* Artigo escrito para
o número 6/4, de maio de 2016, da revista Megafón: La batalla de las ideas do
Conselho Latino-americano de Ciências Sociais com o título “Políticas e
geopolíticas do direito”.
Extraído do site da editora Boitempo
Alysson Leandro Mascaro, jurista e
filósofo do direito brasileiro, nasceu na cidade de Catanduva (SP),
em 1976. É doutor e livre-docente em Filosofia e Teoria Geral do Direito
pela Universidade de São Paulo (Largo São Francisco/USP), professor da
tradicional Faculdade de Direito da USP e da Pós-Graduação em
Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie, além de fundador e
professor emérito de muitas instituições de ensino superior.
Todo direito é um
golpe. É a forma do engendramento da exploração do capital e da correspondente
dominação de seres humanos sobre seres humanos. Tal golpismo jurídico se faz
mediante instituições estatais, sustentando-se numa ideologia jurídica que é
espelho da própria ideologia capitalista. Sendo o direito sempre golpe, a
legalidade é uma moldura para a reprodução do capital e para a miríade de
opressões que constituem a sociabilidade. Todo o direito e toda a política se
fazem a partir de graus variados de composição entre regra e exceção.
Pelos espaços nacionais das
periferias do capitalismo, cresce, no presente momento, a utilização dos
mecanismos jurídicos e judiciais para estratagemas políticos e capitalizações
ideológicas. Presidentes da República, como no caso do Paraguai, são alijados
do poder em razão de artifícios jurídicos. No caso mais recente e talvez mais
simbólico e impactante, Dilma Rousseff sofre processo de impeachment e é tirada
do cargo presidencial no Brasil por conta de acusação de crime de
responsabilidade por “pedalada fiscal”, um tipo penal inexistente no
ordenamento jurídico brasileiro. Tal processo de impeachment irrompe após anos
de sangramento dos governos Lula e Dilma, mediante reiteradas investigações e
julgamentos judiciais de corrupção que não se estendem a políticos de outros
partidos mais conservadores e reacionários. O palco jurídico passa a ser
exposto pela imprensa tradicional com requintes de espetáculo. O direito,
jogando luzes e sombras na política do presente, faz, em alguns países
periféricos do capitalismo, o mesmo que processos de insurgência popular faz
nos países da chamada primavera árabe ou no caso da Ucrânia: destituem
partidos, grupos, classes e facções do poder, engendrando realinhamentos
internacionais e reposicionando, a menor, tais países no contexto geopolítico
mundial.
A compreensão do papel do
direito nas políticas de cada nação e na geopolítica atual exige uma mirada
tanto naquilo que o direito é estruturalmente, como forma social necessária e
inexorável do capitalismo, quanto, também, naquilo que é seu talhe e sua
manifestação hoje. Aponto cinco questões envolvendo o direito, sua política
estrutural nos Estados capitalistas e na geopolítica presente:
1.
A natureza capitalista do direito e do Estado
O direito é forma social
capitalista. Sua materialidade se funda nas relações entre portadores de
mercadorias que se equivalem juridicamente na troca. A forma jurídica é
constituinte da sociabilidade capitalista. O mesmo quanto à forma política
estatal, terceira necessária em face dos agentes da exploração capitalista. O
Estado, mesmo quando governado por agentes e classes não-burguesas, é
capitalista pela forma. Direito e Estado se arraigam nas relações sociais
capitalistas, estando atravessados pelas vicissitudes e contradições de tal
sociabilidade da mercadoria. Legalidade e política estão submetidas à dinâmica
acumulação, nacional e internacional.
2.
Política, direito e formações sociais insignes
Diferentes formações
sociais do capitalismo estabelecem distintas instituições políticas e jurídicas
pelo mundo. Há um vínculo necessário entre capital, Estado e direito, mas são
variáveis os graus de arraigamento institucional, utilização da legalidade,
segurança jurídica e mesmo de soberania nacional e estatal efetiva.
Embora todos os Estados
contemporâneos sejam juridicamente soberanos, sua autonomia está condicionada à
sua força econômica. As condições institucionais da política e do direito dão
balizas à constituição de cada formação social específica, mas, em especial,
são constituídas pela dinâmica das determinações materiais e econômicas.
Países periféricos na
economia capitalista mundial, como os da América Latina, têm um grau menor de
assentamento das instituições nas quais se fundam política e juridicamente. O
horizonte principio lógico e normativo que os guia tem limites e contradições
necessárias com a própria dinâmica do capital que os atravessa e os constitui.
Eventuais políticas de esquerda e juridicidades “independentes” têm dificuldade
de materialização em tais formações sociais.
3.
Injunções jurídico-políticas neoliberais
Sendo Estado e direito
formas sociais do capital, a força e a estratégia das burguesias nacionais e
sua relação com as classes sociais locais e os capitais internacionaisgeram a
coesão e o desenvolvimento institucional da política e do direito em cada país.
Tal processo, no entanto, é plantado em contradições internas e internacionais.
As lutas de classes e
grupos e as disputas entre frações do capital fazem com que as instituições políticas
e jurídicas sejam atravessadas por tensões, antagonismos e contradições. Por
isso, não se pode pensar em Estado e direito como aparatos consolidados,
neutros ou técnicos, mas como correias de transmissão de movimentações gerais
da dinâmica social. Havendo descompasso entre forças econômicas e posições
político-jurídicas, a resolução da reprodução social capitalista se faz sempre
em detrimento do plano institucional.
