Entrevista com Gregory Gaboardi: “é importante não romantizar a atividade filosófica”



Foto Alexandre Noronha Machado (Facebook)

Gregory Gaboardi – Doutorando em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS) na linha de Epistemologia Analítica. Possui mestrado em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (2017) e graduação em Comunicação Social - Publicidade e Propaganda pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (2012).

Acervo Crítico Gregory, para iniciarmos, gostaria que você falasse um pouco sobre como chegou a filosofia e sua área de pesquisa. Especificamente, concentra seus estudos em epistemologia analítica contemporânea, especificamente os temas do ceticismo cartesiano e epistemologia do a priori. Sua dissertação de mestrado, “Uma defesa do contingente a priori” (PUC-RS, 2017), versa sobre isso, correto?

R: Antes de entrar no ensino superior, apesar de ter interesse por filosofia, eu tinha aquela visão (alimentada pelo que aprendi no ensino médio) de que a filosofia era uma espécie de “história das ideias”. Algo como a disciplina de literatura, só que aplicada aos textos de gregos malucos do passado. Não via a filosofia como uma disciplina que ainda estivesse viva, como uma ciência de primeira ordem (isto é, uma ciência sobre as próprias coisas em vez de ser sobre como alguém pensou ou falou das coisas). Pensava que era apenas matéria de curiosidade histórica, discussão exegética. Afinal, foi como me apresentaram ela. Por isso, ao ingressar no ensino superior, não escolhi filosofia. Escolhi publicidade, e por razões até um tanto bobas ou ingênuas (convenhamos que nem deveria existir a expectativa de que alguém com dezoito anos seja capaz de saber qual curso de ensino superior deve fazer).

Acontece que, felizmente, na época que cursei publicidade o currículo tinha disciplinas da filosofia desde os semestres iniciais. Em uma dessas disciplinas a visão que eu tinha sobre o que era fazer filosofia foi modificada drasticamente. Nem imaginava que era possível filosofar do jeito que me apresentaram: fazendo perguntas fundamentais, que qualquer pessoa leiga no mundo de hoje poderia fazer, mas embasando respostas em argumentação, buscando clareza e objetividade. Depois entendi que o que eu tinha descoberto era a filosofia analítica (ou a abordagem analítica), e desde então fiquei apaixonado. Completei a graduação em publicidade, mas sem pretensão de fazer carreira na área. E isso foi deliberado, não me arrependo de ter completado essa graduação, pois além de o curso de publicidade ter sido uma experiência rica, era um diploma que poderia ajudar caso fosse necessário seguir um “plano B”. De qualquer maneira, tentei ingressar na pós em filosofia assim que me formei (não quis encarar outra graduação, pois estudei bastante filosofia, ainda que na maior parte por conta própria, durante o curso de publicidade).

Fui parar na epistemologia analítica por razões práticas: foi a linha de pesquisa entre as disponíveis nos programas de pós-graduação da minha região em que eu teria mais chance de aprovar um projeto. Não era a linha pela qual eu mais me interessava, mas tive que ser prático porque estava levando tempo demais para entrar na pós (tentei por três anos até conseguir). Originalmente, eu pretendia pesquisar na área da metafísica. Contudo, meu interesse por epistemologia cresceu bastante conforme passei a pesquisar na área, e hoje me sinto plenamente satisfeito ao priorizar a epistemologia.

Minha dissertação não envolveu o ceticismo cartesiano, que será o tópico da minha tese de doutorado. Foi sobre um tópico mais específico (a possibilidade de haver conhecimento a priori de verdades contingentes) dentro de um tópico mais geral, o conhecimento/justificação a priori (e a questão “racionalismo x empirismo”) no qual eu tinha um interesse antigo (e pelo qual ainda me interesso bastante).

AC – Você tem um artigo com título “As necessidades do racionalismo”. Nele você parte de uma premissa desenvolvida ao longo dele que seria “o conhecimento a priori envolve apenas verdades necessárias não é própria do racionalismo”. Poderia explicar de maneira objetiva o que seria “verdades necessárias” e como ela não seria apenas “própria do racionalismo”, visto que a questão do cogito ergo sum (penso, logo existo) de Descartes seria um ponto forte do racionalismo moderno a ser considerado?

