Por Rodrigo Silva do Ó
Publicado
originalmente aqui
Extraído do blog: "NEIM - Núcleo de Estudos de Irracionalismo Moderno"
Desde junho de 2013, houve o
surgimento de organizações de direita e extrema-direita com base social real e
nas ruas. Isso não acontecia no Brasil desde o governo Jango. Essas
organizações, que variam desde liberais a fascistas, tem sido todas rotuladas
como fascistas por alguns setores da esquerda. Se trata de um erro grave,
porque essa caracterização tem consequências políticas sérias.
A extrema-direita, pelas
suas próprias características, dá uma ênfase muito forte à história e às
tradições nacionais. Por isso, as organizações que realmente têm potencial para
se transformarem em organizações de massas no país são as que vêm dos ramos
históricos da extrema-direita brasileira.
O objetivo desse texto é
falar sobre essas correntes, sobre como tem sido a interação entre elas e como
elas se configuram agora, no processo de luta pela hegemonia na sociedade. Para
isso, elas não vão ser apresentadas na ordem cronológica, e sim numa ordem de
que a lógica vai ser explicada ao longo do texto.
Primeiro, por uma questão de
delimitação, vamos definir extrema-direita como as organizações de direita
que defendem a derrubada da democracia parlamentar. Esse é o mesmo critério que
separa a esquerda da extrema esquerda. E essa é a diferença entre a extrema-direita
propriamente dita e políticos conservadores, como o Marcos Feliciano ou o Silas
Malafaia.
A
questão negra
Esse
caráter ariano da classe superior, tão valentemente preservado na sua pureza
pelos nossos antepassados dos três primeiros séculos, salva-nos de uma
regressão lamentável. Fazendo-se o centro de convergência dos elementos
brancos, essa classe, representada principalmente pela nobreza territorial, se
constitui entre nós no que poderíamos chamar o sensorium do espírito
ariano, isto é, num órgão com a capacidade de refletir e assimilar, em nossa
nacionalidade, a civilização ocidental e os seus altos ideais. O negro, o
índio, os seus mestiços, esses não nos podiam, na generalidade dos seus
elementos, dar uma mentalidade capaz de exercer essa função superior. (Oliveira
Vianna, Populações Meridionais do Brasil)
Antes de entrar nas
correntes principais, é preciso explicar a ausência, hoje, da corrente
explicitamente racista que existiu até a década de 1930.
Pela própria estrutura do
país, o racismo precisa ser usado para legitimar os séculos de escravidão e a
situação neocolonial em que vive a maioria da população negra hoje. Por isso, o racismo
“científico” foi uma das correntes mais antigas do pensamento conservador
no Brasil. e o próprio D. Pedro II era amigo pessoal do Conde de Gobineau,
fundador na França das teorias que procuravam embasar a desigualdade racial com
argumentos pseudocientíficos.
Na mesma época, as teorias
do criminologista italiano Cesare Lombroso, sobre indivíduos degenerados, foram
assimiladas pela criminologia brasileira, e usadas para dar uma justificativa
racista para criminalizar os negros e pobres em geral. O pior é que Lombroso
era do Partido Socialista Italiano, o que mostra como o racismo da época estava
presente tanto na direita como na esquerda.
Já na República Velha, toda
uma corrente de pensadores racistas, como Nina Rodrigues (1862–1906) e Oliveira
Vianna (1883–1951), começaram a defender que a causa do atraso do Brasil é a
composição racial inferior e que, portanto, a única solução seria aumentar a
entrada de imigrantes europeus, para branquear o país.
Mas as teorias abertamente
racistas praticamente desapareceram da extrema-direita brasileira de hoje. Nos
anos 1930, aquele tipo de racismo escancarado foi substituído pela ideologia
da democracia racial, de Gilberto Freyre (1900–1987), que dizia que todas as
raças sempre tinham vivido em harmonia no Brasil. Os integralistas, como vamos
ver mais à frente, também defendiam a tese da “raça brasileira”, formada pela
união de todas as raças.
