Prefácio do professor Nildo Ouriques (UFSC) a seu livro O
colapso do figurino francês: crítica às ciências sociais no Brasil.
O
golpe cívico-militar de 1964 interrompeu a crescente consciência sobre a
natureza específica de um país dependente no capitalismo contemporâneo que até
então se desenvolvia nos marcos do reformismo nacionalista representado pelo
governo de João Goulart. Na época, as ciências sociais ainda não estavam
dominadas pelo espírito bandeirante que sofremos na atualidade; em
consequência, a experiência da UnB em Brasília e o acumulo propiciado a partir
do ISEB no Rio de Janeiro ditavam em grande medida o ritmo e a intensidade do
debate Intelectual entre nós. Naquele período, o Rio de Janeiro organizava, em
grande medida, os programas de pesquisa em torno da Revolução Brasileira e não
era pequeno o impacto de sua produção nas universidades. Não resta dúvida que
se tratava de época menos acadêmica, razão pela qual a universidade era também
indiscutivelmente mais culta e admitia mais pessoas comprometidas com a
transformação revolucionária da sociedade brasileira.
A
ditadura (1964-1985) cortou pela raiz o processo de amadurecimento político do
povo, especialmente dos trabalhadores, e impôs crescente isolamento social ao
mundo universitário com a reforma presidida pelo acordo MEC/USAID aplicada a
partir de 1968. Enfim, uma boa dose de terrorismo de Estado e transformações
institucionais redefiniram a universidade funcional para o aprofundamento da
dependência. É espantoso que a maioria dos universitários tenha perdido de
vista esta crucial questão, em particular aqueles estudantes, professores r
técnicos que se situam no mundinho acadêmico desde uma perspectiva
potencialmente crítica. Todos os programas de pesquisa, as linhas de
financiamento, os seminários turbinados por generosas verbas oficiais, os
convênios “internacionais” e outras tantas iniciativas estão, agora mais do que
nunca, marcadas por dupla função. A primeira delas é a redução da universidade
a mera formadora de mão de obra, ou seja, sua plena identificação com a posição
do país na divisão internacional do trabalho cujos cursos de engenharia ou
economia constituem expressão máxima. Em poucas palavras, é necessário produzir
ensino de qualidade, suficientemente bom para reproduzir a força de trabalho em
abundância para as empresas nacionais e principalmente para as multinacionais.
A segunda é a redução da universidade a instrumento de colonialismo mental,
cultural e científico a que, de fato, está quase totalmente limitada. Ambas
funções devem ser bem compreendidas: não considero que exista - contra esta universidade
que sofremos - outra universidade marcada pelo “universalismo”, a eterna casa
do saber, expressão do conhecimento desinteressado que alguns liberais
ilustrados e a maioria dos socialistas ingênuos defendem. Tal universidade
jamais existiu! Uma universidade a serviço da cultura, da busca do
conhecimento, entregue a conquistas científicas e culturais da Humanidade é
apenas expressão de um mito, sob o qual se ocultam todas as misérias de uma
instituição a serviço da classe dominante, especialmente graves na periferia do
sistema capitalista.
Portanto,
considero insuficiente a crítica que denuncia a “universidade operacional” sem
observar as diferenças decisivas da produção do conhecimento entre um país
central e outro dependente. A crítica realizada por Michel Freitag - no Brasil
Marilena Chauí é responsável por sua reprodução - termina por tangenciar a
especificidade da produção de conhecimento na periferia capitalista. O
reconhecimento de que o ideal de universidade colide com a universidade atual
induz o analista à reivindicação daquela substância mítica que parece alimentar
o professor universitário fora do mundo atual e seus terríveis
condicionamentos. Não é preciso recordar com muitos exemplos o fato de que a
universidade é fruto da divisão social do trabalho e somente possui importância
quando está a serviço do estado-nação. É verdadeiramente espantoso que alguns
intelectuais brasileiros e também aqueles acadêmicos que buscam certa
ilustração quando permanecem por algum tempo nos países metropolitanos ignorem
este fato elementar na vida universitária experimentada naquelas instituições
estatais. Não desconheço que o estatuto da autonomia poderia ser diferente
entre nós, mas no fundo, a despeito de processos e formas legais, impõe-se uma
questão decisiva: a universidade francesa ou estadunidense, ainda que
ilustradas, existem exclusivamente para a grandeza nacional e o poderio
imperialista daqueles países. Em consequência, o discurso que entre nós, na
periferia capitalista, reproduz aquela imagem mítica da universidade universal
e do saber desinteressado como norma da vida institucional é, no mínimo, uma
ideologia que merece ácida crítica. A propósito, ainda quando encontramos
companheiros muito bem intencionados lutando por um ideal de universidade, não
podemos desconhecer que eles também estão alimentando as ilusões inauguradas
pelos liberais, segundo a qual “sem educação nenhum país poderá superar seus
problemas”.
