Por Almir Felitte
Artigo publicado originalmente no site Justificando
Há quem diga que a América Latina é composta,
majoritariamente, por “Repúblicas das
Bananas”, países com frágeis democracias que não costumam durar muito tempo
até que um golpe as derrube. Aliás, rompimentos com a ordem democrática não
faltam na história latina, quase sempre sob a tutela de uma potência
imperialista, é verdade. Se entre os anos 60 e 80 o continente viveu uma
epidemia de ditaduras militares com o amplo apoio político-financeiro dos EUA,
tudo indica que o início do novo século trouxe consigo uma onda de golpes
jurídico-parlamentares para a região.
Um dos primeiros exemplos mais recentes aconteceu em 2009, quando
o Presidente Zelaya foi deposto, em Honduras, por um golpe militar. Na ocasião,
o governante oriundo de classes altas adotava políticas econômicas consideradas
liberais, até que os efeitos da crise de 2008 o levaram a aproximar-se da ALBA,
aliança de países bolivarianos. A convocação de um referendo que chamava o povo
a opinar sobre uma Assembleia Constituinte foi o estopim para que os militares
depusessem Zelaya, levando-o em um avião à força para a Costa Rica.
Na época, a deposição teve sua justificativa legal no fato de que
a Constituição do país não previa consultas populares, configurando crime de
lesa-pátria. Na mesma semana, sob acusações de interferência norte-americana, o
novo governo fez uma série de concessões de territórios e bens naturais ao
capital privado. Desde então, sob o mandato do partido direitista PNH, Honduras
assistiu a uma escalada na violência estatal, que tem como símbolo o
assassinato da líder indígena Berta Cáceres, bem como um forte aumento no
desemprego e nos índices de corrupção.
Já abril de 2017 mostrou que as feridas do golpe paraguaio, de 5
anos atrás, ainda estão abertas. Vale lembrar que, entre 1954 e 1989, o país
sofreu com a ditadura do colorado Stroessner, cujo partido continuou no poder
mesmo após a redemocratização. Em 2008, o esquerdista Fernando Lugo, da Frente
Guasú e com fortes conexões com os movimentos camponeses, finalmente rompeu os
quase 60 anos de hegemonia do Partido Colorado ao vencer as eleições
presidenciais. Mas como as semelhanças não são mera coincidência, para tanto,
Lugo aliou-se ao Partido Liberal Radical Autêntico, de centro-direita, que
nomeou o vice da chapa, Federico Franco.
Não tardou para que o PLRA, em pleno mandato, rompesse com o
presidente de esquerda e participasse de um golpe parlamentar relâmpago, em
2012, que o depôs em menos de 48 horas, assumindo o vice, Franco. Na eleição
seguinte, o Partido Colorado voltaria ao poder com o atual Presidente, Cartes,
que passou a articular uma emenda constitucional que possibilitasse a
reeleição, gerando a revolta dos partidários do PLRA que queimaram o Congresso
na última semana. O curioso é que a medida poderia favorecer a esquerda, já que
Lugo desponta nas pesquisas populares como favorito no próximo pleito.
Mas talvez o caso mais emblemático de instabilidade na política
latina se dê na Venezuela, desde que Hugo Chávez venceu sua primeira eleição,
em 1999, prometendo um processo revolucionário no país. Em 2002, já reeleito
após a promulgação de uma nova Constituição, setores da direita, aliados a
mídia hegemônica do país, orquestraram uma tentativa de golpe de Estado na qual
Chávez chegou a ser preso e deposto. Mas o afastamento durou apenas 48 horas,
já que a enorme resposta popular obrigou a oposição a restituir o presidente ao
poder.
Chávez se reelegeria em 2006, em um processo que, embora
legitimado pela OEA, foi questionado por seus opositores, prática que se
tornaria recorrente pela direita latina, cujo representante venezuelano é Capriles,
dono do maior diário do país, além de cadeias de rádio e de uma emissora de TV.
Com a morte de Chávez em 2013, coube ao vice, Maduro, manter o legado de
redução das desigualdades sociais. Mas com pouco carisma e uma enorme falta de
habilidade política, seu sucessor acabou por perder o controle do país, que
afundou numa grave crise humanitária e econômica cheia de episódios grotescos
protagonizados tanto pelo governo quanto pela oposição.
No último deles, o Legislativo, dessa vez com maioria opositora,
negou-se a acatar ordens da Suprema Corte para afastar deputados eleitos
mediante fraude. Como resposta, a Corte avocou poderes próprios do Legislativo
para si e para o Executivo, no que a OEA considerou ser mais um golpe contra a
democracia no país.
Já no Equador, Lenin Moreno, do esquerdista Alianza País, acaba de
vencer as eleições prometendo continuar com os avanços sociais conquistados por
seu antecessor, Rafael Correa. Enquanto isso, Lasso, do direitista CREO,
derrotado no pleito, diz não aceitar o resultado das urnas, alegando fraude
eleitoral. Mais ao sul, na Argentina, Macri tão logo assumiu a presidência e
iniciou um trabalho de desmonte da Lei de Meios, que prometia acabar com os
oligopólios que controlam a mídia no país. Ao mesmo tempo, a alta inflação e a
crise econômica têm levado milhares de peronistas às ruas contra as políticas
liberais do Presidente.
