Vitor Bartoletti Sartori é professor da
faculdade de Direito da UFMG ligado ao departamento de Direito do trabalho e
introdução ao Direito. Experiência na área de História, teoria da História,
Filosofia, Filosofia política, Teoria e Filosofia do Direito, tendo como foco a
relação entre os temas abordados em tais áreas para a conformação da
historicidade moderna. No campo da filosofia do Direito, busca a crítica
ontológica do fenômeno jurídico na sociedade civil-burguesa bem como os
desdobramentos históricos de tal crítica.
AC
– Você recentemente participou de uma
mesa de discussões acerca da Revolução Russa na UFMG, falando sobre a relação
entre o Direito e o Estado Soviético. Em sua visão, quais críticas fundamentais
podemos extrair da experiência soviética através de seus teóricos do Direito
como, por exemplo, Pachukanis?
Pachukanis
certamente é um grande autor; talvez, ainda seja o maior quando se trata do
tema Direito e marxismo. Ele esteve profundamente marcado pelos rumos da URSS,
na grandiosidade da Revolução Russa, mas também em suas vicissitudes (visíveis
no fato de o autor de Teoria geral do Direito e marxismo ter sido executado
pelo próprio regime soviético). Em minha interpretação, um dos grandes méritos
pachukanianos foi ter relacionado a universalidade da forma jurídica à
reprodução do capital, expressa na forma mercantil, algo que acredito, mesmo
que eu enfoque algumas nuances diferentes daqueles do jurista soviético, ser
bastante verdadeiro. Com isso, no entanto, deparamo-nos com um problema
bastante sério sobre a URSS: qual a natureza real dos desdobramentos da
revolução? Tal problema foi trazido, sob outro enfoque, por importantes autores
como Trotsky, Sweezy, Betelheim e, mais recentemente Mészáros. Meu ponto sobre
tal tema é que, se formos dar crédito a Pachukanis, talvez, mesmo que ele
tivesse uma posição, de certo modo, contrária a esta que mencionarei, pode-se
aventar: com a permanência do Direito (e, diria Lukács em suas Notas sobre uma
ética, com sua centralidade sob o stalinismo), tem-se um indicativo importante
de permanência do capital como solo sob o qual se reproduz a sociedade. Ou
seja, no limite, seria preciso pensar a experiência soviética como algo que
trouxe a grandiosidade da revolução socialista e, neste sentido, colocou-se
“para além do capital” (Mészáros), ao mesmo tempo em que, sob circunstâncias
hostis, viu-se como incapaz de alcançar um desenvolvimento efetivamente
socialista. Aqui, porém, não poderei tratar dos diferentes modos pelos quais
seria possível teorizarmos sobre esta forma de sociometabolismo vigente durante
o século XX. Isto se dá até mesmo porque acredito que estudos de fôlego, por
parte das mais variadas linhas marxistas, ainda são necessários sobre este tema.
Tratar disso pode ser decisivo para pensar o futuro do socialismo, ainda mais
em um tempo como o nosso, em que a supressão do capital é mais necessária que
nunca.
AC – Sua linha de pesquisa também abarca
a relação entre o marxismo e o Direito. Como professor, você sente que falta um
pensamento crítico ao Direito, no geral?
