Alysson
Leandro Mascaro – Jurista, Professor da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (Largo
São Francisco) e da Faculdade de Direito da Universidade Presbiteriana
Mackenzie, Doutor e Livre-Docente em Filosofia e Teoria Geral do Direito pela
USP. Autor dos livros “Filosofia do Direito”, “Introdução ao Estudo do Direito”
e “Filosofia do Direito e Filosofia Política: A justiça é possível”, pela
Editora Atlas, e “Lições de Sociologia do Direito”, “Crítica da Legalidade e do
Direito Brasileiro” e “Utopia e Direito: Ernst Bloch e a ontologia jurídica da
utopia”, pela Editora Quartier Latin do Brasil.
Texto
originalmente publicado na Revista MPD Dialógico, do Movimento do Ministério
Público Democrático. Ano V, nº 21, p. 20.
Link para acesso ao original: http://www.mpd.org.br/img/userfiles/image/Dialogico_21.pdf
Não há dignidade humana sem a afirmação dos direitos
humanos, mas somente com os direitos humanos não se alcança a dignidade humana.
A relação entre direitos humanos e dignidade humana é dialética. Para que todos
os seres humanos sejam plenamente tratados e constituídos como tais, os
direitos humanos têm de ser afirmados e inseridos em um contexto social muito
distinto daquele em que hoje são cultivados.
A sociedade mundial foi forjada para o capitalismo a partir
dos escombros das velhas formas de exploração, como a feudal e a escravista.
Tais explorações pré-capitalistas são marcadas pela brutalidade da força, do
mando direto, do contraste entre aquele que só manda e aquele que só obedece.
O capitalismo rompe com o velho quadro, em favor de outro
tipo de exploração. Se a forma de imposição pré-capitalista era pessoal, bruta
e violenta, a nova procede de modo distinto. Quanto mais avançadas se tornam as
relações capitalistas, mais elas deixam de depender da pessoalidade do mando.
Os sujeitos passam a ser “atomizados”, despersonalizados. Para que todos possam
ser explorados, como corpos e inteligências que vendem seu trabalho, todos são
sujeitos de direito, indistintamente. A exploração capitalista, assim, erige
uma nova instância social como seu fundamento de repressão: o direito estatal.
Se todos forem sujeitos de direito, todos podem
transacionar no mercado, comprando e vendendo mercadorias e possibilitando a
exploração do trabalho por meio do contrato assalariado. O capitalismo desloca
a violência das mãos de cada senhor para as ditas mãos impessoais do Estado. A
igualdade formal entre os sujeitos de direito que são constituídos como objeto da
exploração do trabalho pelo capital e a atuação do Estado nos limites da força
prevista juridicamente, de modo impessoal, passam a ser o horizonte máximo da
dignidade humana no capitalismo.
O escravismo e o feudalismo vivem sem direito. O
capitalismo vive do direito que garante a exploração. A manutenção do aparato
estatal – direito público –, a garantia do direito privado – igualdade formal,
liberdade contratual e propriedade privada – e a repressão da insurgência
contra tal exploração – direito penal – são seus limites mínimos. E, em tal
quadro que pode variar do mínimo ao máximo, os direitos humanos são justamente
a variante máxima da dignidade humana dentro dessa exploração.
O capitalismo é uma forma de exploração indireta, cujo
poder de dominação e exploração se verifica tanto no capital do burguês quanto
no Estado. Os direitos humanos são a lógica menos torpe de tal exploração. Mas
há um vínculo indissolúvel entre a exploração capitalista e o direito.
Justamente por isso há um limite estrutural para a dignidade humana a partir
dos direitos humanos, limite que é dado pela própria estrutura do capitalismo.
A separação entre a esfera jurídico-política e a social, e,
em específico, dos trabalhadores, faz com que os direitos humanos sejam um
garantidor da reprodução capitalista. Há ganhos de democratização e
pluralização social dentro de tal quadro, mas, ainda assim, ele mantém o
poderio econômico de alguns em face da maioria.
No capitalismo cada qual vota com o mesmo peso formal dos
demais, e todos são iguais perante a lei. Mas o grande capital determina as
eleições, as opções políticas e os desejos dos eleitores e dos eleitos. O
sujeito de direito é constituído pelas estruturas capitalistas, e, por causa
disso, ele aprende a se bastar nos pequenos desejos. A dignidade humana, que
hoje é objeto de luta, é formal e mínima.
O menor e mais desprezível pequeno desejo é o do mundo sem
direitos humanos. O maior pequeno desejo do sujeito sob o capitalismo é o de
direitos humanos. Mas a superação do capitalismo é a possibilidade dos homens
se afirmarem livremente, sem as diferenças econômicas e sociais que ainda
tornam os seres humanos presos a uma hierarquia de classe entre o capital e o
trabalho.
É porque alguém deseja profundamente os direitos humanos
que deve desejar com fervor a plena dignidade humana. Quem deseja a igualdade
não pode dela gostar apenas no que tange ao seu aspecto formal-jurídico. É
preciso gostar de sonhar que, em algum dia, os seres humanos terão condições
econômicas, sociais e culturais similares. O capitalismo não comporta a plena
dignidade humana. A dignidade, que os direitos humanos exprimem e buscam
consolidar, é maior do que o próprio horizonte jurídico dos direitos humanos.
Fomos bárbaros; hoje somos formalmente civilizados; amanhã, num mundo fraterno
e socialista, seremos plenamente humanidade.