O “retorno a Marx”? – a encruzilhada do marxismo




por Frederico Lambertucci - mestrando em Serviço Social pela UFAL.




Para quem tiver paciência, o texto não é mais do que um esboço sobre o retorno a Marx e purismo. A primeira questão, por mais óbvia que pareça, é que nem Lênin, nem Rosa, nem Gramsci e nem mesmo Engels, são Marx. Essa afirmação, por mais evidente que pareça, soa como absurda para alguns.

Mas se nós recuperamos o processo histórico do desenvolvimento do marxismo, vemos como não apenas os clássicos do marxismo não tinham acesso a materiais hoje considerados fundamentais para compreender a obra de Marx, mas também que o acesso as obras impediam uma formulação clara do desenvolvimento da evolução do pensamento de Marx.

Que fique claro, isto não significa uma redução da importância de pensadores como um Lênin, ou uma Rosa Luxemburgo. É tão somente uma questão que precisa ficar clara aos estudiosos de ambos, não apenas o processo histórico subjacente de suas formulações é necessário para compreender o que produziram, quanto também as ausências referentes a teoria marxiana.

Isso nos leva a segunda questão: de todas as formulações teóricas dos expoentes do marxismo do século XX, algumas se tornaram relativamente autônomas, o exemplo maior é o marxismo-leninismo, a linha teórica reivindica um lugar específico no conjunto do marxismo.

Contudo, é bom lembrar que o próprio marxismo-leninismo não foi configurado pelo próprio Lênin, ainda que nos anos 30 na URSS a figura de Lênin tivesse sido canonizada como componente irredutível da teoria de Marx. Assim, o fundamental do Marxismo já não era Marx e Engels, mas ambos com a adesão da obra de Lênin.

Todavia, essa mobilização da canonização de Lênin foi realizada para fundamentar o discurso oficial da URSS nesses anos, da construção do socialismo em um só país, ainda que paradoxalmente a própria obra de Lênin tenha sido pouco investigada nessa época, justo com a própria obra de Marx. Os últimos esforços do Riazanov são de início dos anos 30, lembremos que ele “desaparece” em meados dos anos 30 mesmo e o primeiro empreendimento editorial de publicar as obras completas de Marx desaparece junto com Riazanov.

Assim, a própria tradição do marxismo-leninismo nasce já no interior de uma subsunção necessária, a teoria subordinada a necessidades políticas imediatas, junto a isso a necessária transformação de Lênin em um fundador do marxismo. Que fique claro, eu não sou anti-leninista, penso que a obra de Lênin é absolutamente fecunda para pensar o mundo hoje, assim como Marx é absolutamente necessário, mesmo que a obra de ambos seja insuficiente.

A questão que se coloca em pauta é que as formas que o marxismo se desenvolveu no século XX foram marcadas por processos que 1) não permitiram aos autores das distintas linhas um contato com a evolução intelectual de Marx; 2) foram marcadas por necessidades políticas imediatas que terminaram com em alguns casos, a subordinação da teoria a essas necessidades; e 3) o marxismo foi tomado quase sempre como uma gnosiologia, conformada no que se convencionou chamar de materialismo histórico e dialético com quantas leis gerais a criatividade permitisse.

O retorno a Marx que Lukács propôs se devia justamente a esses três problemas, e lembremos que Lukács era um leninista e entusiasta da obra de Lênin, não por acaso, na Ontologia a teoria do reflexo é tantas vezes advogada a partir da obra do próprio russo. Entretanto, cabe ressaltar que o retorno advogado por Lukács se deve justamente os descaminhos que a própria teoria marxista encaminhou durante o século XX. Uma tendência gnosiologizante que pensava ter de completar Marx com outros autores de diferentes tradições.

Talvez nesse específico, seja bom lembrar das polêmicas travadas na década de 20 e 30 sobre a arte e estética no marxismo, em que se vinculava a estética kantiana a obra de Marx. Esse debate travado por Lukács, Brecht e outros intelectuais a época mostra como uma incompreensão do estatuto da obra de Marx marcava a interpretação.

A obra de Marx como uma ontologia é uma descoberta recente, e apenas o retorno a textualidade de Marx e aos seus giros, descobertas, evoluções e desdobramentos de início de 1840 até quase o fim da sua vida em 83 consegue demonstrar exatamente os nexos de um sistema teórico totalizante, ainda que nunca se feche em si mesmo.

Um sistema filosófico da estatura do de Marx (e aí a importância de seu estatuto ontológico), só pode ser compreendido adequadamente a partir de sua integralidade, isto é, dos fundamentos colocados pelo próprio Marx da relação mais geral entre sujeito e objeto com a prioridade ontológica do segundo e da descoberta fundamental do caráter de totalidade do ser em geral e do ser social em específico. Do contrário o que existe é um empobrecimento de Marx a um sociológico, ou economista, ou cientista político a depender da vontade subjetiva do leitor.