Essas teorias são mais
compatíveis com a democracia burguesa e têm a vantagem de esconder o racismo,
de tal forma que, se você acusa o racismo, eles podem responder que você está
sendo racista e criando conflito numa situação em que existe harmonia. Por
isso, hoje, quando você vê o MBL atacando as cotas, é justamente dizendo que
elas protegem os negros injustamente e são racistas ao contrário. Os setores
mais importantes da extrema-direita brasileira também não são abertamente
racistas, e sim por omissão. Os grupos abertamente racistas são anômalos e
incapazes de criarem raízes na sociedade atual do Brasil, como é o caso de
dezenas de efêmeros grupos nazistas.
Fascismo
manifestantes com a bandeira azul e branca do integralismo. O Sigma, símbolo do cálculo integral, representa o movimento |
"Pretendemos realizar o Estado Integralista, livre de todo e qualquer princípio de divisão: partidos políticos; estadualismos em luta pela hegemonia; lutas de classes; facções locais; caudilhismos; economia desorganizada; antagonismos de militares e civis; antagonismos entre milícias estaduais e o Exército; entre o governo e o povo; entre o governo e os intelectuais; entre estes e a massa popular. (…) Pretendemos criar, com todos os elementos raciais, segundo os imperativos mesológicos e econômicos, a Nação Brasileira, salvando-a dos erros da civilização capitalista e dos erros da barbárie comunista." (Plínio Salgado, Manifesto de Outubro)
Muitos chamam de fascismo qualquer manifestação contra o movimento dos trabalhadores ou que use métodos violentos. Pra começar, movimentos como o MBL, que defendem um programa neoliberal de privatizações, nem mesmo podem ser classificados como extrema-direita.
Até mesmo a maioria dos
setores que defendem a intervenção militar não podem ser considerados fascistas
(mais à frente, vamos analisar a matriz ideológica deles, a doutrina da
segurança nacional). Mesmo eles defendendo uma solução não-institucional, a
grande maioria dos intervencionistas não se envolve em ações diretas violentas
contra a esquerda, e sim fica exigindo que aconteça uma intervenção “do alto”,
feita pelas Forças Armadas.
Existem inúmeras definições
do que é o fascismo. O objetivo desse texto aqui não é discutir o conceito de
fascismo, então provisoriamente, vou dar uma definição de que o fascismo é uma
forma de anticapitalismo reacionário, nacionalista, que defende a
construção de um Estado totalitário (ou seja, que controle todas as
instituições da sociedade), e se mobiliza através de partidos de massa com
organizações paramilitares.
Esse anticapitalismo,
logicamente, não é o mesmo defendido pelo marxismo e pelo anarquismo, e sim uma
sociedade militarizada, onde haveria colaboração de classes entre os
trabalhadores e os patrões forçada pelo Estado, de forma a garantir melhorias
sociais aos trabalhadores, dentro de uma economia voltada para a guerra.
Por causa da sua defesa de
um nacionalismo totalitário, os fascistas têm como o seu primeiro inimigo as
correntes do movimento operário, que se baseiam na luta de classe e precisam
das liberdades democráticas para se organizarem. Nas situações de grande crise,
em que a democracia parlamentar fica desacreditada, os fascistas costumam
disputar o poder com a esquerda radical.
Na verdade, é problemático
caracterizar o fascismo como extrema-direita, já que as suas várias formas
mesclam, em doses diferentes, elementos de extrema-direita e de
extrema-esquerda (como a ação direta e a denúncia do capitalismo). Por não
entender isso, a esquerda tem ficado desarmada perante o surgimento de
variantes fascistas mais à esquerda, como o nacional-bolchevismo.
O que podemos concluir é que
os grupos autenticamente fascistas, mesmo que eles tenham crescido, são muito
minoritários na extrema-direita brasileira.
