O início do pensamento filosófico na Grécia Antiga


Por Wesley Sousa - estudante de Filososia pela UFSJ.

Com a crise no pensamento mítico no mundo Grego Antigo, o mito como forma de explicação da realidade, porque há algo de divino no mundo com algo mundano nas divindades. Perdendo sua força, o mito começa a dar origem à outra forma do pensamento humano: o pensamento filosófico.

O mito foi predominante durante muito tempo na cultura grega ocidental. Com finalidade do relato de um acontecimento em tempo determinado e primordial, um princípio qual de algum Ente Sobrenatural. E Jean-Pierre Vernant sublinha que: “Na sua presença num cosmos cheio de deuses, o homem grego não separa, como dois campos opostos, a natureza e o sobrenatural, permanecem intrinsecamente ligados um ao outro (VERNANT, 1992, p. 12).

A estrutura mítica, por assim dizer, teve percalço que obedecia a certas imposições coletivas restritas. Na época helenística tal concepção das relações mútuas de forças entre Entes Sobrenaturais, a natureza e até mesmo os homens, ou seja, a sociedade, para aquilo que seriam ou deveria ser.

A narrativa mítica não era apenas formulações em que os poetas faziam para explicar fenômenos da realidade. Tais narrativas exprimiam e codificavam acontecimentos reais e de aspirações morais na sociedade primitiva. Bruno Snell escreve no livro A Descoberta do Espírito (1992) que,

“Em Homero, os deuses originam toda a nova mudança no curso ordinário dos acontecimentos: a Ilíada começa com a peste enviada por Apolo; Agamenon é então induzido a devolver Criseida e a pedir como compensação Briseida, provocando assim a ira de Aquiles. Deste modo se põem em andamento os acontecimentos da epopeia.” (SNELL, 1992, p. 53).

A principal característica dos filósofos pré-socráticos (como ficaram conhecidos todos aqueles que vieram antes de Sócrates) é o estudo da physis, palavra grega que significa “o princípio da evolução e do progresso das coisas na natureza”.  Nesse contexto a palavra “princípio” tem um papel fundamental para entendermos a grande mudança que se opera na passagem do pensamento mitológica para o filosófico. Quando buscamos o princípio de alguma coisa estamos, na verdade, buscando duas coisas: como ela veio a ser e o que faz com ela seja o que é.

 Contudo, uma forma particular de cada representação implica em uma divindade um modo de manifestação aos humanos e exercendo através de suas imagens, tipo de poder sobrenatural constituído neste domínio que Vernant pontua que, segundo modalidades diversas, mito, figuração, ritual, operam todos no mesmo registro do pensamento simbólico, isto é, compreendendo-se a associarem-se a fazerem com que cada religião um conjunto no qual retornando as palavras de Georges Dumérzil: ‘Conceitos, imagens e ações articulam-se e formam, por suas ligações, uma espécie de rede na qual, de direito, toda a matéria da experiência humana deve prender-se e se distribuir’ (VERNANT, 1992, p. 33).

Na Ásia Menor (hoje território turco) inicia-se o pensamento filosófico, mas ainda vigente, portanto, o pensamento mítico. Na Grécia de então começavam a se concretizar as cidades-estados (polis), organização que levaria seus habitantes a uma convivência mais estreita que na atividade agrícola em propriedades esparsas.

 Nesse sentido, John Burnet acredita que os primeiros filósofos foram os primeiros a terem o pensamento cientifico na busca pela base comum de tal matéria constituinte do cosmos. Aquilo que viera e pudera retornar:

“Ora, a ciência jônica foi introduzida em Atenas por Anaxágoras, aproximadamente na época em que nasceu Eurípides, e há indícios suficientes de sua influência sobre o dramaturgo. É significativo que, num fragmento que retrata o caráter abençoado de uma vida dedicada à investigação científica (icrmpía [história]), ele use os mesmos epítetos, ‘sempre-novo e imortal’, aplicados por Anaximandro à substância primordial única, e que os associe com o termo qrúcrtç [physis] (natureza).” (BURNET, 2006, p. 26).

Na analise aqui adotada pelo Burnet, ele tenta apresentar a premissa em que o pensamento filosófico se dá pela ciência, o saber sistematizado da coisa, ou seja, neste caso, da physis, o mundo físico necessariamente. Concernente a isso, o autor explicita:

“Não há em tudo isso qualquer vestígio de especulação teológica. Vimos que houvera uma ruptura completa com a antiga religião egeia e que o politeísmo olímpico nunca teve uma influência sólida sobre a mente dos jônios. É, pois, um grande equívoco buscar as origens da ciência jônica em qualquer tipo de ideia mitológica. Sem dúvida, havia muitos vestígios das crenças e práticas mais antigas nas partes da Grécia que não estiveram sob o domínio dos povos do norte, e logo veremos como se reafirmaram nos mistérios órficos e de outros tipos. Mas o caso da Jônia foi diferente.” (BURNET, 2006, p. 29).