R: Verdades necessárias são proposições necessariamente verdadeiras. Uma proposição é aquilo que expressamos por uma sentença declarativa, algo que pode ser verdadeiro ou falso, como <Está chovendo>, <Sócrates é mortal> ou <O Brasil tem cinco habitantes> (uso “<” e “>” para identificar proposições). Uma proposição necessariamente verdadeira é uma que é verdadeira e que não poderia ser falsa. Um jeito popular de capturar essa ideia é falar em mundos possíveis, onde um mundo possível é, grosso modo, uma maneira como a realidade pode ser. Assim, uma verdade necessária é uma proposição que é verdadeira em todos os mundos possíveis (todos as maneiras como a realidade pode ser). Por exemplo: <2+2=4>, <Todo objeto é idêntico a si mesmo> e <Se Sócrates é mais alto que Platão e Platão é mais alto que Aristóteles, então Sócrates é mais alto que Aristóteles>. Por contraste, algumas proposições são necessariamente falsas e outras são verdadeiras em alguns mundos possíveis e falsas em outros. Exemplos de falsidades necessárias: <2+2=738>, <Sócrates é mortal e não é mortal> e <Nenhuma proposição é verdadeira>. Já o caso da proposição que é verdadeira em algum mundo, mas não em todos, é o das proposições contingentes. São proposições como <Aristóteles foi discípulo de Platão>, <A Alemanha venceu a Segunda Guerra Mundial> e <Há água em Marte>. Assim, uma verdade contingente é uma proposição contingente que é verdadeira em nosso mundo, o mundo atual. Por exemplo: <Gatos existem>, <A Alemanha perdeu a Segunda Guerra Mundial> e <Aristóteles nasceu em Estagira>.

Há discussão sobre qual é a melhor interpretação do cogito, mas independentemente do que Descartes tinha ou deveria ter em mente, é defensável que possamos saber a priori uma proposição como <Eu existo>. Basta ter os conceitos relevantes e considerar a questão (o mesmo se verifica com <Todo triângulo tem três lados>, por exemplo). Não é necessário que qualquer experiência sua sirva como evidência para você poder crer racionalmente em <Eu existo> (compare com <Estou com dor de dente>, que depende de você ter certa experiência servindo como evidência, justificando sua crença). Não é necessário inferir <Eu existo> de <Estou pensando>, por exemplo, ainda que possamos fazer isso. Até porque nesse caso o conhecimento de <Eu existo> não seria a priori, e sim a posteriori: saberíamos que <Estou pensando> por introspecção, o que contaria como conhecimento a posteriori, e para algo ser conhecido a priori com base em uma inferência partindo de certas premissas, todas as premissas precisam ser conhecidas a priori. Caso contrário o conhecimento da conclusão, mesmo que a conclusão seja <Eu existo>, será a posteriori ou empírico.

Agora, se podemos saber a priori uma proposição como <Eu existo>, então podemos saber a priori uma verdade contingente. A não ser que você seja Deus, que supostamente existe necessariamente (caso exista), você pode saber a priori que você existe mesmo sendo verdade que você poderia não ter existido. Isto é, há mundos possíveis em que você não existe.

Apesar de isso tudo soar até banal, historicamente a posição dominante foi que não se poderia saber a priori proposições contingentes. Racionalistas tomaram o conhecimento de verdades matemáticas ou lógicas como paradigmático do conhecimento a priori, e verdades matemáticas ou lógicas são necessárias (<2+2=4> não poderia ser falsa, é necessariamente verdadeira, diferentemente de <Eu existo>). Muitos racionalistas assumiram que, nos casos de conhecimento a priori, aquilo que justifica sua crença, que pode ser uma espécie de intuição racional, uma apreensão direta da verdade, não só mostra que certa proposição é verdadeira, mas também que ela não poderia não ser verdadeira (ao pensarmos se <2+2=4>, essa proposição nos atrairia como parecendo necessariamente verdadeira, do tipo que não seria falsa por mais diferente que nosso mundo pudesse ser, de uma maneira que não verificamos, por exemplo, ao pensar se <2+2=738>, que é necessariamente falsa, ou se <O Brasil foi colonizado por Portugal>, que é contingente). O próprio Descartes parece ter pensado que o que podemos saber a priori é a proposição <Se penso, então existo>, que é uma verdade necessária, e não <Eu existo>, que é contingente. Nesse artigo eu argumentei que racionalistas não precisam assumir que o conhecimento a priori tem que sempre ser conhecimento de verdades necessárias, ainda que vários tenham assumido. Vale dizer que não só racionalistas assumiram isso: empiristas também o fizeram, ainda que por outras razões.