Bem,
o Direito, “em geral”, é um terreno hostil ao pensamento crítico em minha
opinião. Como marxista, eu diria que ele supõe aquilo que precisa ser
questionado, nunca passando pela crítica ao modo pelo qual, sob a vigência do
capital – ou seja, com o assalariamento e a propriedade privada dos meios de
produção – a sociedade conforma-se real e efetivamente. É preciso destacar,
porém, que dificilmente encontraremos um jurista que diga que é acrítico... os
juristas, no limite, podem acreditar que são profundamente subversivos. Isso,
porém, vale tanto para o professor de Direito do trabalho que defende os
trabalhadores de modo decidido quanto para o professor de Direito empresarial,
que acredita romper paradigmas “retrógrados” defendendo a necessidade de uma
racionalidade econômica, a ser colocada no campo jurídico de modo mais
pungente. Ou seja, mesmo que a “ciência do Direito”, e mesmo a “filosofia do
Direito”, contem com bons quadros de pensadores (e isso efetivamente acontece e
aqui eu poderia enumerar vários colegas meus), não raro, estes pensadores não
deixam de tratar de nada mais que sintomas oriundos de uma forma de
sociabilidade (a capitalista) putrefata. Interpretações mais distintas (mais ou
menos “progressistas”) podem estar presentes nos diferentes juristas, e há
pessoas muito sérias que tratam da questão da interpretação e do conceito de
Direito, com certeza; no entanto, uma “filosofia do Direito”, uma “teoria do
Direito” e uma “ciência do Direito” tendem a colocar seu enfoque naquilo que,
em verdade, não é o essencial: no Direito mesmo. Em minha opinião, uma tarefa
muito difícil ao pensamento crítico é admitir a nossa impotência relativa em
determinado papel, como o de professor de um curso jurídico. Assim, como
professor, sinto as limitações da esfera do ser social com a qual sou obrigado
a lidar em minhas aulas; pode-se mesmo dizer que os grandes professores de
Direito, caso se enxerguem essencialmente neste papel, e se trazem aspectos
jurídicos como centrais, ficam na superfície do modo pelo qual se concatenam as
relações sociais em uma sociedade capitalista. Pode ser duro dizer isso, mas um
pensamento crítico que trate do Direito deve colocar-se contra o Direito mesmo,
e contra o modo pelo qual se desenvolve o conhecimento sobre ele. Como
marxista, penso que é necessária uma crítica decidida ao Direito e, claro, esta
crítica tem como base o fato segundo o qual o capitalismo já não traz, há muito
tempo, qualquer avanço real à humanidade, sendo preciso, e urgente, suprimi-lo.
A questão é, para que mencionemos um autor essencial, mas pouco lido hoje: “quê
fazer”? Poderia dizer em tom de brincadeira, mas com alguma seriedade, que
seria necessário, para o começo de qualquer crítica séria e contundente: mais
Lenin e menos Dworkin.
AC
– Sabemos que o Direito é uma relação
jurídica de “legitimação” de poder à uma classe sobre outra. No Brasil, há
entre uma forte exclusão social com componentes de heranças colonizadoras – e
basta-nos ir às cadeias e ver quem está compondo as celas. Em sua perspectiva,
o Direito além de cumprir uma função social ideológica, também pode ser um meio
de reduzir danos intrincados pela sociedade burguesa?
A
questão que coloca é de grande relevo, embora eu não acredite que a categoria
“poder” - que geralmente é utilizada com uma elasticidade questionável em
certas teorias – possa dar conta da complexidade da temática. Para tratar da
questão, que remete ao potencial do Direito como “instrumento” para um movimento
de contestação substantiva ao capitalismo, é preciso que tenhamos em conta os
distintos modos pelo qual o capitalismo mesmo é entificado nos distintos
países. Em sua via clássica de entificação, tratada por Marx em O capital tendo
em conta principalmente o caso inglês (mas mirando também na França
principalmente) há uma oposição entre Direito e privilégio – também destacada
pelo autor nos textos da Nova gazeta renana –, de modo que o primeiro tem uma
função essencialmente progressista na emergência da burguesia como classe
dominante. Ou seja, a universalidade do capital é acompanhada pela
universalidade do Direito e, portanto, da igualdade jurídica, que rompe com os
privilégios de nascimento, mas também, até certo ponto, com os de fortuna
(Engels trata com bastante cuidado deste ponto). Como sempre, claro, há
“seletividade” na aplicação do Direito, mas isso se dá de modo menos descarado
que no Brasil contemporâneo, dado que o desenvolvimento burguês, no caso
clássico, é acompanhado de um fortalecimento, mesmo que irremediavelmente
limitado, da democracia representativa e burguesa. Acredito ser de grande
relevo trazer este ponto, pois ele deixa claro que a “seletividade”, em
primeiro lugar, está presente em todas as formas de Direito, mesmo as mais
progressistas e arquetípicas; em segundo lugar, porém, tem-se o mais
importante: a maior “seletividade” de um ordenamento jurídico se comparado a
outro não é decorrente de uma “falha” jurídica, mas do fato de a política se
conformar de modo mais ou menos permeado pelo interesse das classes
subalternas. Ou seja, a questão que você traz não diz respeito tanto às
distintas conformações do Direito burguês, mas das formas pelas quais a
dominação política é trazida à tona em meio à especificidade do desenvolvimento
capitalista de cada nação. Tanto é assim que, na via prussiana para o
capitalismo, a questão já muda um pouco… na Alemanha, tratada por Lenin e por
Lukács, e também por Marx e Engels, a burguesia mesma é débil e se alia, não ao
proletariado nascente, aos artesãos e aos camponeses, mas às distintas figuras
de aristocracia e à burocracia estatal e militar. Deste modo, tem-se o fato de
a esfera pública se colocar como hostil à democracia (vista como uma espécie de
mercadoria de importação, para que se use as palavras de alguém como Lukács);
isto, até certo ponto, é preciso destacar, fez com que a esquerda do século XIX
(mas também do XX) na Alemanha, por exemplo, – basta pensar em Lassale e em
Menger – tenham enfocado muito no Direito como instrumento de luta dos trabalhadores.