Vale atentar o fato que o pensamento mítico e a origem do pensamento filosófico se deram de maneira gradual, mas, por outro lado, a decadência do pensamento mítico não fora extinto ao florescer do pensamento filosófico propriamente dito. Isso fica evidente, portanto, quando consultamos os primeiros “filósofos” – termo colocado assim inicialmente por Platão – que Mircea Eliade salienta:

“Veremos, entretanto, que a “desmitificação” da religião grega e o triunfo, com Sócrates e Platão, da filosofia rigorosa e sistemática, não aboliram definitivamente o pensamento mítico. Além do mais, é difícil conceber o ultrapasse radical do pensamento mítico enquanto o prestígio das “origens” permanece intacto e enquanto o esquecimento do que se passou in illo tempore – ou num mundo transcendental – é considerado o principal obstáculo ao conhecimento ou à salvação. Veremos que Platão ainda adere a esse modo de pensamento arcaico. E na cosmologia de Aristóteles sobrevivem ainda veneráveis temas mitológicos” (ELIADE, 1972, p.101).

Os cosmólogos – assim chamados os primeiros filósofos – tinham como base central de investigação, em síntese, a contestação da forma originária da meteria constitutiva de mundo, isto é, a matéria fundamental a qual tudo iniciara e nela retornaria.

Um autor que irá opor-se a esta visão em que o pensamento filosófico se dá pela origem do pensamento cientifico de Burnet, pontuando-a como “anacrônica”, é F. M. Cornford.  Ele salienta que a distinção entre experiência e experimentação distingue-se pelo modo que os primeiros pensadores fazia suas postulações. Assim expressa ele:

“Por detrás dessa sugestão está o pressuposto de que as perguntas que fizeram a si mesmos, as razões que presidiram às suas investigações e os lugares onde tentaram encontrar as origens do conhecimento eram os mesmos então que são hoje.” (CORNFORD, 1989, p. 6).

             Burnet apresenta um argumento da experiência em que Empédocles (Séc. V a.c) com a clepsidra (segundo Cornford, “descrição do vaso e das experiências que se encontra na nota W. K. Guthrie ao de Caelo de Aristóteles, 294b20, onde se reproduz um vaso deste tipo existente”. Nota do autor). Burnet segue argumento que “também não é verdade que os gregos não fizeram uso da experimentação. O surgimento do método experimental data da época em que as escolas de medicina começaram a influir no desenvolvimento da filosofia.” (BURNET, 1992, p. 37).

E Cornford dirá explicitamente, de forma contrária, a falha do argumento, ou seja, devemos “concentrar a nossa atenção nos elementos que nos parecem estranhos e inexplicáveis” (CORNFORD, 1989, p.7):

“Burnet descreve estas experiências como tendo levado à descoberta que ‘o ar era uma substância com características próprias’ e que ‘o ar não era nem fogo condensado nem água rerefeita’. Não vejo como possam ter provado este ultimo ponto ou qualquer outro, para além do fato que o ar é que ‘qualquer coisa – um corpo capaz de resistir á pressão ou de aguentar um peso – não o ‘nada’ ou o ‘vácuo’ com os quais tinha anteriormente sido confundido.” (CORNFORD, 1989, p. 8).

O argumento de Burnet, na perspectiva de Cornford, é insatisfatório, pois, “Empédocles limitou-se a tirar a conclusão explícita: ‘o vaso não pode estar simplesmente vazio; o ar dentro dele não pode ser nada’.” (CORNFORD, 1989, p. 8). Assim, Cornford diz que Empédocles fez uso da clepsidra para somente corroborar sua teoria da respiração. Embora Empédocles fosse “filósofo”, ele era também médico, e tal experiência era para sustentar sua “analogia”, ou seja, “sua descrição fisiológica da respiração, assim como à doutrina cosmológica que o ar é uma substância corpórea.” (CORNFORD, 1989, p. 11).

O importante saber que ambas as visões são amplamente difundidas. O argumento de Burnet se fundamenta em pensadores que realizaram o exercício das experimentações, tal como fizeram Empédocles, Anaxímenes entre outros. O nascimento do pensamento filosófico começa, a partir daí a se consolidar como um meio de reflexão a partindo da pysis, ou seja, da “natureza”.

