Bacurau: o vilarejo contra-ataca

Por estes mortos, nossos mortos,
peço castigo.
Pablo Neruda – Os inimigos . Canto geral.

Bacurau (2019) 
(contém spoilers)



Por Fernando Pereira - graduando em Filosofia pela PUC-MG.


George Lucas numa entrevista comenta que fez uma homenagem aos vietcongues comunistas da guerra do Vietnam, que como sabemos os EUA perderam, Lucas queria fazer um filme antiguerra, restou a homenagem aos vietcongues n´O Retorno do jedi (1983) o cineasta nos diz, “Um grande império tecnológico perseguindo um pequeno grupo de combatentes da liberdade.” [1], fazendo referência ao filme e à guerra vietnamita, em outra oportunidade Lucas reitera “… o império americano – perdeu. Aquele foi o ponto principal.” [2] Essas homenagens acabam um pouco perdidas no meio do show que é o blockbuster Star Wars, entre os alienígenas, sabres de luz e todo atrativo do Sci-fi. 

Bacurau (2019) é nesse estilo, uma homenagem a um pequeno grupo numa pequena cidade em busca da liberdade, enfrentando um império tecnológico, um invasor, que não conhece a cultura a ser invadida, “são selvagens” um dos invasores diz (paradoxalmente falam isso diante do resultado da própria violência que proporcionaram). O essencial para invadir e conquistar, saquear uma outra cultura é: ela precisa não existir, pois, se não há civilização ali, não há crime! E é isso que os invasores de Bacurau fazem, primeiro tiram-lhes do mapa, sua localização, segundo a comunicação, depois as estradas (o acesso, isso nos faz lembrar de tantas sanções que os EUA e UE fazem mundo afora), mais tarde a energia elétrica e assim estão esquecidos, os invasores “alienígenas” podem cometer as “atrocidades brancas”, segundos eles mesmos se autodenominam. São os civilizadores das terras afastadas. 




Reescrevendo a história


Uma técnica já conhecida por todos, que Tarantino usa, é reescrever a história, por exemplo acabar com Hitler de um modo muito mais heroico do que deixar ele suicidar em Bastardos Inglórios (2009), ou em Django Livre (2012) um escravo se tornando livre e matando brancos, ou em seu último filme Era uma Vez em… Hollywood (2019), matando os assassinos de Sharon Tate (1943-1969), todos com muito sangue que é sua marca. Embora reescrever a história oficial causa uma certa recusa daqueles ali representados [3]. Muito mais antigo nesse sentido vemos no longa If… (1968), o final é absurdo, ninguém poderia esperar que os alunos revolucionários encontrassem armas e matassem todos os professores conservadores, o final “certo” seria os alunos serem domados pela instituição escolar tradicional inglesa, crescerem, se tornarem adultos responsáveis, patriarcas e defensores de sua pátria, e é o que ocorre no mundo real ( um exemplo contrário ao If... podemos encontrar em Sociedade dos Poetas Mortos (1989) ), mas no filme isso é deixado de lado, por isso o título “Se…”. Bacurau também reescreve a história, num sertão “oeste de pernambuco daqui a alguns anos…”, sobre um futuro que desdobra dum passado, do banditismo que ocorreu no nordeste brasileiro. E sem sombra de dúvida, um pouco da América Latina e seu passado de revoluções e mais ainda contrarrevoluções.


Pensemos agora em Bacurau num final alternativo, todo o vilarejo é dizimado, os invasores vencem, o crime não ocorre, ele realmente some do mapa. De novo, não será isso que ocorreu no nosso continente? Pensemos num final alternativo para a nossa realidade, Brasil não sofre o golpe de 64, com isso impulsiona a história, Chile consegue fazer sua revolução, nada de Pinochet, e assim os demais países prosseguem seu percurso, não seria um absurdo como em If…? É isso que demarca entre a realidade e o sonho, entre o fato já consumado e a hipótese. Bacurau é a hipótese. Parasita (2019) também termina com um final hipotético, imaginado, Ki Woo encontra seu pai anos depois, consegue ficar rico e comprar uma mansão e retira seu pai da prisão-bunker em que se encontrava, esse final simplesmente não existe na realidade. Embora isso seja verdade, sabemos que o cinema não necessariamente quer te passar a realidade compactada e pronta, Zizek diz num de seus documentários: “O cinema é a mais perversa das artes. Ele não lhe dá o que você deseja – mas diz como desejar. Os filmes despertam nosso desejo, ao mesmo tempo em que o mantém a uma distância segura, domesticando-o e tornando-o palatável” [4], não à toa que chega na conclusão no filme Coringa (2019) que não o considera revolucionário, mas “… Assim, nós, os espectadores, somos convocados a preencher essa lacuna.” [5]

Parasita (2019)

Então Bacurau nos é confrontado, é um convite para reescrever a história, ao contrário dos filmes do Tarantino, Bacurau é dum mundo futuro. Daquilo que pode ser feito. Por isso a imagem fantasiosa de Carmelita, a matriarca de Bacurau sepultada no início do filme reaparece no final, ela é a representação dos ancestrais do vilarejo, numa visão benjaminiana de justiça da história; “o Paraíso é origem e passado ancestral (Urvergangenheit) da humanidade e, ao mesmo tempo, imagem utópica do futuro de sua redenção” [6], deve haver uma viagem ao passado para retomada de um futuro e isso só começa quando a justiça é feita em nome dos próprios antepassados oprimidos.

Dona Camerlita. 

Retomando o início do texto, George Lucas e sua homenagem, temos em Bacurau, Kleber Mendonça Filho, Juliano Dornelles fazendo uma homenagem aos oprimidos de nossos tempos, de nossos vilarejos que lutam contra o império, de nossa história que está ainda muito submersa e quer acordar, das carmelitas que desejam justiça. Bacurau é a nossa "ópera espacial do agreste". Mas fiquemos atentos, pois, como Michael um dos invasores que é preso pelos moradores de Bacurau diz; “Isso é só o começo!”




Notas: 

[1]https://nypost.com/2014/09/21/how-star-wars-was-secretly-george-lucas-protest-of-vietnam/ 




[4] O Guia Pervertido do Cinema (The Pervert's Guide to Cinema) - 2006 – Direção: Sophie Fiennes 


[6] Walter Benjamin: aviso de incêndio uma leitura das teses “Sobre o conceito de história” -Michael Löwy – p.94.

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