AC – Gregory, considere que pudesse haver uma certa “disputa” entre duas correntes da filosofia: analíticos e continentais. Aos primeiros poder-se-ia dizer que enfrentariam “problemas filosóficos”, ao passo que, de outro, os continentais se concentrar-se-iam na “história da filosofia”. Em sua visão, essa “divisão” seria factualmente plausível ou seriam “modos” de pensar a filosofia e buscar, por meio desses dois “tipos”, ferramentais para o pensar e fazer filosófico?

R: Penso que existem essas “correntes”, mas eu caracterizaria elas de modo diferente. Até porque não acho que todo continental se concentre na história da filosofia. Penso que na realidade são duas orientações ou abordagens metodológicas distintas. A abordagem analítica consiste em encarar a filosofia como uma atividade que deve envolver argumentação precisa (o que pode tornar úteis métodos formais, como lógica e cálculo de probabilidade), onde sejam fornecidas razões que apoiem a verdade de alguma tese que responda algum problema determinado (ainda que a tese defendida possa até ser algum tipo de relativismo ou ceticismo), com espírito científico (coletivo, comunitário). A abordagem continental é aquela que não é analítica, que não se alinha com algum ou todos esses aspectos descritos. Além disso, segundo me parece, é uma abordagem onde o que geralmente é priorizado é uma espécie de experimentação conceitual, de geração de suspeita sobre pensamentos considerados tradicionais ou geração de visões alternativas, mas sem que essas suspeitas ou visões sejam elaboradas por se julgar que estão bem apoiadas em argumentos ou evidências. Situando por outro ângulo, creio que para o continental a diferença entre teorias ou posições filosóficas seria fundamentalmente como a diferença entre movimentos literários. Para o analítico é fundamentalmente como a diferença entre teorias científicas rivais.

Uma abordagem não precisa negar que exista valor no objetivo da outra, mas pode colocá-lo em segundo plano. Além disso, creio que, em princípio, um filósofo pode ser analítico em alguns momentos ou trabalhos e continental em outros. Mas, o mais comum é um filósofo ser sempre analítico ou sempre continental. E sempre é ou um ou outro, não é possível ser um pouco mais de um e menos do outro ao mesmo tempo, digamos, ainda que nenhum filósofo precise ser o tempo inteiro um em vez do outro.

Em resumo, penso que a divisão analítica-continental existe e tem que ser mantida. Ao menos da forma que entendo ela (que talvez seja atípica). Não sei se sequer poderia ser superada, e suspeito que a existência e devida manutenção dela tenha mais efeitos positivos que negativos. O que é necessário é que os pesquisadores aprendam a conviver com ela e a tirar o melhor dela para todos (o que não é óbvio que esteja sendo feito nos arranjos institucionais que temos hoje), evitar que ela gere injustiças. É o caminho mais complicado, mas é o caminho realista e correto. Achar que a divisão foi ou tem que ser superada é bobagem, achar que ela existe e que um lado deve eliminar ou dominar o outro também é bobagem.

AC – Em um outro texto, cujo título é “As utilidades e novidades da Filosofia”, você argumenta que “Conhecer a Filosofia é diferente de filosofar”. Poderia comentar mais detidamente sobre essa sentença? Sobretudo, como diferenciar (caso haja diferença) o “filósofo” de um mero “comentador”?

R: Nesse trecho desse texto eu queria apenas apontar que pode ser útil ler trabalhos filosóficos, e que isso pode ser feito sem necessariamente se filosofar. Isto é, sem fazer reflexão filosófica por conta própria e se engajar profundamente com a literatura da área. É possível ler um trabalho filosófico como quem lê um trabalho de divulgação científica, por exemplo. Claro, é provável que ao ler um trabalho filosófico você acabe fazendo reflexão por conta própria, conforme acompanha e avalia a reflexão proposta pelo autor. E isso funciona assim porque a reflexão filosófica pode ser feita “da poltrona”, sem que você precise conduzir experimentos para avaliar se aquilo que você pensa ou que alguém alegou se sustenta. Filosofia é parecida com matemática nesse sentido: é muito mais difícil ler um trabalho de filosofia ou de matemática sem fazer filosofia ou matemática do que ler um trabalho de física ou biologia sem fazer física ou biologia, por exemplo.