Neste sentido, pode-se dizer que estes autores e esta esquerda acabam
recorrendo ao Direito porque o campo da política tem, naquela situação, um
fechamento bastante distinto daquele que há na via clássica. Os desdobramentos
disso, em minha opinião, são trágicos, e passam pelo modo pelo qual – para que
cheguemos ao século XX - a constituição de Weimar é muito elogiada ao passo
que, em verdade, ela tem por base as vicissitudes da esfera política alemã; não
posso desdobrar estas questões aqui, infelizmente. Deve-se dizer, no entanto,
que a Alemanha, ao fim, vem a ter um desenvolvimento burguês, já que pôde
desenvolver sua produção via imperialismo (que se inicia, de certo modo, com a
unificação alemã, praticamente contemporânea à repressão à Comuna de Paris).
Países como EUA, França e Inglaterra, com diversos matizes, trazem a
confluência entre democracia burguesa e capitalismo; na Alemanha e na Itália
isto não acontece, mas tem-se o desenvolvimento capitalista com um alto custo
(basta pensar no cume do imperialismo alemão e italiano na Segunda Guerra). No
que chegamos ao país em que vivemos: o Brasil está em uma situação bastante
diferente: chega ao desenvolvimento do capitalismo como uma colônia, produz
commodities para o mercado externo, de modo que o imperialismo estava vedado...
a “burguesia nacional progressista”, aqui, em minha opinião, foi sempre um
fantasma na melhor das hipóteses. O modo pelo qual a burguesia nacional (se é
que esta expressão é correta para descrever o que se tem aqui) se entifica
sempre esteve colocada em posição subordinada ao capital inter e transnacional.
Digo tudo isto para afirmar que nossa situação é ainda pior do que aquela da
via prussiana ao capitalismo; nosso capitalismo é, como disse José Chasin com
razão, hipertardio e a esfera pública nacional encontra-se, em minha opinião,
até hoje, fechada ao desenvolvimento democrático-burguês Isto apare como um
oximoro por aqui. Trata-se de uma das particularidades da “via colonial” para o
capitalismo (Chasin). Neste sentido, acredito que possamos dizer que temos um
problema no Brasil: grande parte da esquerda buscou trazer suas demandas em
“luta por direitos” - o que em si não seria um problema, claro – sem que se
questionasse substancialmente a esfera pública mesma e, claro, neste sentido, o
capitalismo. Aquilo que você chama de “redução de danos” pode certamente passar
pelo Direito; no entanto nunca é uma questão real e efetivamente jurídica. Isto
diz respeito ao modo pelo qual a esfera jurídica – em determinada conjuntura política
– é ou não capaz de reconhecer as vitórias conseguidas em outra esfera, a
social, em que ocorrem as lutas de classe. No Brasil, esta equação é bastante
meandrada porque, não raro, o caminho das lutas que têm por central o campo
jurídico não deixam de tomar como suposta, consciente ou inconscientemente, a
derrota política trazida na conformação política extremante problemática da
“democracia” brasileira. Eu seria louco em negar que o Direito possa ser
necessário nas lutas populares; se pensarmos no papel que ele tem nas ocupações
urbanas, por exemplo, isso fica claro. Porém, gostaria de deixar claro: na
melhor das hipóteses, nestes casos, a esquerda faz algo necessário, mas que não
pode ser visto como estratégico, ou mesmo tático. Trata-se de uma necessidade,
e, se me permite um tom jocoso: no melhor dos casos, tem-se a tarefa, sem a
qual não se pode lutar, de se enxugar o gelo. No caso brasileiro, acredito, dar
uma dimensão maior que essa às lutas colocadas no campo do Direito acabou por
eclipsar o desastre que estava inscrito na assim chamada “redemocratização”.