Isso faz parte de uma
tendência mundial. Por exemplo, partidos como a Frente Nacional francesa, o
UKIP inglês, ou movimentos como o Tea Party americano, levantam bandeiras de
extrema-direita, mas não defendem um programa totalitário.
No Brasil, a corrente
fascista mais importante foi o integralismo, que conseguiu se tornar um
movimento de massas na década de 1930. Ele foi criado por Plínio Salgado
(1895–1975), e era semelhante às organizações fascistas mais à direita, como a
Guarda de Ferro romena, principalmente por causa da sua filosofia cristã.
Diferente do nazismo, o
integralismo não era racista, e defendia a valorização de todas as raças
brasileiras. A Frente Negra Brasileira (1931–1937), o primeiro
partido negro do país, era uma organização irmã da Ação Integralista
Brasileira, o seu dirigente, Arlindo Veiga dos Santos (1902–1978) era
simpatizante do integralismo e o seu lema era “Deus, Raça, Pátria e Família”.
A AIB foi dissolvida pelo
Estado Novo em 1937, e o Plínio Salgado dirigiu entre 1945 e 1966 o Partido
da Representação Popular (PRP), já sem as características fascistas da
AIB. O PRP apoiou o golpe militar, e os integralistas fizeram parte dos quadros
dirigentes da ditadura. Hoje, existe a Frente Integralista Brasileira, que
é um movimento bem pequeno.
Mas os fascistas que
realmente têm conseguido alguma influência real de vanguarda no Brasil são os
nacional-bolcheviques, que se apresentam através de uma série de siglas, como Nova
Resistência, Legião Nacional-Trabalhista, Avante! etc. Essa corrente é
ligada aos setores mais à esquerda (nacional-revolucionários, Terceira
Posição ou Quarta Teoria Política) do fascismo europeu, sob forte
influência do nacional-socialista francês Alain Soral e do filósofo russo Alexandr Dugin.
Eles se apresentam com uma
imagem muito combativa, chegando a ser confundidos com comunistas. A presença
do nacional-bolchevismo tem até mesmo tensionado alguns setores de
extrema-esquerda, e as suas ideias têm tido certa penetração nesses setores,
chegando ao ponto de algumas ações conjuntas, como a Frente Brasileira de
Solidariedade com a Ucrânia.
São as próprias condições da
economia neoliberal, internacionalizada e privatizada, que dificultam o
surgimento de regimes fascistas. Por isso, eles não são o setor com maior
perspectiva de crescimento no Brasil. Vou falar agora de duas expressões de
massas da extrema-direita brasileira que, elas sim, podem disputar os rumos do
país.
cartaz da organização fascista Nova Resistência |
A
Doutrina da Segurança Nacional
“E
a guerra moderna (…) guerra total que a todos envolve e a todos oprime, guerra
política, guerra econômica, psicossocial e não só militar (…). Essa é a guerra
- total e permanente, global, apocalíptica —, que se desenha, desde já, no
horizonte sombrio de nossa era conturbada… E só nos resta, nações de qualquer
quadrante do mundo, prepararmo-nos para ela.” (Golbery do Couto e Silva, Geopolítica
do Brasil)
A Escola Superior de Guerra
foi criada em 1949, seguindo o modelo da National War College, dos Estados
Unidos. Dentro do contexto da Guerra Fria, que estava começando, a produção
teórica da ESG começou a formular a Doutrina da Segurança Nacional, que é
uma aplicação da geopolítica à tarefa da luta contra o comunismo.
Naquela época, a preocupação
da ESG era com possibilidade da URSS ou dos comunistas brasileiros tentarem
tomar o poder, afastando o país da esfera de influência americana. Por isso, a
doutrina da segurança nacional formulava toda uma estratégia de controle do
território (geopolítica) para defender o Estado contra essa possibilidade.