Tornar Marx em um formulador de um novo método é uma adequação forçada da obra a necessidades da divisão operada pela sociedade burguesa em ciências humanas autônomas e independentes. Em suma, é igualar Marx à Weber e Durkheim. 
Nessa versão da obra de Marx se precisa de fato de um desenvolvimento externo para completar ausências, pode-se pegar a estética kantiana e até se chegar a colocar “filósofos da vida” como Simmel ao lado de Marx para falar de cotidiano.

Entretanto, é evidente que todo autor marxista do século XX precisa ser avaliado conforme sua própria obra, e neste texto não se trata de realizar uma crítica da obra de um por um dos autores (que são múltiplos com influências variadas). Mas sim, demonstrar a vitalidade e necessidade da proposta de Lukács.

O “retorno a Marx” não significa considerar Marx a palavra santa contra a qual tudo e todos podem ser considerados hereges. Trata-se antes de compreender a obra e o desenvolvimento intelectual de Marx em sua integralidade. O seu sistema categorial em seus nexos e articulações internas e sua validade que precisam ser compreendidos antes de qualquer investida de revisão e crítica da própria obra de Marx e de outros marxistas.

Tudo o que parte do marxismo sem ter o próprio Marx como base fundamental termina sempre em aventura intelectualóide arrastada de um lado a outro pelo curso dos acontecimentos sem conseguir enxergar qualquer linha de desenvolvimento racional do processo histórico. Possuem sempre a tendência de se condensarem em duas formas distintas que ás vezes se sobrepõe, dão luz ou ao militantismo aventuresco, ou ao dogmatismo débil, o fundamento das seitas (Babeuf renascido).

O militantismo aventuresco é a supremacia da vontade junto ao utopismo, quase sempre o militante crê na revolução porque o cosmos quase se apresenta como a lei natural do esforço, basta acumular forças e tarefas, militar todos os momentos possíveis que a revolução virá, uma espécie de recompensa sobrenatural pelo esforço empreendido.

Assim, esse dogmatismo débil se apresenta com frequência em quem inicia no marxismo por cartilha de organização. Fundamentalmente a teoria é rebaixada a linha política. As formas comuns se apresentam no maoísmo, hoxhaísmo e no próprio marxismo-leninismo (nesse há claras exceções), certa forma específica de revolução e de sujeito revolucionário predominam e toda a interpretação teórica se vincula a provar em última instância a veracidade acerca desse pressuposto. Daí o dogmatismo débil, o que fundamenta a revolução, o caso do Maoísmo é ímpar nesse particular, é um processo no qual setores mais oprimidos (e aqui sua determinação fundamental de classe revolucionária) lutam pela alteração de suas condições de vida.

No maoísmo, bem como no hoxhaísmo existe normalmente um claro obrerismo, que teoricamente conjuga o idealismo típico da identidade sujeito-objeto. Isto ocorre, porque como todo obrerismo, essas correntes enxergam no sujeito revolucionário a verdade teórica pela vivência empírica, no fundo a posição objetiva que os “oprimidos” (lembremos que para Marx a classe revolucionária só foi uma questão determinada por ser oprimido na Introdução a crítica da filosofia do direito de Hegel, onde sua concepção de classe ainda não está totalmente formada e ele descobre o proletariado como sujeito) ocupam, determina a identidade com sua subjetividade revolucionária.

Todavia, o retorno a Marx também significa que o entendimento do curso das revoluções do século XX, os desdobramentos histórico-mundiais da classe operária, suas formas organizativas e suas possibilidades futuras tem que ser avaliadas conforme os pressupostos ontológicos descobertos pelo próprio Marx e expostos por ele. A prioridade ontológica dos processos do complexo da economia, o desenvolvimento total como um desenvolvimento de uma totalidade articulada e com mediações cada vez mais intensas entre as determinações.

Esse entendimento e seu desdobramento é recente no marxismo, apesar de Lukács falar em totalidade em 1923; Kosik ter dado bons passos em direção a uma interpretação ontológica da obra de Marx na década de 50, esse desenvolvimento fundamental do pensamento de Marx só reaparece com Lukács na sua “Ontologia” e com Mészáros em “A teoria da alienação em Marx”.

Isso não significa desprezar autores tão importantes como um Lefebvre, um Gramsci ou um Mariátegui. A questão é a régua que pode medir o pensamento de autores tão distintos é o próprio Marx e os fundamentos postos por ele. A verdade como processo factual só é compreensível a partir da própria impostação ontológico-materialista colocada por Marx.

