A apoteose da alienação

Que tipo de sociedade é esta, em que se encontra a mais profunda solidão no seio de tantos milhões; em que se pode ser tomado por um desejo implacável de matar a si mesmo, sem que ninguém possa prevê-lo? Tal sociedade não é uma sociedade; ela é, como diz Rousseau, uma selva, habitada por feras selvagens.” MARX. Sobre o Suicídio. p. 28. 

Coringa (2019) Todd Phillips


por Fernando Pereira - graduando em Filosofia pela PUC-MG.


O termo alienação é muito recorrente a muitos estudos, graças, tanto as experiências socialistas, quanto também em ser uma manifestação própria do capitalismo, esse fenômeno podemos encontrar tanto no chão de uma fábrica, quanto em toda a sociedade, de mesmo modo, como vemos n´os manuscritos de 1844 de Marx, é uma das bases de formação do ser humano, para o bem ou para o mal encontra-se no contemporâneo em sua força total. Dito isso, que é na sociabilidade atual, quanto na luta do homem com a natureza, moldando-a, adaptando-a para seus meios, para sua sustentação e as mais diversas necessidades, também está relacionado ao que o homem produz, na arte de modo geral e relativo está dentro dessas produções.

No cinema, podemos traçar variados gêneros e filmes que falam diretamente de alienação, ou indiretamente. Nos filmes de George A. Romero ou no expressionismo alemão, no que os blockbusters geram para seu público num universo fictício, mas, claro, tem sua base no real, ou mesmo de filmes objetivos, que denunciam ou mostram o mundo real, embora a seu modo, com seu viés político-ideológico. O fato é, não é possível criar uma obra de arte fugindo do real, mesmo negando ou tentando superá-lo, ela é o ponto de partida e de retorno da obra, sendo ela como um produto, uma mera mercadoria, ou uma obra-prima, uma objetivação humana, com todas as contradições que a sociedade é composta, ela terá seus vícios e virtudes.

Filmes com temática da alienação


Em Foxcatcher (2014) uma história sobre um magnata, John du Pont, que almeja “salvar” os EUA fomentando o esporte, especificamente, luta greco-romana, é um exemplo da alienação citada no início do texto, o magnata que compra tudo, até se deparar que não consegue comprar uma pessoa, não conseguindo lidar com essa situação, o principal de seus lutadores,  Mark Schultz (Channing Tatum), se vê também em grande contradição com essa relação e adoece, começa a enfrentá-la com uso de drogas. John du Pont, no fim mata Dave Schultz, irmão de Mark, pois para ele, era o grande empecilho na relação dos dois como esportistas. Baseado numa história real, Foxcatcher, mostra o adoecimento que se tem perante as relações quando o homem é uma mera mercadoria. A relação se torna uma fantasmagoria, quem se vende no mercado e quem compra no mercado, uma das condições do mundo dos trabalhadores livres, chamamos de capitalismo.

Foxcatcher (2014) Bennett Miller
O mesmo movimento, mas de forma diferente, podemos ver em Arábia (2017), porém aqui o protagonista um jovem operário, Cristiano (Aristides de Sousa) que desperta diante da alienação, após muito tempo numa vida comum, ele se vê diante de um grande incomodo, a vida não fazia mais sentido daquela maneira, eramos todos enganados:

Percebi que, na verdade, eu não conhecia ninguém, que tudo aquilo não significava nada pra mim. Foi como acordar de um pesadelo. Me sinto como um cavalo velho, cansado, meus olhos doem, a cabeça dói, não tenho força pra trabalhar. Respiro rapidamente. Meu coração é uma bomba de sangue.

Queria puxar meus colegas pelo braço e dizer pra eles que eu acordei, que enganaram a gente a vida toda. Estou cansado, quero ir pra casa. Queria que todo mundo fosse pra casa. Queria que a gente abandonasse tudo, deixasse as máquinas queimando, o óleo derramando, os pedaços de ferro abandonados, a esteira desligada, a lava quente derramando e inundando tudo. Queimando as máquinas, a terra, a brita… E a fumaça subindo. Preto igual à noite. Tapando o céu e jogando dinheiro fora. E a gente ia estar em casa, tomando água, dormindo à tarde.

A gente ia tossir a fumaça preta, ia tossir fora os pedaços de ferro do nosso pulmão, o nosso sangue ia deixar de ser um rio de minério, de bauxita, de alumínio e ia voltar a ser vermelho, igual quando a gente é novo. E é por isso que eu queria chamar todo mundo. Chamar os forneiros, os eletricistas, os soldadores e os encarregados – os homens e as mulheres – e dizer no ouvido de cada um ‘Vamos pra casa. Nós somos só um bando de cavalos velhos.’ Mas ninguém ia ouvir porque ninguém quer ouvir isso.

Arábia ainda que seja uma obra que mostra uma saída da alienação, o protagonista está sozinho diante dessa condição, como se despertasse da alegoria da caverna do Platão.