Ora,
o desconhecimento do caráter dependente do capitalismo latino-americano
representa um obstáculo imperceptível para a maioria das pessoas de esquerda ou
com alguma militância no ambiente universitário. Ainda que possa parecer
heresia, é preciso dizer com clareza que uma “universidade pública, totalmente
gratuita, de qualidade e socialmente referenciada” ainda pode ser uma
universidade inserida nas duas reduções anteriormente indicadas, de tal forma
que o sindicalismo combativo e o movimento estudantil ao apresentarem suas
reivindicações podem, mesmo sem intenções, fortalecer o caráter colonial e a
divisão social do trabalho que finalmente justificam a existência da
universidade brasileira.
Diante
desta situação, um programa de pesquisa dedicado a superação do
subdesenvolvimento e da dependência encontra imensa resistência. Nos tempos em
que a lei do valor funciona sem constrangimento estatal algum, ou seja, aquela
época chamada neoliberalismo, a universidade adquire um caráter mercantil mais
acentuado e, em decorrência, fica também mais próxima dos empresários e/ou do
Estado por meio de políticas públicas. No entanto, também nos marcos do
keynesianismo envergonhado que sofremos - quando supostamente os neoliberais
sofreram certa derrota política - a tematização do subdesenvolvimento e da
dependência passou a ser um formidável obstáculo. Afinal, um keynesianismo com
dentes para morder, capaz de enfrentar a “república rentista”, destinado a
colocar a universidade a serviço de um projeto nacional, supõe a existência de
uma burguesia nacional capaz de liderar grandes transformações como de certa
forma ocorreu nos países metropolitanos. Mas o que podemos dizer de uma
burguesia dependente, cujo projeto não tem sido outro senão a venda da nação
como a principal mercadoria no mercado mundial? Esta é a razão pela qual os
neoliberais e desenvolvimentistas se revelam incapazes de avançar na direção da
universidade necessária, ou seja, aquela universidade cuja função é participar
organicamente do esforço nacional pela superação do subdesenvolvimento e da
dependência ao exibir as limitações estruturais do capitalismo dependente,
tanto na versão neoliberal quanto na desenvolvimentista.
Neste
contexto, não é preciso muito esforço para perceber que estamos diante de
grande disputa intelectual no terreno das ciências sociais. Na verdade, esta disputa
implica todas as áreas do conhecimento científico, mas é, por óbvias razões,
particularmente saliente na economia, na sociologia, na antropologia, na
psicologia, na ciência política... Nas ciências sociais é preciso superar o
programa atualmente dominante, marcadamente eurocêntrico, alimentado por imensa
carga colonial, cuja função fundamental é a mera imitação na periferia do
sistema capitalista de certa mentalidade e comportamento satelizado, destinado
unicamente a justificar o subdesenvolvimento e à reprodução ampliada da
dependência. O programa de pesquisa implícito na grade curricular da graduação,
e especialmente evidente no sistema de pós-graduação nacional, é expressão
acabada do colonialismo científico e cultural, cuja existência está garantida
basicamente para manter os interesses dominantes. Na aparência, este programa
rejeita a perspectiva crítica, pois a considera “política”, portanto,
supostamente sem compromisso com o “espírito científico” que as instituições
universitárias dizem exigir. Mas já se tornou impossível ocultar que
precisamente este comportamento e perspectiva acadêmica que se impôs no campus
universitário é profundamente e, antes de tudo, essencialmente político! Ora,
um currículo ou programa de pós-graduação afastado dos grandes problemas
nacionais, típicos de um país subdesenvolvido, dependente, garante como
prioridade o ocultamento dos mecanismos pelos quais a dependência se reproduz
entre nós como se outro destino histórico não fosse possível.
