Por György Lukács
1 de Novembro de 1919
Tradução: Julio Davila, do texto em
inglês existente em
Artigo extraído
do site Marxists.org
O objetivo final do
comunismo é a construção de uma sociedade na qual a liberdade da moral assumirá
o papel da constrição legal na regulação do comportamento. Tal sociedade
necessariamente pressupõe, como todo marxista sabe, o fim das divisões de
classe. Porque, independentemente de acharmos que a natureza humana em
geral permite ou não uma sociedade baseada em um código moral (e, na minha
opinião, a questão não pode ser colocada nesses termos) – o poder da moralidade
não pode ser efetivo, mesmo que acreditemos nessa possibilidade, enquanto
existirem classes. Somente um modo de regulação é possível na sociedade: a
existência de dois modos, um que contradiga o outro ou simplesmente se derive
dele, só pode levar a um estado de completa anarquia. Se, contudo, a sociedade
é dividida em diversas classes, ou se – colocando de outro modo – os interesses
dos grupos humanos não sejam os mesmos, é inevitável que a regulação do
comportamento humano vai contrariar os interesses do grupo decisivo, ou até
mesmo o da maioria das pessoas. Mas seres humanos não podem ser induzidos a
agir voluntariamente contra seus próprios interesses, eles só podem ser
forçados a tal – seja por constrição física ou espiritual. Portanto, enquanto
existirem diferentes classes, é evidente que a regulação social será
determinada pela lei, e não pela moral.
Mas tal função da lei não
culmina necessariamente com a imposição pelas classes opressoras de um modo de
comportamento às classes oprimidas. Os interesses da classe opressora devem ser
aplicados até a elas mesmas. A segunda razão para a necessidade da lei, o
conflito de interesses individuais e de classe, não é exclusivamente uma
consequência da divisão de classes. É verdade, no entanto, que esse conflito é
mais agudo no capitalismo. Além disso, as próprias condições de existência de
uma sociedade capitalista – a anarquia e a constante revolução na produção, a
produção visando lucro e etc – impossibilitam a união dos interesses de um
indivíduo e sua classe. Esses interesses obviamente coincidem quando os
capitalistas são conformados por uma outra classe (os oprimidos ou outros
opressores, como classes agrárias feudais ou capitalistas de outros países) –
ou seja, quando a classe é obrigada a adotar uma posição que garanta a
possibilidade e direção da opressão – mas, à exceção desse caso, a união desses
interesses é impossível uma vez que a opressão está instaurada, quando está
colocada a a questão: quem deve se tornar o opressor e, enquanto tal, quem ele
deve oprimir, e para que? A Solidariedade de classe entre capitalistas só é
possível quando eles olham para fora, não quando estão preocupados consigo
mesmos. É por isso que, dentro dessas classes, a moralidade jamais poderia ter
substituído o poder da lei.
A situação de
classe do proletariado, tanto na sociedade capitalista e na sociedade que
surgirá com a derrota do capitalismo, é exatamente oposta. Apropriadamente
concebido, o interesse de um indivíduo do proletariado não pode ser realizado
em seu potencial abstrato, mas somente na própria realidade através da vitória
de seus interesses de classe. A solidariedade propagada pelos maiores
pensadores burgueses como um ideal social inatingível é na verdade uma presença
viva nos interesses de classe do proletariado. A missão histórica mundial do
proletariado se manifesta precisamente no fato que a realização dos interesses
de sua própria classe leva à salvação social da humanidade.
Essa salvação,
entretanto, não vai simplesmente emergir como o resultado de um processo
meramente automático determinado pelas leis naturais. A vitória da ideia sobre
a vontade egoística de indivíduos está obviamente claramente implícita na
natureza da dominação de classe presente na ditadura do proletariado; é
possível que o objetivo imediato do proletariado seja algo como uma hegemonia
de classe. Independentemente, a consistente implementação dessa hegemonia vai
destruir as diferenças de classe e gerar uma sociedade sem classes. Para que a
hegemonia torne-se realmente efetiva, ela só poderá liquidar as diferenças
sociais e econômicas das classes – em última análise – forçando todas as
pessoas à democracia do proletariado que é apenas a forma interior da
manifestação da ditadura do proletariado no interior do cenário da classe. A
consistente implementação da ditadura do proletariado só pode culminar em uma
democracia do proletariado absorvendo a ditadura e tornando-a supérflua. Com o
fim das classes, a ditadura não pode mais ser exercida contra ninguém.
O Estado, a
principal causa do exercício da constrição legal, a causa cuja remoção Engels
tinha em mente quando disse que “o estado murcha até sumir”, deixa então de
existir. A questão é, porém: qual é o padrão de desenvolvimento dentro do
proletariado? É aqui que a questão da função social efetiva da moralidade vira
problemática. Ela certamente desempenhou um papel importante nas ideologias da
antiga sociedade, mas nunca fez uma contribuição substancial ao desenvolvimento
da realidade social propriamente dita. E ela nem poderá, porque as
pré-condições sociais para o desenvolvimento da moralidade de classe e sua
validade dentro de uma classe – a supracitada orientação coincidente dos
interesses do indivíduo e sua classe – estão presentes somente no proletariado.
É apenas para o proletariado que a solidariedade, a subordinação dos interesses
pessoais pelos do coletivo, coincidem com os interesses, retamente concebidos,
dos indivíduos. Essa possibilidade social agora existe, na medida que todos os
indivíduos que pertencem ao proletariado possam se subordinar aos interesses de
sua classe, sem o detrimento de seu interesse particular. Tal liberdade de
escolha não era possível na burguesia, onde a ordem só podia ser estabelecida
pela lei. Para a burguesia, moralidade só poderia significar – assumindo que
ela exercia qualquer controle real sobre o comportamento – um princípio que ia
além das divisões de classe e da existência de uma classe: em outras palavras,
moralidade individual. Esse tipo de moralidade infelizmente implica um nível de
cultura humana que pode se tornar um fator geral, efetivo para toda sociedade,
apenas em uma época muito distante.
