Da “tolerância repressiva” à defesa liberal da repressão



O trecho abaixo foi extraído do livro “A crise estrutural do capital”, do filósofo húngaro István Mészáros.  Está contida no capítulo III – A necessidade do controle social, no subcapítulo “Da ‘tolerância repressiva’ à defesa liberal da repressão”


Quando  um sistema não consegue enfrentar manifestações de dissenso e, ao mesmo tempo, é incapaz de lidar com suas causas, surgem nesses períodos da história não só figuras e soluções ilusórias, mas também os “realistas” da rejeição repressiva de toda crítica. Em 1957, um jovem e talentoso escritor alemão, Conrad Rheinhold como resíduo do Vigésimo Congresso, teve que abandonar a Alemanha Oriental, onde dirigia um teatro político. Depois de alguma vivência na Ocidental, foi-lhe solicitado, numa entrevista publicada na revista Der Spiegel que apontasse a principal diferença entre sua antiga e sua nova situação. Esta foi sua resposta: “No Leste espera-se que o teatro político mude a sociedade, mas não é permitido falar sobre nada; no Ocidente, é permitido falar sobre tudo, mas não é permitido mudar absolutamente nada.”. [1]

O exemplo ilustra muito bem o dilema do controle social. O reverso da medalha da “tolerância repressiva” é a “tolerância reprimida”. Ambas demarcam os limites de sistemas sociais que são incapazes de satisfazer a necessidade de mudança social num determinado tempo histórico.

Quando Marx morreu, em 1883, o fato foi notificado pelo The Times com certo atraso [2]. E não é surpreendente que o jornal londrino tivesse que ser informado de Paris, mesmo Marx tendo morrido em Londres. Isso ilustra de novo nosso dilema. Pois é fácil ser liberal quando até um Marx pode ser totalmente ignorado – sua voz não podia ser ouvida onde ele vivia, graças ao vácuo político e ideológico que o circundava. Mas o que acontece quando o vácuo político é deslocado pela crescente pressão das contradições sociais em constante ampliação? Não serão, nesse caso, as frustrações geradas pelo necessário fracasso de apenas atentar para as manifestações superficiais dos problemas socioeconômicos, em lugar de enfrentar suas causas – será que esse fracasso não irá se refugiar atrás de uma demonstração de força, mesmo que isso signifique uma violação dos próprios valores liberais em cujo nome a violação é agora cometida? O caso recente de outro jovem refugiado da Alemanha oriental – dessa vez não se trata de um escritor de teatro político, mas de alguém profundamente preocupado com a degradação da política ao nível dos cabarés vulgares: Rudi Dutscke – sugere uma resposta bastante inquietante à nossa pergunta.

O problema não se reduz a uma questão de “aberração pessoal” ou de “teimosia política”, como alguns comentadores observam. Infelizmente, o problema é muito mais grave: trata-se de uma tentativa ameaçadora de colocar os órgãos políticos de controle em sintonia com as necessidades da articulação atual da economia capitalista, ainda quando tal ajustamento exija uma transição “liberal” da “tolerância repressiva” à “intolerância repressiva”. Os que continuam a nutrir ilusões sobre esses assuntos deveriam ler um pouco mais atentamente seu jornal supostamente “imparcial”, a fim de compreender o sentido cuidadosamente urdido de trechos como o que se segue:

“Quanto mais a universidade liberal é pressionada, tanto menos é capaz de ser compreensiva, mais rigorosamente terá que fixar seus limites e maior será a probabilidade de exclusão de pontos de vista intolerantes. O paradoxo da sociedade tolerante consiste em que não pode ser defendida apenas métodos tolerantes, da mesma forma que a sociedade pacífica não pode ser defendida exclusivamente por métodos pacíficos”. [3]

Como podemos observar, os mitos vazios da “sociedade tolerante” e da “sociedade pacífica” são empregados para representar a sociedade do bellum omnium contra omnes, desprezando os métodos dolorosamente óbvios pelos quais a “sociedade pacífica” do capitalismo norte-americano demonstra seu verdadeiro caráter, por meio de bombardeios maciços, carnificina geral e dos massacres no Vietnã , e ainda pelo assassinato de seus próprios jovens na frente da “universidade liberal” – no estado de Kent e em outros locais –, quando ousam organizar atos de protesto contra as inomináveis desumanidades dessa sociedade “tolerante” e “pacífica”.