A partir do final da década
de 1950, a ESG passa a utilizar o conceito de guerra revolucionária, que
considera a ofensiva comunista como uma guerra em várias frentes, não só
militar, como econômica, política e psicológica, com o objetivo de subverter a
sociedade moralmente antes de chegar ao confronto militar decisivo.
O maior teórico da segurança
nacional no país foi Golbery do Couto e Silva (1911–1987), talvez um dos
quadros mais brilhantes da extrema-direita brasileira. Essa doutrina foi a base
da ação da ditadura militar, e facilmente conseguimos reconhecer os seus ecos
na extrema-direita brasileira de hoje, com as suas teorias conspiratórias sobre
o comunismo indo muito além dos intervencionistas.
A Doutrina da Segurança
Nacional, diferente do integralismo e do integrismo católico (que veremos a
seguir), não é uma visão global da sociedade, e sim uma estratégia de defesa do
Estado. Mas contém elementos ideológicos (defesa da nação, conservadorismo,
intervencionismo estatal etc) e é um elemento mobilizador muito importante
porque as Forças Armadas e as polícias militares funcionam como verdadeiros
aparelhos ideológicos e base de massas para a extrema-direita.
A doutrina da segurança
nacional, mesmo depois do fim da ditadura, tem sido a espinha dorsal da
ideologia transmitida na formação das PMs, das Forças Armadas e pelas
instituições ligadas a elas, como o Clube Militar. Não é raro declarações
oficiais desses setores mostrarem uma linguagem e uma visão de mundo trazida
diretamente do discurso da doutrina da segurança nacional.
O setor mais identificado
com a ditadura militar tem sido os intervencionistas que, entretanto, não
conseguiram se organizar efetivamente, sendo, na prática, bem mais uma presença
barulhenta na internet do que uma corrente política. Mas, pelos motivos já
mencionados, a doutrina da segurança nacional pode ser usada rapidamente para mobilizar
a sua base social e até além dela, como vamos ver mais à frente ao falar da
candidatura do Bolsonaro.
O
integrismo católico
“Este
inimigo terrível tem um nome: ele se chama Revolução. Sua causa profunda é uma
explosão de orgulho e sensualidade que inspirou, não diríamos um sistema, mas
toda uma cadeia de sistemas ideológicos. Da larga aceitação dada a estes no
mundo inteiro, decorreram as três grandes revoluções da História do Ocidente: a
Pseudo-Reforma, a Revolução Francesa e o Comunismo.” (Plinio Corrêa de
Oliveira, Revolução e Contrarrevolução)
Desfile em homenagem ao Plínio Corrêa de Oliveira |
A RCC (renovação
carismática) é o equivalente católico das igrejas pentecostais. Tem tido uma
presença semipolítica com a Toca de Assis. Toda a linha de luta contra o
“marxismo cultural” vem da direita católica (padre Paulo Ricardo, por exemplo).
A Opus Dei, que muitas vezes é considerada de extrema-direita, também faz
parte desse campo conservador. Esses setores têm uma presença forte na
sociedade e no mundo virtual, mas, aparentemente, têm uma capacidade de
mobilização da sua base menor que os militares. Mas aqui estamos tratando de um
setor bem mais à direita.
Desde a Revolução Francesa,
uma ala da Igreja Católica se definiu como contrarrevolucionária, não só no
sentido imediato da palavra, mas também por rejeitar tudo o que foi trazido
pela revolução, como a democracia, a separação entre Estado e religião, a civilização
urbana etc. Essa ala foi se tornando cada vez mais radical, conforme o
capitalismo e, depois, o movimento socialista, foram se fortalecendo. Eles são
chamados integristas (ou tradicionalistas, ou fundamentalistas) porque defendem
o retorno ao poder político da Igreja, e se inspiram explicitamente na Idade
Média. Para os integristas, toda a História, desde o Renascimento e a Reforma,
passando pela Revolução Francesa e a Russa, é uma única revolução materialista,
em que o Homem tomou o lugar de Deus e da Igreja.