“Se passamos em revista o Epicurismo foi para demonstrar que a Filosofia Iónica da natureza não foi menos dogmática na sua forma final do que tinha sido nos seus inicios em Mileto. Entretanto discutira-se muito a questão de o homem ser ou não ser capaz de atingir o conhecimento exato e, no caso de o ser, em que campos e por que processos.” (CORNFORD, 1989, p. 101).

O desenvolver do pensamento filosófico, para Burnet, pode ser descrito como Platão discorrera no livro “Fédon”, cujo explicita as opiniões de caráter científico dos filósofos. Ainda comenta que Aristóteles tinha uma descrição desses pensadores menos histórica que as platônicas.

“Ele quase sempre discute os fatos do ponto de vista de seu próprio sistema, e esse sistema, baseado na deificação da aparente rotação celeste diurna, fez com que lhe fosse muito difícil apreciar visões mais científicas. Aristóteles mostra-se convencido de que sua filosofia realiza tudo o que os filósofos anteriores haviam almejado e, por conseguinte, os sistemas destes são vistos como tentativas “balbuciantes” de formulá-la. Também convém notar que Aristóteles vê alguns sistemas de modo muito mais complacente do que outros. Ele é nitidamente injusto para com os eleatas, por exemplo. De modo geral, sempre que entram em jogo considerações matemáticas, é um guia pouco fidedigno.” (BURNET, 2006, p. 51).

E Cornford, de forma contrária a visão de Burnet, argumenta que quando Aristóteles, em sua exposição, faz da teoria o passo seguinte ser a generalização baseada na pura experiência, atingiria o posterior da razão ou causa, pois “Toda essa descrição parece ter sido baseada nos processos de fato seguidos pelos médicos de espirito mais cientifico”. (CORNFORD, 1989, p. 100).

Isso porque, segundo o próprio autor, essas observações individuais deduziram conclusões gerais quanto às causas das doenças. Porém, como afirma que nem mesmo os melhores entre eles conseguiram sustentar prudentemente as suas especulações dentro destes limites dados.  E para isso, ele cita o próprio Empédocles:

“Mas a verdade é que essa suposição era tão dogmática como a de Empédocles que todos os corpos eram constituídos por quatro elementos, suposição que eles denunciavam como sendo destituída de fundamento. [...] Como vimos quando analisamos o seu sistema, ao mesmo tempo em que afirmava fundamentar toda a doutrina da realidade invisível – os átomos e o vácuo – não era apresentada como uma hipótese cientifica susceptível de ser modificada à luz de experiências e observações posteriores, mas como uma verdade incontestável, deduzida a ‘apreensão mental’ imediata de conceitos perfeitamente ‘claros’ e de proposições evidentes em si mesmas.” (CORNFORD, 1989, p. 101).

Posteriormente, Platão faz relatos em forma de diálogos em Fédon sobre o caráter poético e intuitivo do “filosofo”. A poesia e a inspiração, segundo Cornford (1989), “nascem de um aspecto do temperamento do próprio Platão que não se satisfazia com o discorrer habitual do irônico dialético” (p. 106).

E isso fica claro numa passagem de Fédon cujo Platão escreve que assim como os campos e as arvores não tinham muito a ensinar Sócrates, os poetas não sendo mais sábios que o próprio Sócrates, portanto, não tinha também o que ensiná-lo. Tudo isso porque os poetas não poderiam lhe dar um conhecimento explícito e lógico – o que ele realmente queria. E é aí que Platão supôs que fazer música ou poesia poderia ser também “filosofia”.

Por filosofia entende-se, aqui, a procura da sabedoria, do conhecimento racionalmente dado capaz de explicar essa sabedoria criticamente através de argumentos logicamente dados em alguma medida.

“A respeito do desenvolver da filosofia propriamente dita, Burnet nos dará a seguinte explicativa. A filosofia em si é uma "purificação" e um modo de escapar da "roda". Essa é a ideia nobremente expressa no Fédon, diálogo manifestamente inspirado na doutrina pitagórica. Essa maneira de ver a filosofia tornou-se, desde então, característica do melhor pensamento grego. Aristóteles foi tão influenciado por ela quanto qualquer outro, como podemos ver pelo livro décimo da Ética” (BURNET, 2016, p. 103).