Ademais, nesses trechos de sabedoria editorial poderemos também observar, se estivermos dispostos a isso, não apenas o reconhecimento não intencional do fato dessa sociedade “liberal” e “tolerante” ‘tolerará’ somente até o ponto em que for capaz – isto é, até o ponto para além do qual o protesto começa a ser tornar efetivo e a se transformar num verdadeiro desafio social à perpetuação da sociedade de tolerância repressiva – mas, também a hipocrisia sofisticada por meio da qual a defesa da intolerância crua (“rigorosa”) e institucionalizada (“exclusão”) alcança representar a si própria como uma defesa liberal da sociedade contra “os pontos de vistas intolerantes”.

Similarmente, a defesa da intolerância institucionalizada é ampliada à prescrição de “soluções” para as lutas sindicais. Outra manchete do The Times, - sugere intuitivamente “Uma linha de combate para os 10%” [4] –, após  admitir que “ninguém sabe ao certo qual é o mecanismo que causa uma espiral inflacionária” e depois murmurar qualquer coisa sobre a fatalidade de determinado tipo de “regime autoritário” que ocorre em países com altos índices de inflação, termina por advogar medidas “ruidosamente autoritárias”.

“O que pode ser feito para reverter a atual tendência inflacionária? A primeira e imediata reposta é que o país deveria reconhecer a correlação de uma postura firme. Qualquer pessoa, nas atuais circunstâncias, que reivindique mais de 10% estará contribuindo para um processo de autodestruição. Qualquer um que entre em greve por que não aceita 15% merece ser repelido com toda força da sociedade, como todo o poder do governo. [...] A primeira e a mais simples coisa a fazer consiste em começar derrotando as greves. As autoridades locais deveriam receber total apoio [incluindo tropas?], ao se recusarem a oferecer qualquer proposta, mesmo no caso da greve se prolongar por meses”. [5]

Pode-se ver, então, que a aparente preocupação com a ameaça (fictícia) de “algum tipo de regime autoritário” – que simplesmente se afirma estar indevidamente ligado a níveis elevados de inflação – é apenas um pretexto para encobrir a real preocupação em proteger os interesses do capital, não importando quão graves possam ser as implicações políticas de “uma postura firme” contra “greves que se prolongam durante meses”. Formular, assim, as mais elevadas prioridades em termos de “derrotar as greves” é, e não deixa de ser, uma postura autoritária, mesmo quando a política baseada em tais medidas é defendida por editoriais que são capazes de assumir posições liberais em relações a assuntos mais periféricos.

A passagem de defesa da intolerância institucionalizada, na forma de ‘derrotar as greves com todo o poder do governo’, à legitimação de tais práticas, por meio de leis antissindicais, é claramente apenas o passo logico seguinte. De fato, a experiência da política de consenso é particularmente reveladora a esse respeito [6]. Nesse sentido, a denúncia do projeto de lei tory feita pela senhora Castle não é apenas inócua e tardia. Essa denúncia padece também de amnésia, posto que pretende esquecer o desastroso projeto de lei trabalhista, gêmeo do projeto de lei conservador e cuja maternidade a autora certamente não faz mais que acentuar as ilusões teimosas dos políticos “pragmáticos”, que apesar de sua experiência passada ainda imaginam que serão reeleitos a fim de inscrever nos anais “A carta do bom patrão”.

De um ponto de vista socialista, os patrões não são “bons” ou “maus”. Apenas são patrões. E isso já é suficientemente mau: de fato, não poderia ser pior. Essa é a razão pela qual se torna vital ultrapassar os limites paralisantes da política de consenso, que se recusa a reconhecer essa verdade elementar e faz com que a população de um modo geral sofra com as desastrosas consequências de seus crescentes fracassos.

Notas do subcapítulo

1 – “Der Spiegel” (Hamburgo), -6/11/1957

2 – 17/03/1883, jornal londrino publica: “Nosso correspondente em Paris informa a morte do Sr. Marx ocorrida na quarta-feira passada em Londres”.

3 – Editorial, “The Times” (Londres), 17/10/1970.

4 – “The Times” (Londres), 20/10/1970.

5 – “The Times” (Londres), 20/10/1970.

6 – “Trade Union Register (Londres, Merlin, 1970), p. 276.

Referência bibliográfica

MÉSZÁROS, István. A crise estrutural do capital. Trad. Francisco Raul Cornejo, Sérgio Lessa, Ana Carvalhaes, Katarina Peixoto, Paulo Castanheira [...]. 2° edição. São Paulo: Boitempo, 2011, p. 61 – 64.
Wesley Sousa

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