No Brasil, Jackson de
Figueiredo (1891–1928) pode ser considerado o fundador do integrismo, com a
criação do Centro Dom Vital, em 1922. O integrismo católico é a corrente mais
sofisticada intelectualmente da direita brasileira, com fortes bases na
filosofia de São Tomás de Aquino, e que produziu organizações de vanguarda com
implantação real na burguesia, como a TFP (Sociedade Brasileira de
Defesa da Tradição, da Família e da Propriedade), fundada por Plinio Corrêa de
Oliveira (1908–1995) em 1960, que foi fundamental na derrubada do governo
Jango.
O que diferencia as várias
correntes integristas da direita católica é a posição que elas tomam diante da
Igreja Católica após o Concílio Vaticano II (1962–1965). Esse concílio
instituiu a missa em língua comum, o diálogo interreligioso e outras medidas
que são aceitas pelos carismáticos e conservadores, mas são consideradas pelos
integristas como a descaracterização do catolicismo.
Por isso, alguns setores,
como Permanência ou Associação Cultural Montfort, estão dentro
da Igreja pra lutar internamente, enquanto outros, como a Fraternidade
Sacerdotal São Pio X (FSSPX), foram expulsos por não se submeterem aos
novos preceitos da Igreja.
A TFP histórica era
cismática (rompeu com a igreja), sedevacantista (não reconhecia o Papa, ou
seja, considerava que a sede da igreja está vaga) e messiânica (acreditam que
Nossa Senhora vai causar uma mudança de era, por isso a campanha principal
deles é a Vinde Nossa Senhora, Não Tardeis). A TFP foi uma das grandes
correntes integristas católicas do pós-segunda guerra. Foram eles, junto com a
corrente do Marcel Lefebvre (que depois se tornou a FSSPX), que fizeram
oposição no Vaticano II ao aggiornamento (a atualização do
catolicismo). Na fase mais forte, eles faziam campanha de apoio aos
latifundiários contra a reforma agrária.
Com a morte do seu fundador,
a TFP se dividiu entre uma ala mais radical, que hoje é o Instituto Plinio
Corrêa de Oliveira (IPCO), e uma ala que voltou à Igreja Católica e passou
a aceitar as inovações do Vaticano II, os Arautos do Evangelho, sob a
liderança de João Scognamiglio Clá Dias.
A
política sexual da direita católica
Um terreno de colaboração
entre os setores católicos de direita e extrema-direita é a política sexual.
Todas as correntes de que eu falei aqui são conservadoras, mas nenhuma delas
tem a elaboração contínua que algumas instituições católicas têm tido. Existe
uma rede de associações que conseguem atingir os aparentemente apolíticos.
Todo ano, acontecem as Marchas
pela Vida, que são mobilizações contra o aborto. Esses movimentos surgiram nos
EUA na década de 1970, durante o debate sobre a legalização do aborto, mas, no
Brasil, se fortaleceram a partir do final dos anos 1990. A organização mais
antiga no país a trabalhar com esse tema é a Pró-Vida de Anápolis
(GO). Pró-Vida, lógico, é uma expressão para enquadrar os defensores da
legalização do aborto como defensores da morte.
E nos anos mais recentes, os
católicos têm usado o conceito de ideologia de gênero, que é vago o suficiente
para ter como alvo desde os movimentos LGBT até o feminismo. Para a
extrema-direita, a modernização do patriarcado a partir da revolução sexual dos
anos 1960 é o prenúncio da ruína das tradições da civilização, por isso eles
têm tentado dar um combate pela volta da forma pré-capitalista do patriarcado,
quando a mulher tinha que ser submissa ao marido e tinha como principal função
ser mãe.