Compreender que a verossimilhança de uma teoria só pode ser constatada em relação ao desenvolvimento do próprio processo do real compreendendo as próprias categorias fundamentais do real. E é Marx quem nos dá essas categorias fundamentais do desenvolvimento dos processos históricos e da solução de problemas ontológicos intrincados como a relação sujeito e objeto, a relação entre múltiplo e uno, a relação entre essência e fenômeno, continuidade e ruptura e etc. Daí essa apreensão da obra marxiana e do desenvolvimento do pensamento de Marx ser tão importante para medir e avaliar o marxismo posterior, realizar sua crítica e a crítica do próprio processo histórico.

Não existe nenhum purismo aqui, simplesmente porque não se trata de à moda de um Stálin, transformar formas particulares de revolução em formas gerais de processos, para esse exemplo, basta lembrar das políticas dos PC’s de aliança com as burguesias nacionais para desenvolver as forças produtivas a ponto de realizar a revolução.

Não há a tentativa de aplicação de fórmulas extraídas das análises de Marx de processos a quente a história em geral, o que existe é a constatação de certas categorias ontológicas fundamentais que não podem se transformar em outras pela mera vontade subjetiva de sujeitos. 
Assim, a constatação marxiana da natureza do Estado é sim um dado fundamental para compreender o desenvolvimento da sociedade burguesa e os problemas das formas de transição ao comunismo. A realidade não apresentou nada que pudesse derrubar a teoria de Marx sobre o Estado e a política.

A manutenção da concepção marxiana do Estado enquanto órgão de dominação per se nada tem, portanto, de purista, a sua revisão é antes desnecessária, pois o processo histórico provou e continua provando sua “corretude”. Exercícios de transfiguração da categoria ou acusações de purismo contra quem mantêm seu conteúdo só servem para falsificar o problema da transição, quase sempre verdadeira atividade acrobática de desviar da autocrítica necessária.

É claro, portanto, que o retorno a Marx não pode ser uma mera volição apenas de necessidades políticas imediatas, não se trata de instrumentalizar Marx para defender uma posição já pressuposta. A ideia de voltar a Marx para defender a URSS só pode resultar em uma miséria teórica, ainda que ideologicamente possa manter sua relevância por algum tempo. Justamente porque qualquer tentativa de instrumentalizar Marx para um objetivo parcial é negar justamente o seu fulcro teórico, a ideia de que o fundamento da compreensão da sociedade burguesa passa pela perspectiva do proletariado e a crítica radical de toda a alienação existente, isso significa que a crítica só pode ser da totalidade do existente na direção da superação do próprio proletariado como classe.

Nesse preciso sentido, não pode existir nação proletária, ou Estado proletário, a revolução comunista tem como fundamento a abolição daqueles próprios fundamentos em que se assentam a existência do proletariado como uma classe. E essas descobertas são fundamentais em Marx e na sua perspectiva da revolução.

A acusação feita contra os ditos puristas se dá justamente porque retornar a Marx sem instrumentaliza-lo demonstra os que pretendem realizar defesas de processos sem a crítica necessária, mesmo quando é preciso até caracterizar que na URSS não existiu socialismo, por exemplo, estão na realidade contra o próprio Marx.

É evidente que Marx pode estar errado, mas essa posição não se trata disso, trata-se de formar uma parede em defesa de experiências em que a crítica radical apareça como “autofobia” e anticomunismo. A posição defende na realidade uma acepção de comunismo que conjuga diferentes experiências históricas. Mas a finalidade é uma, as críticas segundo as quais os processos revolucionários do século XX redundaram em fracassos na construção do socialismo seriam apenas sintomas de autofobia.

Cito aqui o artigo de Jones Manoel, segundo ele:

“Posturas como defender um mítico “retorno a Marx” como se todos os líderes, militantes, partidos e movimentos no século passado tivessem traído a palavra sagrada revelada nas escrituras, não passa de uma fuga covarde da realidade e uma expressão da autofobia que redunda no anticomunismo.” (Autocrítica ou anticomunismo? Publicado na Revista Opera)

Parece-nos óbvio depois do exposto que Jones não apenas não entendeu o que é o “mítico retorno a Marx”, como ainda imputa algo absolutamente falso, a ideia segundo a qual voltar a Marx significa desvalidar todo o movimento comunista do século XX. 
Mas vai adiante: quando ele diz que o retorno a Marx não passa de uma fuga da realidade, ao fim e ao cabo ele invalida a própria obra marxiana de jogar luz sobre os processos históricos do século XX e XXI.