Hoje vivemos as consequências disto, em minha opinião.
AC
– Você tem uma dissertação de mestrado
com críticas a Hannah Arendt. Poderia, se possível, nos dizer no que calcou
estas críticas e por quê?
Arendt
é uma autora muito lida, não só por teóricos conservadores, mas também por
certa esquerda anti-marxista e mesmo “marxizante” (basta pensar que foi uma
autora importante na formação de intelectuais tucanos e petistas). Seria
bastante leviano de minha parte tentar resumir minhas críticas a ela em um
pequeno espaço, até mesmo por se tratar de uma importante autora. Devo dizer
que acredito que há pesquisas interessantes na obra da autora; mesmo que eu não
concorde com as análises de Origens do totalitarismo, ali há um trabalho sério
que, de um modo ou de outro, reconhece as raízes burguesas do imperialismo e,
de modo mais meandrado, do “totalitarismo” (categoria extremamente problemática
em minha opinião). No entanto, no pós II Guerra, Arendt inicia uma pesquisa
intitulada de “elementos totalitários do marxismo”, e seu tom muda
substancialmente em diversos sentidos. Minha pesquisa, que será publicada ano
que vem como livro, começa deste ponto. Então, autores que eram criticados,
como o conservador Edmund Burke, passam a ser elogiados, e o enfoque deixa de
estar no modo pelo qual o imperialismo seria um estágio – em Arendt, um dos
primeiros – do desenvolvimento burguês. Em verdade, com um desenvolvimento
bastante sofisticado de categorias basilares da “atividade humana” (segundo a
autora, labor, trabalho e ação), teorização esta que traz muita influência
heideggeriana, Arendt tem como principal alvo Marx e o marxismo. Suas
teorizações começam a se colocar contra a centralidade da atividade produtiva e
contra a “história feita pelo homem”, bem como contra revoluções que tivessem o
elemento social por central. Não sem uma base teológica (influenciada,
sobretudo, por uma leitura sui generis de Agostinho), a autora passa
também a uma defesa da política – entendida, a meu ver, de modo bastante
elitista, não obstante seu linguajar sobre a pluralidade e, por vezes, sobre a
horizontalidade – em oposição ao campo do “social”. Deste modo, defende a
Revolução Americana em oposição à Revolução Francesa, em que os “pobres”
(vistos de modo bastante pejorativo) teriam trazido a esfera da necessidade a
público. Não poderei tratar aqui de como isso se dá na autora, ou das
implicações disso; no entanto, devo destacar que as críticas que autora faz à
Revolução Francesa têm uma correlação direta com as suas posições práticas e
teóricas sobre o socialismo, e sobre a Revolução Russa. De certo modo, acredito
que a autora abre espaço para uma posição historiográfica bastante questionável
e conservadora como aquela de François Furet e, deste modo, mas não só por
isso, passa longe de ser alguém compatível com qualquer auspício ligado a uma
posição efetivamente crítica.
AC
– Com as contrarreformas que estão
precarizando ainda mais os trabalhadores, como você vê o Direito como meio de luta
pela supressão do Estado burguês a caminho da emancipação humana?
Novamente,
gostaria de dizer sobre este ponto que o essencial não é o Direito. Na verdade,
as contrarreformas são a expressão jurídica de uma derrota colocada no campo
político e no campo social. É preciso reconhecer esta derrota; e é bom dizer
que ela advém de um fator ligado à especificidade do capitalismo brasileiro,
sobre a qual falei acima. Gostaria de fazer uma comparação que precisaria de
muitas mediações, mas que trarei à tona de modo rápido mesmo assim. Na Alemanha
da década de 20 do século passado, sob as marcas da via prussiana, a república
de Weimar, com a sua constituição, foi incapaz de barrar o avanço do nazismo.
