre o papel do intelectual e a função midiática) não apenas se esgarçou, como
se tornou quase nula. Por isso, hoje estamos diante de um novo tipo de
intelectual: o intelectual homologado.
Este tipo de intelectual surge nos espaços da mídia hegemônica como uma
espécie de adendo à informação, um plus, pois o saber, representado
pela sua presença, que supostamente emprestaria prestigio às notícias é dado
sempre na forma da informação, portanto descaracterizando os elementos que
constituem qualquer tipo de conhecimento. Ou seja, sobre critérios que fazem do
saber um não saber. Dilui-se na torrente informacional midiática o tempo
demandado e o esforço necessário exigidos pelo trabalho do pensamento, em favor
da rapidez e do simplismo. Porém, tais aspectos, embora importantes, não
configuram o fator determinante da homologação.
Estes intelectuais são homologados na medida em que suas falas públicas
têm aparente criticidade e profundidade. Em verdade, nunca dizem algo que seja
contra os interesses dos meios midiáticos que lhes dão guarida, nunca fazem um
crítica profunda que mexa com as estruturas mais acomodadas do seu público,
pois este já não é mais uma plateia que dá ouvidos às palavras do homem de
saber, mas um grande fã-clube que ele não pode jamais
desapontar. A formação deste fã-clube impede a autonomia que caracteriza o
sujeito de saber. Desse modo, não se estabelece, de fato, uma relação que
enseja conhecimento, mas uma relação de poder, na qual o liame é a
dependência entre os ditos e gestos e a obediência na forma do consentimento
Tanto é assim que nos raros momentos em que o fã-clube do intelectual
homologado se volta contra ele, o objeto da “revolta” não é de cunho teórico,
ou seja, não é um debate sobre suas obras ou suas ideias, porém diz respeito a
um fato de sua vida privada. Seus fãs exercem uma vigilância policialesca, como
os fãs de qualquer astro pop, pois a relação se, por um lado, exige
o consentimento, por outro lado, faculta a vigilância aos que consentem. A
figura do intelectual homologado traz consigo uma legião de homologados
intelectuais. Ora, não foi isto que ocorreu nos últimos dias, com a pantomima
em torno de uma foto postada nas redes sociais pelo nosso mais bem acabado
exemplo de intelectual homologado?
Como a celebridade pop que depois de
flagrada fazendo algo que desagradou aos seus fãs, foi obrigado a redigir um
pedido de desculpas. Na “prestação de contas” ao seu fã-clube deixou-se escapar
toda a vaidade e o exibicionismo. Ele dividiu o mundo entre aqueles que o amam
e aqueles que o odeiam. Crença típica das celebridades midiáticas, segundo a
qual uma vez alcançada o posto de famoso, as pessoas ou o invejam, ou lhes
prestam deferência. Qualquer coisa fora desse script é visto
como algo sem sentido. Em alguns casos são críticos das religiões, mas agem
como os pastores que criticam, formando um rebanho não pequeno. O que atesta
que se trata de uma relação de poder, e de um poder sedutor, pois travestido de
saber.
O grande fã-clube reforça a secular vaidade dos intelectuais, que hoje
já não medem mais o êxito de suas carreiras pela qualidade de suas publicações,
ou por terem se tornado referência em suas áreas, ou mesmo pelo número de
citações de seus trabalhos em outros estudos. O produtivismo do currículo lattes não
lhe sacia mais. O êxito e a qualidade são confundidos com o sucesso de público,
a qualidade mede-se pela quantidade de curtidas que suas páginas virtuais
possuem, pelos vídeos postados que se tornam virais e pelo maior número de
palestras pagas que podem amealhar. Embora, na maioria dos casos, suas
formações e carreiras sejam devidas ao sistema público e gratuito de ensino
superior, ao venderem palestras e workshops pagos e fora das
universidades públicas, além de distorcerem a função social do saber, tornam-se
um tipo de mercadoria. Por conseguinte, expressam a ideologia neoliberal
segundo a qual todo indivíduo é um empreendedor de si mesmo. Como
empreendedores, eles se vendem para um público determinado, cujo nicho de
mercado descortinou. Tal é o caráter mercadológico que perpassa a atividade do
intelectual homologado.
