Por João César Ramos - graduando em Filosofia pela UFSJ.
Certamente muitos de nós já
ouvimos, depois de recomendar um filme ou série, a popular pergunta: “tem na Netflix?”. A gigante do serviço
de streaming já faz parte do cotidiano de muitas pessoas, que limitam ou
restringem quase totalmente seu consumo de produção cultural relacionada a
filmes, séries e afins ao catálogo da empresa. Mas o que exatamente a Netflix
produz para seu público, ou melhor, para seus consumidores?
Os dias de prestígio do selo
da empresa já existiram, mas parecem ter ficado para trás. Títulos como House
of Cards, BoJack Horseman e Narcos ajudaram a construir e consolidar a fama de
não apenas ser um método extremamente pragmático de acesso a diversão, mas
também de ser uma criadora de conteúdo de qualidade. Apesar de desde cedo ter
feito também conteúdo não muito aclamado, como Hemlock Grove, a qualidade parecia estar aceitavelmente sob
controle. Mas não é mais o caso. Mês apôs mês somos bombardeados por novos
conteúdos autorais da Netflix, seja por ela mesma ou por nossos conhecidos. A
provedora americana supera-se constantemente na quantidade de conteúdo
divulgado, e pretende chegar à surpreendente marca de 700 obras originais em 2018, incluindo novos títulos e
continuações de antigos. Você não leu errado: setecentos títulos originais em
um ano. E, sem muita surpresa, poucos se destacam meio a essa produção maciça
que a empresa vem seguindo há já algum tempo. A grande maioria do que pipoca no
catálogo é extremamente genérica e rasa, com criatividade artística mínima ou
inexistente, feita sob medida para agradar um público-alvo específico.
Mas a Netflix não é pioneira
nessa estratégia de priorizar os números e negligenciar a qualidade artística.
Ela, na verdade, surgiu no século XX como efeito quase logicamente necessário
do advento da chamada cultura de massa. Com o avanço da técnica, tornou-se
possível, notavelmente pelo cinema, pelo rádio e pela televisão, que a arte
alcançasse um número cada vez maior de pessoas, em um número cada vez maior de
lugares. E um grande número de pessoas significa também um grande número de
potenciais consumidores. Entrementes, com o objetivo de lucrar em cima das
novas possibilidades abertas, consolida-se o que Theodor Adorno e Max
Horkheimer batizaram de Indústria Cultural. A obra de arte passa a ser tratada
como um produto em larga escala, e o padrão de qualidade torna-se a capacidade
de gerar grandes cifras. Mas para que os produtos desse mercado gerem grandes
cifras é necessário agradar um número extenso de pessoas. Agradar o maior
número de pessoas torna-se, então, o objetivo, o télos da obra de arte ideal da
Indústria Cultural.
Essa finalidade é percebida
em vários blockbusters, em franquias dolorosamente arrastadas, em
grande parte da cultura pop… As receitas indicam o ritmo das tendências
artísticas. Se as obras ainda conseguem manter um desempenho comercialmente
aceitável com determinadas tendências, estas continuam a ser exploradas, se já
se tornaram obsoletas e, portanto, monetariamente improfícuas, é hora de
encontrar novas. Quando uma obra é dominada majoritariamente ou em sua
totalidade pelo comprometimento último com reproduzir certos padrões
sociológica e administrativamente já testados e bem-sucedidos, para satisfazer
requisitos pré-determinados, seja a nível global ou a nível de um público-alvo
específico: eis o momento em que ela deixa de ser arte e torna-se um mero
produto de entretenimento.
Não que o entretenimento não
seja bem-vindo vez ou outra. Que atire a primeira pedra quem de nós nunca quis
assistir a um passatempo raso qualquer depois de um dia cansativo. Eles são
prazerosos e relaxantes, uma vez que entretêm exigindo esforço mínimo ou nulo,
substituem o nosso empreendimento cognitivo. Mas as pessoas que gostam de
ampliar seu escopo cultural logo veem a inocuidade do mero entretenimento para
esse propósito. Entretanto, a Indústria Cultural não liga para isso. Produto
bom não é o artisticamente inovador, mas o que tem a capacidade de gerar
capital. E se as consequências desse raciocínio já eram bem preocupantes do
ponto de vista artístico com os blockbusters, na era Netflix
tornam-se ainda mais alarmantes. Diferentemente daqueles, a briga não é pela
venda de uma obra específica, mas pela consecução de novas assinaturas e
renovação das antigas. Para conseguir isso, a provedora precisa atender a
necessidades de grupos específicos, de usuários específicos. E a precisão das
informações para saber quais são essas demandas é finíssima. É possível saber
quais palavras os usuários buscam, quais gêneros seduzem mais, os tipos de cena
que os fazem pausar ou abandonar um episódio ou filme, quais elementos os fazem
dar play no próximo episódio ou no próximo item da lista de recomendações etc.,
padrões que muitas vezes passam despercebidos até mesmo por quem os executa.
Com essa espécie de informações, as pessoas por trás das obras não precisam
sequer entender muito de arte ou buscar se expressar por ela, basta conhecer as
demandas dos consumidores e atendê-las.
Netflix é só um poderoso
exemplo de como a arte pode impiedosamente transformar-se em um completo
negócio de entretenimento, mas isso pode ser observado nas mais diferentes
formas artísticas que enquadram-se nos moldes da reprodutibilidade técnica de
Walter Benjamin, ou seja, que podem ser consumidas pelas massas. A intenção das
críticas à cultura de massa não é promover um elitismo artístico, mas sim
refletir sobre a padronização e a superficialidade que podem estar atreladas
aos produtos da Indústria Cultural. Afinal, queremos arte ou basta o
entretenimento?
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Excelente reflexão. Até que ponto todo esse fluxo de arte e/ou entretenimento não está na verdade diminuindo (ou talvez extinguindo?!) a nossa própria cultura?! Será que a Netflix, dentre outros meios ao mesmo tempo que nos faz conhecer o entretenimento e arte de outras nações, mas também nos impede de conhecer e ficar ligado na nossa própria cultura??!!
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