Esta
é a razão fundamental que impulsiona a permanente “modernização” dos planos de
estudo, do sistema de pós-graduação, dos currículos, dos programas
governamentais, do intercâmbio acadêmico, sem, contudo, inaugurar um tempo em
que os universitários brasileiros estivessem efetivamente pensando com cabeça
própria e com rigor científico, virtudes necessárias para enfrentar o
colonialismo cultural e a dependência econômica. Assim, antes da curiosidade
intelectual e do compromisso com a superação do subdesenvolvimento (únicos
motivos para a existência da universidade na América Latina), sofremos a
lobotomia acadêmica e a mera reprodução de programas que a imensa maioria
sequer logra dominar, pois o “império do efêmero” joga nossos estudantes - e
especialmente os professores - para a necessidade colonial de estar atualizado
com a última moda acadêmica emanada de Paris ou Nova Iorque, movimento que por
sua própria natureza não permite acúmulo de conhecimento e experiência de
pesquisa, mas meros reprodutores de um programa de pesquisa que jamais
dominarão por completo. Quando logram certo êxito no domínio do programa
importado, as convicções adquiridas são logo abaladas pela aparição de novo
modismo e novas estrelas acadêmicas, sempre ultra-festejada pelos monopólios de
comunicação, que cancelam o esforço de alguns anos e indicam um “novo” caminho
de Sísifo para o acadêmico impotente que vive na periferia e sonha com uma vida
nas metrópoles.
O
esforço para elaborar e manter um programa de pesquisa destinado a superação do
subdesenvolvimento e da dependência é, em consequência, subalternizado, quando
não completamente esquecido. Contudo, as condições políticas do país - e de
toda a América Latina - estão mudando, ainda que sem a velocidade necessária.
Assim, este novo e incerto cenário atualizou nossa perspectiva analítica,
abrindo um imenso campo de possibilidades para maior desenvolvimento da teoria
marxista da dependência. Não se trata de mera recuperação daquele notável
esforço intelectual, entre outras razões porque o programa de pesquisa aqui
reivindicado também requer sua atualização, não somente pelas deficiências
inerentes aos condicionamentos políticos sob os quais nasceu e se desenvolveu,
mas, sobretudo, porque existem novas exigências sociais para sua aplicação.
Mas sobre algo não pode existir dúvidas: a novidade consiste no fato de que a tendência à imitação, à cópia de tudo que vem de fora, enfim, o surrado figurino francês colapsou. Não se trata de otimismo desmedido. A hegemonia liberal que sofremos é incapaz de resolver os problemas elementares das maiorias em nosso país. Esta hegemonia foi, de certa forma, eficaz durante a ditadura, pois os liberais progressistas reivindicavam o “retorno à democracia” como uma premissa para as transformações que julgavam necessárias tanto na economia quanto no sistema político. Após décadas de funcionamento da democracia restringida, o sistema político já não possui os antigos encantos e a “teoria” econômica revela cada dia de maneira mais acentuada seu conteúdo ideológico. As novas exigências sociais derivam do cansaço com o sistema político e com a constatação de que a “concentração da renda” não se move substancialmente, a despeito do “vigor” dos programas sociais.
Agora
é cada dia mais claro que a superexploração da força de trabalho é um mecanismo
tão eficaz na ditadura quanto na democracia e os liberais progressistas já não
podem explicar sua permanência em função dos limites do sistema político. Em
consequência, se defrontam com o capitalismo dependente, com as estruturas
profundas do subdesenvolvimento. Neste contexto, revelam sua miséria analítica
e impotência política, razão pela qual a teoria marxista da dependência conta
agora com novas condições para seu desenvolvimento. O processo de reconstrução
da esquerda radical no Brasil não pode prescindir desta perspectiva analítica e
os novos partidos - ainda muito presos à antiga correlação de forças e,
sobretudo, submetidos aos ícones intelectuais criados pela USP - não terão
futuro se seguirem ignorando os aportes da teoria marxista da dependência.
Na
universidade - como sempre - tudo é muito mais lento. O academicismo que ali
domina é, como indiquei, ainda muito forte, ainda que igualmente insustentável.
O academicismo é profundamente anti-intelectual, colonizante, eurocêntrico. Ainda
que esnobe, não faz menos do que simular produção intelectual; é esterilizante
e inútil do ponto de vista das maiorias, das necessidades sociais e nacionais
num país dependente. Ainda que estimulado pelos centros metropolitanos, o
academicismo é intolerável nas universidades, que são aqui consideradas como
modelo de centros de ensino e pesquisa (“centros de excelência” no jargão
ideológico), pois nos países centrais estão a serviço do interesse nacional e
da expansão imperialista. Nos países dependentes, ao contrário, funcionam como
mera simulação intelectual, ou seja, como academicismo nocivo que merece
denúncia e combate.
