Por HG Erik. Mestre em Filosofia pela UFMG
Blade
Runner (Director's Cut - 1992) começa
com um enorme olho que vislumbra o fogo prometeico que sai da chaminé de
prédios industriais gigantes e de arquiteturas sem identidade, dispersos na
cidade poluída, infernal e sombria de uma densa Babel - onde todos estão
condenados a vagar sob a chuva ácida do decadente Hades ambiental e a
existência vazia da perda de si, do Eu, significa viver como meras e
artificiais reminiscências.
Marginais,
punks, resignados hare-krishnas, trabalhadores precarizados, ladrões de
ninharias, prostitutas e mafiosos se encontram numa mistureba étnica e
linguística, a quem o paraíso do Novo Mundo em “terras de oportunidades e
aventuras” – diz um outdoor acerca do que promete ser um lar em terra estrangeira,
colônias no além - foi negado, e contra quem a razão se tornou mercadoria e
maldição.
Neste
mundo totalmente desumanizado e manipulado pelo capital, Chow faz os olhos dos
replicantes; porém, jamais tinha visto o produto final, quem vê por meio
daqueles. E é por meio dessas janelas da alma e um questionário que a
não-humanidade dos replicantes é descoberta. Mas quem acredita não ser
desalmado já fez o teste em si mesmo?
Deckard
tem fotos de um passado a se lembrar - a memória tornada objeto, exterior ao
próprio sujeito, é memória sujeita a ser modificada por mãos alheias –, e outro
que quer esquecer, insinuado pela chantagem do chefe de polícia. “Não tenho
escolha, não é?”, resta ceder e aceitar a abandonar seu “retirement” e fazer o
“retirement” das desesperadas máquinas “mais humanas que os humanos”. Por que
matá-las não é matá-las, e sim “removê-las” ou “aposentá-las”?
Nenhum
trabalhador, por mais velho que seja, se aposenta em Blade Runner. O que fez
Deckard pensar que sua condição seria diferente? O que fez não atentar para
algo de estranho nela?
O
drama que atormenta os replicantes está na contradição entre suas capacidades,
potencialidades de desenvolvimento e curto tempo de vida para realizá-las. É
tal como a vida humana sob o capital; mas mesmo tendo uma memória falsa,
implantada para acomodar a angústia e evitar que fizessem motins, são eles que
despertam a sensibilidade para o problema da vida inautêntica. Mais humanos que
humanos, mas escravos, a quem é negada a escolha. Penso, logo existo: mas a
razão e o pensamento são estranhados.
Roy
tem esperanças de viver mais e encontra o Criador na celestial pirâmide através
de um “intermediário” (JF Sebastian vive no vale de lágrimas, rodeado de
criaturas que, à sua imagem e semelhança, viverão muito pouco tempo). Tyrell
diz: “eu o esperava”. Foi profetizado que Roy retornaria? Como Ulisses
descobrindo a si mesmo, descobrirá que quem retorna é outro que aquele que
partiu e que toda ida é sem volta.
Tyrell
justifica pela mera biologia não poder consertar a criatura. Futuros
replicantes poderiam viver por mais tempo, portanto o sermão da “luz que brilha
o dobro arde a metade do tempo” tem algo de sofístico: pois a tecnologia é
escrava obediente do capital e deve atender a exigência de permitir apenas um
curto tempo de vida para os replicantes. Neste momento, Roy, em nome da vida,
se revolta contra o próprio pai e mata seu Criador. Isso implica desencantar-se
e encarar o destino, a finitude, e o lança na trilha da dolorosa maturidade.
Uma
experiência e tanto viver com medo: isso é viver como escravo. Ele e Deckard
vivenciarão uma intensa afluência de significação humana durante a violenta
perseguição na tentativa de destruírem um ao outro, e o auge desse processo
ocorre na completa vulnerabilidade de Deckard, posto na situação de encarar a
morte na queda do alto do edifício ou nas mãos do inimigo; é quando Roy sente
ter chegado a hora da própria morte e descobre a valiosa singularidade da vida
e de seus breves instantes. Com a mão furada pelo cravo do auto-sacrifício,
salva o assassino de Pris de cair no abismo.
Mas,
afinal, quem vive? Idêntico problema assalta a consciência de Rachel - ela não
sabia que era replicante – e do próprio Deckard, que sente novamente o que é o
medo da morte ao ver o unicórnio de seu sonho elaborado num palito, jogado em
frente a seu apartamento, e presumir que Gaff sabia do conteúdo de sua memória.
Afinal, “você fez um trabalho de homem”, disse Gaff.
Seis
replicantes fugiram, um morreu na fuga, apenas quatro são caçados. Onde está,
ou quem é o quinto? “Não tenho escolha, não é?” Ele sabia? Por que Deckard
seria humano, sendo tão infantil quanto os demais Nexus 6? E por que isso seria
mau? Deckard parece pensar, ao ver o unicórnio.
E
por que Gaff não os matou? Ele não tem fotos, não se sente senão à vontade em
meio ao caos e se contenta com a simplicidade de fazer seus próprios
"brinquedos" (tal como se expressou o matusalênico - Johann? -
Sebastian, Gepeto solitário e decrépito que cria meninos de brinquedo para um
mundo de fantasias e mentiras, frente ao qual os Nexus 6 se tornam ansiosos
para crescer); diante dos demais personagens, é o único que parece compreender
a tragédia da finitude natural e artificialmente reforçada de todos os humanos
e incluir entre estes os replicantes.
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