Isso se deu, também, porque a república de Weimar foi uma forma politica
decorrente da repressão brutal e covarde da Revolução Alemã de 1918-19. Ou
seja, neste contexto, uma esquerda com apoio de parcela significante dos
trabalhadores foi responsável pelo reconhecimento, inclusive legal, da derrota
do socialismo no solo alemão. Não obstante as palavras, por vezes sinceras, do
partido social-democrata alemão, teve-se uma situação em que as tarefas da
direita foram, em parte substancial, realizadas pela esquerda, inclusive, com
certo silêncio sobre o assassinato de Rosa Luxemburgo, por exemplo. No Brasil,
algo, até certo ponto semelhante, aconteceu recentemente, mas, claro, de modo
distinto, não obstante grande parte da esquerda não marxista acredite que, tal
qual a constituição de Weimar, a constituição de 1988 pudesse ser um ponto de
apoio, no limite, para uma crítica ao capitalismo. Não entrarei nos meandros da
questão, até porque muita gente que respeito muito valoriza a constituição de
Weimar e a CF de 88; vale assinalar, no entanto, como em ambos os casos, certa conformação
objetiva e problemática da esfera política parece ter sido contornada pelo e no
campo jurídico. Continuemos: em meio às especificidades que mencionei
anteriormente, um vício (uma esfera pública sem porosidade para as demandas dos
trabalhadores) foi tomado, ao fim, como algo a ser suposto, mesmo que somente
temporariamente – e a questão, para essa tática, sempre é saber por quanto
tempo –, em muitas lutas sociais. Ao passo que tivemos uma “redemocratização”
oriunda de uma transição “lenta, gradual e segura”, em que o aparato
burocrático e estatal continuou praticamente o mesmo se comparado ao aparato da
ditadura, as lutas por direitos tomaram forma no Brasil. Ou seja, a
“democracia” não podia ser senão uma palavra vazia sem se questionar tudo isso
e, claro, sem questionar o próprio domínio do capital. No entanto, a ausência
de crítica a estes aspectos foi, em verdade, o que caracterizou os anos do
petismo. E mais: “governabilidade”,
dentre outras coisas, baseou-se na desmobilização maciça da classe trabalhadora,
de modo que aquilo que a direita não conseguiu fazer (pensemos no modo pelo
qual o MST foi bastante ativo durantes os governo FHC) foi feito pela esquerda.
Centrais sindicais combativas no passado se tornaram reféns de um governismo
pueril também. Este é o cenário em que emergem as contrarreformas do atual
governo ilegítimo, ele mesmo decorrente das circunstâncias que tratei
rapidamente acima. Só é possível compreender os retrocessos atuais se tivermos
em conta que certa esquerda, para que se use uma expressão popular, “deu tiro
no próprio pé” até que chegamos na situação horrenda em que estamos. Neste
sentido, eu diria que a ênfase na luta por direitos – sem que se questione a
esfera política – é um dos caminhos para que nos afastemos ainda mais da
emancipação humana. O Direito tem uma ligação umbilical com o Estado burguês e
com a reprodução da relação-capital. Posso parecer antiquado, mas acredito que
a velha questão da luta de classes continua muito atual e é preciso reconhecer
sua centralidade em uma sociedade calcada na exploração classista. Pode-se, por
vezes, em meio a questões que passam pelo Direito, ter certo ganho de
consciência, não tenho dúvidas. No entanto, neste ponto, o essencial não é o
Direito, mas o processo social por meio do qual as lutas sociais se concatenam
real e efetivamente. O campo jurídico serve para que o “gelo” seja “enxugado”;
caso percebamos que isso é muito limitado e nos elevemos a um nível superior,
colocado no questionamento do próprio Estado e, com ele, do capital, tem-se um
ganho certamente. No entanto, este ganho de consciência passa longe de ocorrer
naturalmente. É necessário que se enfoque no essencial, passando do Direito à
política e da política ao questionamento da própria conformação do modo de
produção capitalista. Neste sentido, diria que o papel do Direito na luta da
supressão do Estado burguês é, na melhor das hipóteses, circunstancial; o
essencial está em outros campos. Seria “esquerdismo” (Lenin) relegar qualquer
luta por direitos à nulidade; no entanto, o caminho de uma esquerda socialista
passa pela necessária crítica ao Direito.
AC – Marx dizia que o ‘Estado não é
senão um comitê de negócios da burguesia’. Concernente a isso, por que setores
reformistas ainda insistem em nutrir ilusões com o Estado que possui aparelhos
ideológicos de repressão – no caso o sistema jurídico – para “manter a ordem”?