A filosofia de fato foi fortemente influenciada pela religião da cultura grega tradicional. É bem plausível aceitar a ideia que a filosofia se se apropriou da religião para o seu desenrolar histórico. Certamente Sócrates foi o primeiro filósofo a defender a filosofia com bases puramente racionais, um modo autônomo do pensar e do saber (e isso lhe custou a própria vida!). A religião era parte indissociável da cultura grega tradicional, por isso era parte, por assim dizer, do “corpo doutrinário” (BURNET, 2006, p. 103).

Cornford nos fornece um argumento novo sobre florescer do pensamento filosófico (como dito anteriormente, desenvolveu-se simultaneamente com o declínio do pensamento mítico). Para ele o principio que se partiu que o racionalismo esclarecido é oposto

“às crenças e algumas práticas supersticiosas de uma religião hoje obsoleta, ou de um filósofo cujas preocupações religiosas não podem ser negadas tinha forçosamente de ter a sua religião e a sua ciência sem compartimentos tão estanques que elas nunca se misturassem nem entrassem em conflito.” (CORNFORD, 1989, p. 174).

Entretanto, podemos assumir a tese que, ao menos alguns filósofos, nos fornecem a consciência de uma perspectiva que o filósofo ainda possuía um caráter “divino”. Bem como podemos observar em Pitágoras, cuja figura tornou-se lendária após a morte – e ainda em vida. Inclusive Aristóteles chega a dar essa impressão num de seus fragmentos referidos a Pitágoras como “divinamente inspirado”. Mas, tal sentença, no que diz respeito, refere-se que a sabedoria de Pitágoras provém de algo além cujo homem comum não possuía acesso. Em outras palavras, finalmente vale utilizar das palavras de Cornford:

“Os grandes pensadores pré-socráticos deste tipo não têm, cada um de per si, duas visões distintas do Universo – uma religiosa para os domingos e uma cientifica para os dias da semana. Cada um tem uma única visão global, abarcando tudo o que ele pensa sobre a realidade, tudo aquilo a que ele chamaria sabedoria.” (CORNFORD, 1989, p. 176).

Em conclusão, as visões de Cornford e Burnet se dissociam uma da outra, pois para o segundo, pode ser equivocado supor que a filosofia se tenha apropriado de qualquer doutrina religiosa específica, como também é verdade que a filosofia foi influenciada pela religião. Assim, a religiosidade influenciou no ensinamento dos filósofos. Do ponto de vista filosófico, a verdade contemplada é a natureza última das coisas. A religiosidade é conhecimento que permitiu ao homem avançar no caminho da perfeição espiritual. No geral, Burnet acredita que o conhecimento desses primeiros filósofos poderia ser caracterizado como “científico” graças as formulações feitas por alguns deles, porém, a ciência era tipicamente religião antiga.

E o progresso científico, portanto, não é isento de valorações, da mediação social-histórica e, por fim, da própria ideologia. Cornford partia da premissa básica do erro considerar os primeiros filósofos como “cientistas”, porque eles não possuíam um saber sistematizado, isto é, capaz de corroborar suas experiências com experimentações seguras longe de dogmatismo e generalizações arbitrárias. Assim, Cornford tem razão quando lembramos Heráclito, cujo ele pretendeu ser não um pensador qualquer em busca da verdade – ou do saber, mas um portador de uma sabedoria exprimindo uma única verdade através do logos, ou seja, a ‘verdade’ que o discurso exprime uma objetividade governando tudo que acontece no Universo.

Referências bibliográficas

BURNET, John, A Aurora da Filosofia Grega. Tradução de Vera Ribeiro; revisão da tradução Agatha Bacelar; tradução das citações em grego e latim Henrique Cairus, Agatha Bacelar, Tatiana Oliveira Ribeiro. Rio de Janeiro; Contraponto; Ed. PUC-Rio, 2006.

CORNFORD, F. M., Principium Sapientiae – As Origens do Pensamento Filosófico Grego. Tradução de Maria Manuela Rocheta dos Santos. Prefácios de W. K. C. Guthrie. Lisboa; Ed. Calouste Gulbenkian; 3° edição, 1989.

ELIADE, Mircea, Mito e Realidade. Tradução de Pola Civelli; São Paulo; Ed. Perspectiva, 1972.

SNELL, Bruno, A Descoberta do Espírito. Tradução de Artur Morão. Lisboa; Ed. Edições 70, 1992.

VERNANT, Jean-Pierre, Mito e Religião na Grécia Antiga. Tradução Constança Marcondes Cesar. Campinas – SP; Papirus, 1992.


Acervo Crítico sempre abre espaços para colunas de Opinião para nossos seguidores e leitores. Caso queiram contribuir, entrem em contato conosco!
Wesley Sousa

Postar um comentário

Postagem Anterior Próxima Postagem