Os
evangélicos
banner da Igreja Geração Jesus Cristo |
O fundamentalismo evangélico
brasileiro não tem nenhuma relação com o integrismo católico. Não existiu e nem
existe uma corrente real na sociedade brasileira que defenda um regime
evangélico nesses moldes. O que existe hoje são políticos evangélicos que querem
controlar o parlamento para impor uma pauta conservadora (“cura” gay, proibição
total do aborto, criacionismo nas escolas etc) por dentro da democracia
burguesa.
A falta de uma ideologia
própria por parte dos setores da direita evangélica é tão grave que eles
assimilam os discursos de outras correntes conservadoras e de extrema-direita,
como a doutrina da segurança nacional ou o tradicionalismo do Olavo de
Carvalho.
Até o momento, as lideranças
evangélicas conservadoras têm importado fórmulas da direita evangélica
americana, como a denúncia da “ditadura gay” e da “cristofobia”, colocando os
evangélicos como minoria oprimida por causa da sua religião.
Mas já existem sinais de
fundamentalismo evangélico, como nos casos dos ataques a casas de santo, e a
começa a entrar lentamente no Brasil a Teologia do Domínio, que tem uma
doutrina semelhante à do integrismo, mas tendo como referência não a Idade
Média, e sim o Antigo Testamento.
Segundo a Teologia do
Domínio, que é formulada por uma ala radical da direita evangélica americana,
as leis do Antigo Testamento não são necessárias para a salvação da alma, mas
são um modelo válido universalmente para a organização da sociedade. Aqui no
Brasil, à parte de alguns indivíduos isolados que pregam o dominionismo,
a Igreja Geração Jesus Cristo, do pastor Tupirani da Hora Lores, tem essa
concepção, e inclusive o próprio Tupirani foi preso por intolerância religiosa e
incitação ao crime, por pregar a desobediência à Constituição sempre que
ela estiver em contradição com a Bíblia.
Ainda não existe uma
corrente fundamentalista evangélica de massas no Brasil, mas já existem sinais
que apontam para isso. Quando o ovo da serpente chocar, aí veremos talvez o
maior movimento totalitário de massas da história do país.
A
síntese do Olavo de Carvalho
Manifestação da direita tupiniquim |
A ditadura militar foi um
regime de extrema-direita que durou mais de vinte anos, moldando uma parte da
consciência popular, tanto que até hoje muitas pessoas têm o período como uma
referência de bom governo.
A crise da dívida e o
ascenso do movimento de massas destruíram a legitimidade da ditadura e mudaram
a hegemonia da sociedade brasileira. Nos anos 1980, nas grandes cidades, talvez
a maioria da população fosse vagamente socialdemocrata/nacionalista de
esquerda. Durante esse período e até os anos 1990, a extrema-direita brasileira
era sinônimo de grupos isolados de neonazistas ou políticos considerados
exóticos e bizarros, como o Enéias.
Se existe um só responsável
pelo retorno da extrema-direita ao cenário político brasileiro, ele é o Olavo
de Carvalho. Em 1994, ele publicou o livro A Nova Era e a Revolução
Cultural — Fritjof Capra e Gramsci. Foi o começo de um trabalho persistente e,
então, solitário, de luta pela hegemonia, que passou a dar frutos quase vinte
anos depois.
O Olavo de Carvalho é ligado
a uma corrente esotérica conhecida como perenialismo ou tradicionalismo, criada
pelo ocultista francês René Guénon (1886–1951). Essa filosofia foi uma resposta
do final do século XIX ao que eles consideravam como o materialismo e o
cientificismo do mundo moderno. Segundo os tradicionalistas, existe uma
essência divina presente em todas as religiões (o que diferencia eles dos
integristas), mas essa essência está sendo perdida no mundo moderno, o que vai
levar a civilização à derrocada.