A América Latina sofre, no
presente momento, uma rearticulação das classes burguesas e médias nacionais,
sob sintonia do capital mundial, empunhando slogans do direito e reconstituindo
movimentos conservadores e reacionários que buscam contrastar e diminuir
conquistas jurídicas e políticas públicas de caráter mais progressista.
Trata-se de momento aberto da luta de classes. O direito é arma privilegiada
para tal injunção.
Como não há força material
em princípios jurídicos nem em meras repetições ou sacralizações da legalidade,
a exceção e o uso seletivo da legalidade, sustentados por vastos controles da
informação por meios de comunicação de massa, passam a ser os instrumentos
excelentes da luta de classes atual. O direito e a negação do direito se
misturam para ações de golpe que possibilitem o rearranjo das classes
capitalistas.
Contra os horizontes de
alguns dos Estados latino-americanos do início do século XX – mais soberanos
economicamente e tendentes a uma dosagem maior de inclusão social dentro do
quadro capitalista –, classes burguesas e médias da América Latina encontram-se
em um rápido processo de submissão às estratégias do capital internacional. O
reagrupamento de frações das burguesias nacionais se faz em torno de projetos e
linhas de força patentemente neoliberais.
4.
Ideologia jurídica e ideologia dos juristas
Nas injunções das classes e
frações do capital latino-americano contemporâneo, o direito tem servido como
seu instrumento privilegiado. A ideologia jurídica conduz golpes que não
aceitam ser narrados como tais e, ao mesmo tempo, a mesma ideologia jurídica
tem sido a bandeira requerida por governos e movimentos sociais progressistas
latino-americanos. Até mesmo aqueles depostos por golpe, como o caso do PT no
Brasil, conclamam pelo respeito às leis e às instituições…
A ideologia jurídica tem
tal primazia porque é constituinte da própria ideologia capitalista. Ser
sujeito de direito, cidadão, contratar livremente entre iguais formalmente,
respeitar as instituições, cumprir as normas e jungir-se à legalidade, tudo
isso é o campo de condições pelo qual a subjetividade se estrutura na
sociabilidade do capital. Por isso, da direita à esquerda, as posições
políticas disputam a legalidade, mas não rompem com tal horizonte ideológico.
No entanto, como a forma jurídica é espelho da forma mercadoria, a ideologia
jurídica só se presta à reprodução do capital, não para sua superação.
Os juristas são
constituídos pela mesma ideologia jurídica geral, mas portam discursos e
formulações que modulam e exacerbam a relevância da juridicidade. Profissionais
do direito pertencem à classe média, distinguindo-se então da população apenas
no campo econômico, sem maior lastro intelectual que não seja aquele da técnica
da dogmática jurídica. O ambiente de convivência dos juristas e dos agentes dos
poderes judiciários é a classe média que partilha dos espaços do capital. Por
isso, o interesse imediato da burguesia passa a ser o horizonte prático da
ideologia dos juristas. No caso da América Latina, o recente alinhamento do
capital gera também uma classe de juristas e de agentes dos poderes judiciários
que capitaneia uma injunção jurídica regressista.
Com a recente integração
tecnológica e de comportamento das classes médias mundiais, os juristas
latino-americanos são formados em horizontes de pensamento norte-americanos e
capitalistas. A common law, a segurança do capital e dos contratos e um
moralismo legalista são louvados mundialmente. Nesse ambiente, eventuais
projetos nacionais contrastantes com a movimentação do capital mundial
encontram, nos juristas latino-americanos, oponentes ativos.
5.
Direito, espetáculo e golpe
Na reprodução social
contemporânea, midiática e baseada em informações massificadas e de rede, o
direito assume papel importante como espetáculo e como fortalecimento de
posições ideológicas. As acusações constantes de ilegalidade, rompimento do
republicanismo e corrupção, feitas contra governos de esquerda, encontram
cadeia de transmissão nos meios de comunicação de massa e nos aparatos
judiciários de cada Estado.
Assim, formas
contemporâneas de luta de classes e de afirmação ainda mais sobrepujante de
interesses do capital se fazem à custa dos governos e do direito posto, mas com
auras de respeito às instituições. Desde Manuel Zelaya a Dilma Rousseff,
passando pelos combates constantes aos governos venezuelanos, dentre outros, a
combinação de poder judiciário com mídia substitui, no presente, o papel dos
militares no passado.
As vantagens de golpes e
compressões do espaço político mediante espetáculos jurídico-midiáticos são
inúmeras, a começar da incapacidade de reação popular contra injunções que não
são claramente de força armada. Acima disso, golpes, constrangimentos e linhas
de força conservadoras e reacionárias que agem pelo direito e pelos meios de
comunicação de massa pavimentam a ideologia do capital de modo pleno: seus
trâmites se dão com a linguagem e dentro do espaço que constitui a própria
compreensão da subjetividade – sujeito de direito, lei, ordem, processo
judicial, rito, procedimento. Somando-se a isso pleitos morais religiosos
conservadores, como no caso dos que capitaneiam o impeachment de Rousseff, o
quadro da ideologia estruturante da sociabilidade capitalista se confirma.
Com isso, a reprodução da
sociabilidade capitalista na América Latina contemporânea se faz na marcha de
golpes que não se deixam chamar como tais, com constituição de entendimentos
ideológicos a partir de meios de comunicação de massa e com poderes judiciários
aderentes ao capital que veem a lei como expressão de seu horizonte de mundo. O
golpe está no mundo jurídico porque dentro, nas margens ou fora da lei, se fala
direito.