Quando fiz essas colocações não tinha em mente a questão do comentador. Em todo caso, penso que ser comentador é abordar um trabalho filosófico de certa forma, com certo objetivo. Não vejo problema nessa atividade. Pelo contrário, penso que é importante. Penso que o que realmente pode ser um problema é a cultura, que ainda existe no Brasil, de que aos meros mortais que estudam filosofia hoje cabe somente ser comentador de algum gênio do passado. Como se ser filósofo fosse um tipo de excepcionalidade intelectual oferecida pelas mãos do destino para iluminados ocasionais. É uma cultura idiota e danosa.

AC – No seu entendimento, seria aceitável o senso comum de que a Filosofia (e talvez as Ciências Sociais e Humanas em geral) tenha certo desdém de grande parte da sociedade? Mais ainda, você acha que há um princípio “utilitarista” do mundo capitalista que tem influência direta nas produções filosóficas e seu respectivo interesse social?

R: Acho que é importante não romantizar a atividade filosófica. Talvez a filosofia não seja tão valiosa assim para a humanidade, talvez as pessoas não sejam irracionais por não valorizarem tanto a filosofia quanto valorizam algo que um entusiasta da filosofia poderia achar mais fútil ou mesquinho. Agora, também é importante reconhecer que existe desvalorização da filosofia, o que não é mera indiferença, e que frequentemente essa desvalorização ocorre por razões que não são desvinculadas de condições históricas e sociais. Um exemplo é ter o pensamento de que uma atividade intelectual não pode ter valor em si ou que só tem valor quando tem efeitos práticos imediatos, quando gera lucro e coisas do tipo. E o mundo capitalista, do jeito que funciona, torna-se um ambiente propício para esse tipo de pensamento. Faz esse tipo de pensamento parecer muito racional. Além disso, podemos perguntar: o valor que o trabalho intelectual filosófico tem no mercado (das democracias ocidentais contemporâneas) reflete o valor que ele deve ter? O mercado, tal como funciona hoje nessas democracias, pode refletir o valor que esse trabalho deve ter?

Creio que o defensor do capitalismo diria que se realmente há esse problema de o mercado não refletir o valor que o trabalho filosófico deve ter (e acho que ele reclamaria dessa conversa de “valor que algo deve ter”), isso não será de fato culpa do mercado, não será resolvido por qualquer ação que configure uma intervenção no mercado. Diria que essas intervenções seriam impermissíveis ou teriam efeitos ruins, “saldos negativos”. Acontece que isso é uma posição que depende de suposições filosóficas. Por exemplo: depende de uma visão sobre valores ou princípios morais e políticos que torne a defesa do mercado (ou do “livre mercado”) crucial. E essas são suposições filosóficas que estão longe de ser obviamente verdadeiras. Assim, conforme penso, o cenário que temos é um em que o capitalismo precisa de justificação filosófica substancial para poder ser aceito, mas ao mesmo tempo o capitalismo é tal que é propício para que se forme e se difunda o pensamento que faz com que essa justificação não pareça necessária ou importante. Nesse sentido o capitalismo é perigosamente enganador sobre si. Talvez esse cenário não seja próprio do capitalismo, exclusividade dele, mas nem por isso deixa de ser uma das coisas que tornam o capitalismo problemático.

AC – E, finalmente, para encerrar nossa entrevista: qual seria o recado, conselho ou sugestão para aqueles que têm interesse nas áreas de Filosofia e Ciências Humanas, mesmo sabendo da desvalorização profissional e social?

R: Meu conselho é: fujam. Brincadeira. Meu primeiro conselho é: aprendam inglês. Isso é crucial. Mesmo que você não tenha interesse na abordagem analítica, hoje é fundamental saber ler em inglês. Haverá literatura indispensável para sua pesquisa, e você pode apostar que o melhor ou único jeito de tomar conhecimento dela será sabendo ler em inglês.

Meu segundo conselho é um que já foi dado pelo Russell e que carrego comigo: não acredite que seu trabalho é terrivelmente importante, que sua dissertação ou tese terão que ser contribuições definitivas para a área. Ao mesmo tempo, não seja cínico e separe a filosofia das paixões que lhe movem, das suas preocupações mais profundas. Não encare a filosofia (ou sua pesquisa de modo geral) como o centro de tudo na sua vida, mas também não encare ela como um mero jogo intelectual. É um equilíbrio delicado, mas acho que é necessário buscar esse equilíbrio para que consigamos fazer o melhor que podemos.

Agradecemos ao filósofo Gregory Gaboardi pela gentil entrevista e disposição para esta plataforma de crítica e reflexão!


Wesley Sousa

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