Por isso, o tradicionalismo
defende a retomada das tradições espirituais, e a luta contra tudo o que
consideram moderno — a democracia, o igualitarismo, o socialismo etc, que são
considerados como expressões do “reino da quantidade”, ou seja, do valor dado
pelos materialistas aos números e às maiorias, em detrimento dos valores
espirituais. Essa defesa do indivíduo aparece até no título de um livro do
Olavo de Carvalho, O Imbecil
Coletivo.
É por isso que as posições
do Olavo de Carvalho parecem tão fora do quadro político “normal”, já que
vivemos por um tempo no Brasil uma hegemonia neoliberal, e porque, para ele e
alguns dos seus seguidores, a democracia, os direitos humanos, os direitos
sociais etc, sejam indistintamente tratados como subversivos e levando ao
comunismo.
Ao mesmo tempo, ele também
se diferencia da doutrina da segurança nacional. Fazendo uma leitura altamente
distorcida do Antonio Gramsci (que considerava que a luta pela hegemonia era
parte da luta revolucionária pelo poder), ele critica a ditadura por não ter entendido que, supostamente,
a esquerda mudou a estratégia para chegar ao poder no Brasil, e passou a
priorizar a “revolução cultural”, ou seja, o controle das instituições de
educação e cultura, com o objetivo de transmitir ideologias de esquerda e,
assim, controlar a sociedade.
Esse discurso, não por
coincidência, é o que fundamenta iniciativas de extrema-direita como o projeto
Escola sem Partido.
Politicamente, seguindo a
tradição de nacionalismo de fachada da direita brasileira, o Olavo de Carvalho
defende o alinhamento com os Estados Unidos e Israel como forma de contraponto
ao “comunismo internacional” (Rússia e China) e ao Islã (nisso ele rompe
parcialmente com a maioria dos perenialistas, que consideravam que a Igreja
Católica estava irremediavelmente corrompida pela modernidade, e que
consideravam que o Islã era a única salvação para o Ocidente).
No cenário de uma direita
totalmente incrustada nas instituições, foi o discurso do Olavo de Carvalho que
conseguiu mobilizar e fazer o que o Zizek chama de basteamento ideológico,
fornecendo a chave de interpretação da realidade para os setores que foram às
ruas desde 2013 e, principalmente, durante o processo do impeachment.
Perspectivas
No momento, a principal
campanha da extrema-direita no Brasil é o apoio à candidatura do Bolsonaro para
presidente. O Bolsonaro, apesar de ser uma figura de extrema-direita, ligada à
corrente da doutrina da segurança nacional, é um político muito oportunista, e
tem feito discursos contraditórios, acenando pra todas as correntes da direita,
dos liberais até os evangélicos conservadores.
Por isso, o que ele ganha de
visibilidade política e eleitoralmente, se perde em termos de formular uma
estratégia de extrema-direita. Não estou falando isso para nos tranquilizarmos,
porque é um fato a construção diante dos nossos olhos de um campo de extrema
direita com influência de massas em torno da candidatura dele. Mas o maior
risco para a criação de uma extrema-direita capaz de lutar pelo poder, e não
apenas por um governo, do meu ponto de vista, está na interação entre os
militares influenciados pela doutrina da segurança nacional e setores
conservadores e fundamentalistas evangélicos, pegando carona na religião em maior
expansão no país.
Mas,
contraditoriamente, é o próprio exemplo da construção da hegemonia da
extrema-direita que nos mostra o caminho a seguir. Em vinte anos, eles, sem
apoio da direita oficial, conseguiram formular um discurso e enraizar ele na sociedade.
E isso, no caso, um discurso altamente reacionário, inclusive contra a lógica
do capital. Então, é possível que a esquerda socialista consiga a hegemonia, se
abandonar o movimentismo, o eleitoralismo e a herança do stalinismo, e formular
uma perspectiva socialista para a nossa época numa linguagem acessível ao povo.
Excelente artigo! A Teologia da Libertação está aí. A esquerda precisa conversar com o povo na linguagem do povo.
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