A questão é bastante
complexa. Quando Marx diz que o “o Estado moderno não passa de um comitê para
gerenciar os assuntos comuns de toda a burguesia”, há uma questão importante
que muitas vezes é negligenciada: os “assuntos comuns da burguesia” não se
confundem com os interesses imediatos de uma camada ou doutra da burguesia de
determinado país. Ou seja, o Estado, via de regra, coloca-se também contra interesses
de camadas burguesas ao passo que afirma a reprodução do capital, mesmo que
contra a classe burguesa considerada de imediato (pense no caso do
bonapartismo, por exemplo, em que a sustentação de Bonaparte esteve nos
camponeses e no lumpem). Ou seja, há certos meandros que parecem poder resultar
em espaços a serem ocupados pelos interesses da classe trabalhadora. Isso, até
certo ponto, é verdadeiro. No entanto, traz uma consequência grave para a luta
socialista: na melhor das hipóteses, tem-se a defesa de interesses imediatos e
“espontâneos” de determinadas camadas da classe trabalhadora. Isto redunda na
marginalização de outras camadas da classe trabalhadora e em alianças espúrias
com aqueles que, mediante um equilíbrio politico sempre instável, colocam-se em
acordo sobre a ocupação “à esquerda” de determinados espaços. Vou ser bastante
direto: “setores reformistas”, no Brasil principalmente, mas isto é válido
também para outros países, sequer pensam em reformas dignas de tal nome... pensam
em ocupar espaços para que exista certa satisfação de necessidades imediatas,
como o combate à pobreza. Isto se deu, no entanto, com o fortalecimento da
financeirização da economia e com o ganho de poder por parte do capital
financeiro e especulativo. Hoje vivemos o momento em que até a perda destes
espaços é visível – e tentei trazer alguns apontamentos sobre as razões disso
acima -; falar em reformismo é falar em uma tentativa de, por meio do Estado,
mudar a distribuição na sociedade capitalista sem que as relações de produção
sejam subvertidas. Acredito que, em verdade, nem isso vemos com abundância hoje
em dia. Sua pergunta, no entanto, leva-nos a outro ponto importante: fica cada
vez mais claro que o Estado e o Direito burgueses têm uma função bastante clara
na implementação – a alto custo – da acumulação de capital. Tanto a atividade
dos distintos ministérios do governo ilegítimo (no campo da educação e da
saúde, por exemplo), quanto o comportamento da corte suprema de “notáveis”, o
STF, deixam claro que o Estado e o Direito não pairam no ar e que falar de “lei
e ordem” é falar da manutenção – que pode ser a priori ilegal, inclusive
– da desumanidade do modo de produção capitalista. Novamente, a questão
decisiva não é nova: é necessário suprimir o capital. E isto remete, justamente
a dois pontos, em que me permito invocar Lenin mais uma vez: 1) sem teoria
revolucionária não há prática revolucionária; 2) que fazer? A ideologia
dominante, inclusive, na própria “esquerda”, é aquela segundo a qual falar de
revolução é loucura e, neste sentido também, vivemos em tempos sombrios. Quanto
ao segundo ponto, ainda se tem nos campos da esquerda, não raro, certa
contraposição entre uma espécie de bela alma e certo oportunismo. Se não me
engano, este diagnóstico foi trazido há algum tempo por Leandro Konder e,
infelizmente, ele ainda me parece bastante certeiro no essencial. Quanto você
diz que ainda se tem certas ilusões quanto ao Estado, parece-me que está sendo
bastante bondoso. Talvez, o cinismo (oportunista) tenha chegado a patamares
estratosféricos. E a questão, claro, permanece: a necessidade de superação da
ordem do capital é bastante visível, mas, deve-se indagar: quê fazer?
Quando Marx diz que o “o Estado moderno não passa de um comitê para gerenciar os assuntos comuns de toda a burguesia”
ResponderExcluirLeitura superficial de Marx.
O problema do estado é a forma mercadoria, que o estrutura.
Você pode colocá-lo nas mãos da classe trabalhadora, mas enquanto essa forma persistir, ele ainda será um estado capitalista, mesmo sem a burguesia.
Interessante esse ponto mesmo.
ExcluirBoa entrevista! Obrigado AC pela iniciativa. Por mais entrevistas assim.
ResponderExcluir