Em alguns casos, seus discursos públicos e “intervenções” parecem ter
uma singular acidez crítica. Porém, se trata de uma semelhança aparente, o
intelectual homologado tem um efeito placebo sobre o grande
público, sua crítica nunca visa a raiz das coisas, mas alguns aspectos
modísticos, oportunistas. Aceitando a homologação, seu papel é entreter,
desviando a atenção do público com base no conhecimento e na posição que
lograram.
Dessa maneira, suas falas podem ser confundidas com apresentações de stand-up
comedy. Sabem animar auditórios como poucos. O intelectual homologado, com
efeito, é o produto mais recente da indústria cultural. Tal figura, típica do
farsesco debate público contemporâneo, contudo não surgiu do nada. Embora seja
uma figura recente, o intelectual homologado é precedido por uma
história própria da intelectualidade e suas determinações de classe. Ainda que,
muitas vezes, ele queira se apresentar como alguém que fala de fora e acima do
corpo social, assim observa sem sujar as mãos, supondo uma posição privilegiada
e imparcial, quase sempre tende a repetir, sob o manto do discurso abalizado, a
visão parcial de sua classe social.
O intelectual homologado é precedido pela figura do intelectual
orgânico que outrora se comprometia com um projeto nacional-popular;
este, um pouco depois, deu lugar ao intelectual engajado. Já nos
anos 1990, verificou-se o silêncio dos intelectuais após o fim
das utopias e a derrota histórica das formas alternativas de organização social
até então constituídas. Esta derrota histórica e este silêncio, que apareciam
como um gesto de mea culpa, formaram um interdito que reduziu os
objetos do discurso público do intelectual, objetos que à medida que diminuíam
de dimensão propiciaram a identificação do intelectual com o especialista. Tal
se configurou, primordialmente, na figura do economista. Todavia, depois da
crise mais recente do capital, a fala pública do economista perdeu crédito,
surgindo em seu lugar o intelectual homologado que na maioria dos casos são
homens saídos das ciências humanas, mais particularmente da filosofia, da
história e da educação. Por enquanto, os geógrafos, antropólogos, e parte dos
cientistas sociais, parecem resistir à homologação, ainda que ela seja
extremamente sedutora.
Pasolini, em seus textos corsários e luteranos,
que tinham como objeto a Itália dos anos 1970, já diagnosticava a figura do
intelectual homologado como um produto que perduraria por longo tempo no espaço
público, pois sua vitalidade se alimenta justamente de um crescente
anti-intelectualismo. Enquanto a postura do intelectual requer algo contrário
do que aí se apresenta, se aceita o simulacro como se fosse a própria coisa. A
tagarelice do intelectual homologado, que discursa sobre tudo por medo de ser
esquecido, não é o fim do silêncio dos intelectuais, mas sua confirmação.
Quanto mais falam, mais se mostra sobre o que silenciam.
Entre nós, não faltam casos ilustrativos. Como vivem da imagem midiática
que construíram, os intelectuais homologados apresentam-se com certo aspecto
caricatural, como o personagem que se identifica pelo bordão. O historiador da
UFSCar [Marco Antônio Villas], por exemplo, quase sempre se apresenta em tom elevado, dedo em riste, e
no auge de suas “intervenções” mais acaloradas não fica com um fio de cabelo
fora do lugar. Bate-boca e indisposição com políticos de esquerda, como se isto
fosse sinal do bom debate, é o diferencial de seu produto. Já o filósofo do
politicamente incorreto ressuscitou o cachimbo como secular excentricidade do
intelectual. Perfazendo uma imagem que beira o kitsch, com
frequência posta vídeos em que aparece fumando (talvez seja este o signo do
politicamente incorreto?!) e cercado de livros que lhe emprestam a áurea de
sabichão.
Seria apenas cômico, se não configurassem a expressão trágica do
pensamento fácil. O intelectual homologado é o último estágio
da miséria dos intelectuais. Indica a perda de dignidade do pensamento crítico,
na verdadeira acepção do termo, e, talvez, o vislumbre de sua derrota.