A distância entre
o comportamento baseado meramente em interesses egoístas e a moralidade pura é
eclipsado pela moralidade de classe, que levará a humanidade a uma nova era
espiritual, a, como diz Engels, “o reino da liberdade”. Mas repito: esse
desenvolvimento não será uma necessidade automática de forças sociais cegas –
ele deve ser a consequência de uma decisão livre da classe trabalhadora.
Porque, depois da vitória do proletariado, a constrição será necessária dentro
da classe trabalhadora somente na medida em que indivíduos sejam incapazes ou
indispostos a agirem de acordo com seus próprios interesses. Se a constrição, a
organização da violência física e espiritual, prevaleceu na sociedade capitalista
até dentro da classe dominante, é porque ela era necessária, porque os
indivíduos que comprometeram uma classe o fizeram por causa da exorbitante
demanda de seus interesses particulares (ganância por lucro) à dissolução da
sociedade capitalista. Em contraste, os interesses individuais de cada
proletário vão, desde que ele os identifique corretamente, fortalecer a
sociedade. O que importa é o correto entendimento desses interesses, a obtenção
da força moral que permite a subordinação de inclinações, emoções e caprichos
momentâneos por interesses reais.
O ponto em que os
interesses de classe e de indivíduos converge é caracterizado pela produção
aumentada, uma melhora na produtividade e o correspondente fortalecimento da
disciplina do trabalho. Sem essas coisas o proletariado não pode sobreviver,
sem elas a hegemonia de classe do proletariado desaparece – sem elas (mesmo se
descartarmos as consequências desastrosas presentes em tal deslocamento da
classe para todos proletários), ninguém pode se desenvolver inteiramente, nem
mesmo como indivíduo. Está claro que esses aspectos do poder do proletariado
que são mais opressivos e cujas consequências imediatas são mais facilmente
percebidas – a escassez de bens e preços altos, por exemplo – são um resultado
direto do afrouxamento da disciplina no trabalho e o declínio da produtividade.
Para remediar esse estado e, concomitantemente, elevar o nível de indivíduos,
as causas desses fenômenos devem ser removidas.
Existem dois
remédios possíveis. Ou os indivíduos que constituem o proletariado percebem que
eles somente podem se ajudar voluntariamente se dedicando ao fortalecimento da
disciplina do trabalho e dessa forma gerando maior produtividade, ou, caso os
indivíduos sejam incapazes de fazer isso, eles criam instituições que cumpram
essa função. Nesse último caso, eles criam para si mesmo a ordem legal que
compele os indivíduos do proletariado a agir de acordo com os interesses da
classe. O proletariado então exerce a ditadura contra si mesmo. Quando seus
interesses não são corretamente apreendidos e voluntariamente aplicados, tais
medidas são necessárias para que a classe sobreviva. Elas também, no entanto, –
e não devemos disfarçar o problema – envolvem grande perigo para o futuro. Se,
de um lado, o proletariado cria sua própria disciplina; se o sistema de
trabalho do proletariado for construído com uma base moral; então a constrição
externa da lei vai automaticamente acabar com a abolição das classes. Em outras
palavras, o estado vai murchar até sumir. Esse processo de liquidação da
estrutura de classes vai gerar o começo da história verdadeira humana – como
Marx profetizou. Se, por outro lado, o proletariado assumir outra direção, ele
será obrigado a criar para si uma ordem legal que não pode ser automaticamente
abolida pelo progresso histórico. Nesse caso uma tendência poderia evoluir, o
que ameaçaria tanto a fisionomia quando a factibilidade do último objetivo.
Porque se o proletariado é compelido a criar uma ordem legal dessa forma, a
própria ordem legal deve ser derrubada – e quem pode saber quais convulsões e
sofrimentos serão causados pela transição do reino da necessidade para o reino
da liberdade através de um caminho tão tortuoso?
A questão da
disciplina do trabalho então, não se relaciona apenas com a existência
econômica do proletariado: ela é também uma questão moral. O que mostra quão
certo estavam Marx e Engels quando afirmaram que a época da liberdade começa
com a tomada do poder pelo proletariado. O progresso não é mais regido por leis
de forças sociais efêmeras, mas pela decisão voluntária do proletariado. A
direção, cujo desenvolvimento social depende da autoconsciência, do caráter
moral e espiritual, do julgamento e altruísmo do proletariado.
A questão da
produção torna-se então, uma questão moral. A “pré-história do homem”, o poder
da economia sobre os homens, das instituições e constrições sobre a moral vão
chegar ao fim. Depende do proletariado se a verdadeira história do homem está
começando ou não, isto é, o poder da moral sobre as instituições e a economia.
É verdade, o desenvolvimento social criou a possibilidade em primeiro lugar,
mas agora o proletariado tem em suas mãos não apenas seu destino, mas o destino
da humanidade. O critério para a capacidade ou não do proletariado está, então,
dada. Até hoje o proletariado foi liderado por leis de desenvolvimento social;
daqui em diante, o papel da liderança é dele. Sua decisão vai determinar o rumo
da sociedade. Cada indivíduo no proletariado deve agora estar consciente de sua
responsabilidade. Ele deve sentir que é ele mesmo, seu trabalho diário, que vai
determinar quando a época verdadeiramente feliz e livre da humanidade começará.
É inaceitável que o proletariado, que, em condições muito mais precárias,
permaneceu fiel a sua missão mundial-histórica, abandone agora essa missão, no
exato momento em que ele está em posição para realizá-la plenamente.