E o mais interessante é que intelectuais de diferentes matizes como Lukács, Althusser, Ponty e até o próprio Losurdo são jogados no campo do anticomunismo, já que todos eles diziam ser fundamental um retorno a Marx, ainda que com distintos propósitos. Contudo, todos concordavam que era Marx e o retorno a sua obra que capacitavam a análise do mundo atual, o dito renascimento do marxismo ocidental.

Vejamos rapidamente qual a concepção de Jones de autocrítica:

“A verdadeira autocrítica pressupõe, portanto, um balanço crítico e científico sobre o nosso passado; combatendo a ideologia dominante, inserindo os erros de nossa história em um quadro histórico-concreto e valorizando o nosso legado emancipatório. Sem o movimento comunista, dentre outras coisas, o mundo provavelmente ainda conheceria o nazismo e a escravidão racial aberta.”

A primeira questão é claramente uma confusão, realizar um balanço, uma autocrítica honesta dos processos é partir dos próprios pressupostos materialistas de Marx, apreendendo o real enquanto tal. Esse exercício não pode ser guiado pelo combate da ideologia dominante tão somente. Isto termina levando a uma situação na qual tudo o que a produção de intelectuais burgueses falarem é mentira e anticomunismo, então o oposto é verdade.

Não estou afirmando que não existem intelectuais produzindo falsificações históricas, obviamente existem e são maioria, a questão em tela é que a crítica dos processos não pode se guiar por nada além do processo histórico efetivo, e em partes até a historiografia burguesa pode ter algum valor quando produto de um intelectual compromissado com a verdade.

A segunda questão é que inserir os erros da nossa história em um quadro histórico-concreto, não basta, pois, a questão não pode ser uma análise pragmática do que deu certo e errado aqui e ali, mas compreender o sentido e a evolução global do movimento comunista e do trabalho enquanto agente estruturalmente fundante.

No fim Jones está postulando uma visão subjetivista dos processos. A própria ideia de “valorização do nosso legado emancipatório” parte de uma ideia de que os processos sociais onde houveram processos civilizatórios são resultados exclusivamente da luta de classes. A história demonstra que é só a análise efetiva desses processos que podem demonstrar onde existe de fato uma vitória de uma classe (e no caso da classe trabalhadora essa vitória sempre é parcial e efêmera) e onde o próprio processo condiz com uma necessidade inerente ao próprio capital.

Em suma, não pode haver espaço para autoglorificação no movimento comunista e o que existe se se adequar a ideia segundo a qual toda e qualquer concessão aos trabalhadores e oprimidos for uma vitória do trabalho é a miséria da teoria e sua mistificação, a subordinação da explicação dos processos reais às necessidades políticas imediatas. Por isso mesmo, Jones para defender e valorizar o legado emancipatório do movimento comunista não pode citar processos reais e efetivos, precisa antes se refugiar na especulação; “Sem o movimento comunista, dentre outras coisas, o mundo provavelmente ainda conheceria o nazismo e a escravidão racial aberta”.

Mesmo que o nazismo não pudesse ser uma forma eterna de desenvolvimento da acumulação capitalista, pois antes de tudo, era uma forma específica de desenvolvimento das relações burguesas em países unificados tardiamente e com burguesias débeis. E mesmo que a própria escravidão fosse pouco a pouco perdendo sua base de sustentação dentro do próprio mundo burguês, que com sua consequente universalização e mais-valia relativa, tinham um problema de realização de mercadorias cada vez maior, além da própria transferência de valor, forma necessária da reprodução do capital total. 


No fim, a acusação de autofobia termina sendo a autogloficação do movimento comunista como demiurgo de todo e qualquer processo civilizatório dentro da sociedade burguesa. Isso não significa desprezar as vezes que o movimento comunista jogou um peso nos processos históricos, mas sim ter uma clara visão de que esse peso é muito menor do que se costuma pensar. E isto não inviabiliza, nem nunca inviabilizou projetos de emancipação e de luta, entender que o movimento comunista não poderia triunfar sobre o capital em certos momentos da história, é entender a história de forma objetiva, os limites históricos de cada momento e as possibilidades de cada momento.

Esse purismo volta a Marx e se suja de história por todos os lados, se chafurda no chão histórico dos processos e os critica, só não tem a intenção de fingir que alguns processos foram o que não podiam ser apenas por necessidade subjetiva de autoafirmação da história.

O comunismo é uma possibilidade objetiva, real, existente. Então, dizer que a URSS não foi comunista nem socialista não torna o comunismo menos possível. Como disse Marx (O 18 Brumário de Luis Bonaparte), a revolução comunista só pode tirar sua filosofia do futuro.

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Wesley Sousa

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