Psicopata Americano (2000) é outra obra sobre alienação, do pequeno-burguês, Patrick Bateman (Christian Bale) um jovem que trabalha em Wall Street, tem uma vida intensa, onde seu narcisismo, ambição e busca desenfreada de ser melhor dentre seus colegas de Nova York, desperta seu desejo mais brutal, matar. O mais alto grau do tratar humanos como objetos, são empecilhos diante dessa busca individual de reconhecimento e exibição.  

Para não me alongar, pois a lista sobre o tema é bem extensa, como por exemplo O Operário (2004), e o clássico Tempos Modernos (1936) de Chaplin, cada qual em sua especificidade.

A apoteose da alienação: Coringa

Dor elegante


Um homem com uma dor
É muito mais elegante
Caminha assim de lado
Com se chegando atrasado
Andasse mais adiante

Carrega o peso da dor
Como se portasse medalhas
Uma coroa, um milhão de dólares
Ou coisa que os valha

Ópios, edens, analgésicos
Não me toquem nessa dor
Ela é tudo o que me sobra
Sofrer vai ser a minha última obra


Paulo Leminski

Coringa é um personagem marcante no cinema, desde Batman (1989) que Jack Nicholson interpretou com maestria, depois em Batman – O Cavaleiro das Trevas que Heath Ledger o imortalizou, agora em 2019 temos o longa do início do Coringa, como foi a sua construção, e para surpresa dos fãs e crítica, Joaquin Phoenix, interpretou a altura e peso o icônico vilão.

Várias resenhas, críticas, apresentações foram feitas sobre o personagem. Por exemplo como um personagem da destruição, reduzindo-o, a um ponto de encontro de ideologias extremas, o que não concordo que seja:

O destrutivismo, portanto, é uma psicologia de escombros gerada por uma ideologia inexequível na teoria e na prática. O Coringa fracassou na vida. Consequentemente, ele passa a ter como objetivo destruir a vida dos outros.(…) O destrutivismo é a segunda etapa de qualquer visão inalcançável e impraticável sobre como a sociedade deveria ser em contraposição a uma realidade que se recusa a se conformar à sua utopia. [1]

Outra tratando de pontos específicos, como a doença neurológica que Coringa tem no longa e suas referências da Nova Hollywood [2]. Ou, artigos liberais de esquerda, tratando sobre sua reverberação política [3]. Cada qual tem sim sua validade no debate, pois Coringa é um filme que dá pano pra manga, e será ainda muito bem discutido. Mas nenhum desses artigos que li, não tratavam do tema que penso ser o mais intenso do filme, alienação. 

Coringa de Todd Phillips nos mostra na prática como uma sociedade devora aquilo que é humano, indo de contra a muitas críticas que o filme é uma apologia à violência[4], o que não é verdade, o que ele nos traz é o esmagamento do humano, do não encontro do homem com seu ser genérico, como no início do texto, onde cito os manuscritos de 1844 de Marx, o pensador nos traz os apontamentos e sua gênese da alienação. Coringa não completa sua generalidade, num mundo onde o estranhamento é a ordem do dia, como, por exemplo, sua relação com a mãe, e claro com o que a sociedade fez com sua personalidade. Mesmo no alto de seu despertar diante dos acontecimentos na sua vida, Coringa se desperta incompleto, na sua alienação, no seu entendimento de mundo, no enfrentamento de seu interior, por isso ele desfalca, traz sua alienação e estranhamento perante todos como uma salvação da sociedade, não que ele mesmo queira isso, mas é formada a partir dele. Então como nos filmes dessa temática, Coringa é mais um filme sobre, mas não qualquer um, pois é o diapasão da atual conjuntura mundial, novamente, o vilão é a expressão da crise do capitalismo, como fora em 2008, porém agora com uma roupagem diversa, pois a crise é diversa.

A alienação é celebrada no filme, e causa desconcerto no público, pois estamos inseridos nessa mesma condição, onde cada um de nós em certo grau se rendeu;

A imundície, esta corrupção, apodrecimento do homem, o fluxo do esgoto (isso compreendo à risca) da civilização torna-se para ele um elemento vital. O completo abandono não natural, a natureza apodrecida, tornam-se seu elemento vital. Nenhum de seus sentidos existe mais, não apenas em seu modo humano, mas também no seu modo não humano, por isto nem sequer num modo animal. MARX. p.140.[5] 


Em Marx, pelo fato do homem estar estranhado de suas criações, afastado de sua real essência, ele troca os meios pelo fim, suas necessidades que seriam de um animal são sua finalidade de vida. O embrutecimento dos sentidos, a relação do homem com o mundo e com seus pares é definitivamente modificada a partir do aparecimento do capitalismo, da modernidade e seu contrato de trabalhadores livres, essa condição que permeia até atualidade, não mais vê o homem em seu sentido total, por isso infla com saídas niilistas, pois não há abolição da ordem social vigente. Coringa não faz isso, quem faz são seus seguidores, mas será que é realmente uma saída emancipadora, ou apenas uma extrapolação da alienação?


[5] Manuscritos Econômico-Filosóficos – Karl Marx. Boitempo. 

Postar um comentário

Postagem Anterior Próxima Postagem