Contudo,
também sobre a universidade a pressão social existirá com mais força. Não sou
demasiadamente otimista em pensar que está próximo o dia em que o atual sistema
de avaliação - cuja triste metáfora é o Lattes - será reconhecido como um tempo
em que o cinismo, a indiferença, a covardia intelectual e a ignorância
alcançaram seu apogeu. No momento, é necessário combater energeticamente este
sistema de extração colonial que alimenta a distância dos universitários em
relação ao seu povo e a realidade de seu país e do mundo. É necessário
denunciá-lo como uma forma de alienação e grave limitação da capacidade de
todos aqueles que ainda depositam suas esperanças na construção da universidade
necessária. É precisamente via pós-graduação onde mais avançou o sistema
alienante, ainda que também se alimente das energias que não são menores na
graduação. Insisto em algo elementar: não se trata apenas de rechaçar o caráter
“operacional” da universidade e/ou denunciar o Currículo Lattes como um
“horror”. Ora, o academicismo anti-intelectual que sofremos é essencialmente
colonizante, uma peça para garantir a ideologia segundo a qual um país dependente
- porém democrático e com algumas moléculas de justiça social - é tudo o que
podemos conquistar.
Neste
sentido, os textos aqui reunidos constituem em grande medida um capítulo de
história intelectual, especialmente importante para as novas gerações de
estudantes e professores, de militantes sociais e sindicalistas, que poderão
compreender de maneira crítica uma parte do debate das ideias que, conscientes
ou não, de maneira direta ou indireta, influenciou sua formação
político-intelectual. Contudo, este resgate não está voltado com os olhos para
o passado; ao contrário, observa o presente e o futuro imediato como um tempo
em disputa, de crescente radicalização, ainda que sob o ritmo político
brasileiro, onde todas as transformações ocorrem, de fato, de maneira muito
lenta.
Em minha perspectiva, nem a democracia - certamente restringida - nem o desenvolvimento - a ideologia por excelência na periferia capitalista - pode limitar a avanço deste programa de pesquisa que não somente recupera antigas contribuições teóricas iniludíveis para explicar o desenvolvimento capitalista no Brasil, mas amplia novos temas de estudo apenas sugeridos na década de sessenta e setenta quando ganharam certa visibilidade em nosso continente e influenciaram em grande medida o mundo universitário dos países centrais. Ao contrário, é precisamente pelas restrições que o regime político democrático liberal adquire entre nós e sua íntima relação com a reprodução ampliada da dependência que os estudos sobre a teoria marxista da dependência retomam vitalidade teórica e ganham visibilidade social.
Não
tenho dúvidas a respeito; as graves limitações que sofremos nas universidades
brasileiras expressam as condições dominantes na sociedade, razão pela qual
somente a retomada do movimento de massas recolocará questões teóricas ainda
incipientes entre nós e permitirá o pleno desenvolvimento da perspectiva
analítica aqui defendida. O fim das ilusões semeadas pela “alternativa petista”
criada na década de oitenta e o impacto da crise inaugurada em 2007/2008 são
acontecimentos importantes que abalam fortemente o minguado
neo-desenvolvimentismo, que se apresenta entre nós como espécie de
representação do “melhor dos mundos possíveis”. O superendividamento estatal, a
superexploração da força de trabalho, o fortalecimento da economia exportadora,
o raquitismo do mercado interno quando o país exibe a menor taxa de desemprego
da história recente, fenômenos aliados à virtual desaparição de uma burguesia
industrial produtora de máquinas e equipamentos - crescentemente importados da
China - demonstram que as bases materiais para uma política de corte
desenvolvimentista simplesmente não existem em nosso país.
Enfim,
se as limitações da ditadura já não mais existem e o esgotamento do sistema
político brasileiro exige das classes subalternas novo esforço teórico-político,
também diminuem os obstáculos para atender esta demanda social desde a
universidade. A covardia intelectual agora está ainda mais desprotegida, quando
comparada com a época da ditadura. Não há razão para negar que as condições são
mesmo favoráveis para novo impulso do marxismo no país. No entanto, este novo
esforço terá que reconhecer a importância da teoria marxista da dependência e a
superação do academicismo não poderá surgir senão do estabelecimento de
inabaláveis vínculos dos intelectuais com as forças sociais efetivamente
interessadas na transformação revolucionária da sociedade brasileira.
Referência bibliográfica:
OURIQUES, Nildo. O
colapso do figurino francês: crítica às ciências sociais no Brasil. Florianópolis:
Editora Insular, 3° ed., 2015 - p. 9 - 17.
Ótimas considerações. Estarei divulgando.
ResponderExcluir