O Brasil, por sua vez, do golpe militar de 1964 ao impeachment de
Dilma em 2016, dispensa apresentações sobre seu relacionamento turbulento com a
democracia. Mas mesmo em períodos de calmaria, o país já apresentava a terceira
maior população de pessoas privadas de liberdade do mundo, além de uma das
polícias mais letais com estatísticas dignas de uma ditadura. Tudo sob o crivo
de uma Constituição dita Cidadã e um Estado Democrático de Direito.
Mas a exposição dos fatos acima não trata de endeusar a esquerda
latina como uma nobre defensora da democracia. É fato que governos
progressistas de esquerda possibilitaram uma onda de redução das desigualdades
sociais jamais vista no continente. Porém, é verdade também que os países
latinos ainda ocupam, ao lado dos africanos, as piores posições no ranking do
índice de Gini, coeficiente que mede as desigualdades sociais no mundo. Além
disso, basta uma breve análise do sistema carcerário das Américas para
constatar que nenhum Estado latino, à esquerda ou à direita, tem grande apreço
pelos Direitos Humanos.
A questão que se quer levantar, na verdade, são os limites,
premeditados ou não, do sistema democrático para atender os anseios de centenas
de milhares de latinos que não enxergam nem no Estado nem no livre mercado a
possibilidade de construção de uma sociedade mais justa e igualitária. É certo
que o conceito de democracia é mais antigo que a própria burguesia, remetendo
aos tempos da Grécia Antiga. O sistema, porém, permaneceu em coma por séculos,
até ser despertado por uma série de revoluções burguesas que puseram fim aos
Estados absolutistas e ao colonialismo, como a Revolução Francesa e a
Independência dos EUA.
Coube a burguesia, então, recriar o conceito de Estado
Democrático, pautado no capitalismo, ora liberal ora sujeito ao controle
centralizado de um governo, mas sempre subordinado aos interesses da classe. E
não há dúvidas que o sistema rendeu frutos e criou sistemas altamente
igualitários em países europeus ou com forte poderio econômico nos EUA. Mas não
se pode deixar de lado o fato de que essas democracias sobreviveram à base de
exploração de países periféricos, como no caso do colonialismo europeu, que só
chegou ao fim há cerca de 50 anos, ou do intervencionismo bélico
norte-americano.
Quando se analisa a situação latina de forma mais próxima, vê-se
que todos os golpes acima citados se utilizaram de institutos essencialmente
democráticos para atender aos interesses de uma elite política ou econômica.
Desde impeachments, passando por atos legais de Parlamentos, até às absurdas
intervenções militares constitucionais, cada golpe teve seu fundamento em algum
mecanismo das democracias burguesas para derrubar projetos e governos de amplo
apoio popular. No recente caso hondurenho, por exemplo, a elite que praticou o
golpe chegou ao ridículo de defender a tese de que uma consulta popular seria
um atentado à democracia, demonstrando que o conceito não abrange
verdadeiramente a vontade do povo como um todo.
As
democracias têm mais a oferecer aos latinos do que regimes despóticos ou
autoritários, mas esbarra nas oligarquias burguesas de um continente que
construiu toda sua história em cima de uma grande desigualdade entre classes e
nações.
Desse modo, resta à América Latina a luta pela construção de uma sociedade
pautada no poder popular e na autogestão, livre dos interesses do capital e de
Estados estrangeiros, e que caminhe para o fim das divisões entre classes
sociais. Exemplos de tentativas no mundo não faltam, como os territórios
zapatistas, no México, ou o movimento curdo no Oriente Médio.
Mas a construção dessa utopia exige algo que, ao menos no Brasil,
está em falta: ampla mobilização popular.
Não se pode menosprezar a pressão que as democracias capitalistas exercem sobre
seu próprio povo no sentido de desinformar e desmobilizar. Por isso, antes de
pensar na construção de um novo sistema, é necessário forçar algumas reformas
dentro da própria democracia burguesa brasileira como a desmilitarização das
polícias, a democratização da mídia e do Poder Judiciário, além de políticas
que tragam maior equilíbrio e menor interferência do capital nos processos
eleitorais, essenciais para o início de uma reação popular.
O sistema democrático vigente no Brasil, e pelo que pode se
observar, também na América Latina, privilegia as classes dominantes e passa
por cima de direitos e vontades do povo. A polícia que mata mais de 3 mil
pessoas por ano, o Judiciário que encarcera cerca de 700 mil brasileiros, o
Congresso que tolhe direitos trabalhistas, as agências regulatórias que são
sistematicamente ocupadas por figurões do setor privado e a mídia que omite e
desinforma são instituições típicas da democracia. Isso levanta ao menos uma
dúvida: tais instituições estão
funcionando de forma errada ou simplesmente cumprem o papel para o qual foram
criadas?