Capital e Estado diante do Coronavírus

  

Charge - LATUFF - 2011.



Por Milena Santos – doutoranda em Serviço Social pela UFAL.

26 de março de 2020

Extraído do site Coletivo Veredas

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Considerações sobre o vírus e a doença

Nos dias finais do ano de 2019, na China, deu-se início ao processo de disseminação de uma nova mutação do Coronavírus, denominado SARS-CoV-2. Antes já haviam sido identificados 6 espécies do vírus que causam infecções em humanos, sendo o primeiro na década de 1960.

Nos primeiros dias de 2020, a China anunciou para o mundo o perigo da rápida disseminação do contágio no novo Coronavírus; buscou isolar os habitantes da cidade a qual fora identificada o primeiro caso, Wuran, capital da província de Hubei; realizou várias medidas de contensão da disseminação, do que logo veio a se transformar numa Pandemia (reconhecida pela Organização Mundial da Saúde já em março de 2020).

A Síndrome Respiratória Aguda Grave 2 é a doença respiratória causada pelo novo Coronavírus, até dia 26 de março de 2020, já contaminou mais de 400 mil pessoas em 199 países, e já provocou a morte de mais de 22 mil, segundo a Organização Mundial da Saúde.

Pela Covid-19 (denominação da doença) ser uma doença de fácil contágio e rápida disseminação e ainda não ter tratamento ou cura, governos de diversos países decretaram distanciamento social para as pessoas ainda saudáveis, isolamento para os casos suspeitos e quarentena absoluta para aqueles diagnosticados com a doença. Escolas, igrejas, lojas (que não se vendas de produtos de primeira necessidade), fábricas, e etc, tiveram suas atividades suspensas, em vários países, inclusive aqui no Brasil, embora esta medida esteja sendo fortemente questionada pelo governo federal, gerando sérios atritos com os governos estaduais e municipais.

A pandemia, a crise estrutural do capital e o Estado

Pois bem, existe uma situação geral de medo e incertezas quanto à garantia da preservação da saúde de milhares de pessoas em todo o mundo; como também medo e incertezas quanto às questões econômicas, não só nos países centrais e periféricos, mas em escala global.

Com estabelecimentos comerciais fechados em diversas regiões do mundo, o consumo de mercadorias e a circulação do capital são fortemente impactados. A parcela da classe trabalhadora que vive do comércio e setores de serviços em geral (aqueles que trabalham durante o dia para comer a noite) fica sem renda diária para garantir suas necessidades imediatas. Com as fábricas e as industrias com suas atividades de produção paralisadas não é possível extrair excedente de trabalho e gerar mais-valia (a lucratividade capitalista). Ou seja, estagna o processo contínuo de expansão e acumulação do capital em escala acelerada. Processo o qual já estava demonstrando grandes sinais de dificuldade de continuação e permanência acelerada deste a década de 1970, quando tem-se início a crise estrutural do capital de acordo com István Mészáros.

Sobre este conceito de crise estrutural de Mészáros, podemos resumir da seguinte forma: a partir de finais dos anos 1960, o sistema do capital entrou num processo de maior dificuldade de expansão e acumulação contínua de riquezas, com maiores dificuldades de deslocar suas contradições. Esta crise se diferencia das chamadas crises cíclicas, ou por ele chamadas de crises não estrutural, por 4 fatores principais: diferentemente das demais crises, esta tem um caráter universal, pois perpassa todas as esferas produtivas, não fica restrita a algumas esferas; ela é global, atinge todos os países; não é temporária, tem uma escala de tempo extensa, contínua e permanente; e diferente de uma crise que se instala rapidamente, podendo gerar quebra de bolsas, como foi a crise de 1929, esta se desenvolve de forma rastejante, aos poucos atinge, esferas produtivas, economias dos países e não demonstra sinais de recuperação, sendo sistemática e estrutural.

Penso que para ter uma noção mínima da gravidade do processo do qual estamos vivenciamos, devemos compreender minimamente as relações sociais que nos cerca e a base pela qual se sustenta.

O sistema do capital tem como pilar principal a forma mais eficiente de extração de trabalho excedente criada pelo homem, o qual permite um domínio absoluto de todas as esferas da vida social sob a égide da busca incessante pela riqueza materialmente produzida. É um sistema metabólico social em que a produção de riqueza se sobrepõe a riqueza de produção. O qual enaltece a geração de lucratividade, mesmo que isto provoque a desconsideração das necessidades humanas mais elementares.

O movimento de expansão e acumulação do capital de forma contínua e cada vez mais ampliada é o motor da atual sociabilidade. Isto só se dá na esfera da produção material, ou seja, na esfera econômica. Mas em nossa análise, não podemos desconsiderar as demais esferas da nossa sociedade. Devemos encará-las como uma totalidade. Esta totalidade é composta a interrelação das esferas da realidade, a economia, a política, a social e a ideológica-cultural.

É com a percepção da interação das esferas da totalidade que identificamos que o movimento do capital não se dá de maneira isolada na esfera econômica, ele abrange todas as outras esferas e determina cada uma delas. Para que a geração e acumulação capital seja possível é necessário um conjunto de fatores econômicos e extraeconômicos.

Na nossa concepção o espaço extraeconômico do capital por excelência é o Estado. Aqui eu destaco uma importante questão: não, definitivamente, não vamos considerar o Estado através daquela abordagem liberal de que o Estado prioriza o bem-comum e está para defender a vida, a liberdade e a igualdade! Nossa abordagem de Estado tem como sua visão negativa, da concepção marxiana, que percebe o Estado enquanto defensor dos interesses do capital. Consideramos que o Estado é um Estado de classe. Que é defensor dos interesses da classe mais poderosa, a economicamente dominante, e que por meio as instituições estatais exerce o poder e domínio sobre a classe trabalhadora, se tornando, assim, politicamente dominante.

Se observamos, historicamente, todas as sociedades compostas pela divisão entre classes sociais fundamentalmente antagônicas, sempre teve uma instituição política (Estado) que sobre o poder da classe dominante, exercia o auxílio necessário à manutenção do ordenamento econômico-social vigente.

Assim, chegamos aos tempos atuais, no qual vigora a predominância do domínio do capital. Não diferente das sociabilidades anteriores, esta precisa do suporte do poder do Estado para se manter e dar continuidade à sua lógica de exploração do trabalho excedente e geração de lucratividade.

Apesar de ser, historicamente, o sistema mais eficiente na aceleração e expansão das forças produtivas, até então, o sistema do capital não é e nunca poderá ser perfeito – como muitos acreditam que possa ser, se reformar e remediar seus defeitos –, na medida em que tem como objetivo principal o lucro e não a satisfação das necessidades humanas.

Para garantir dos seus interesses, o capital se utiliza do Estado de várias formas. Vamos destacar aqui aquelas que a maioria da população acreditar ser ações do Estado em prol dos trabalhadores: direitos e políticas sociais.

Vamos levar em consideração que o capital nada é sem o trabalho (embora o contrário não seja verdadeiro). O trabalho é que realmente produz a riqueza material. A riqueza material é socialmente produzida, ao passo em que é privadamente apropriada. Isto é o fundamento deste sistema. Então, o capital precisa do trabalho para gerar mais-valia (lucro). O trabalho, neste sistema, é como outra mercadoria qualquer, comprada pelo capital e vendida pelo seu proprietário, o trabalhador.

A lei da oferta e da procura é simples: quanto mais mercadorias existem disponíveis no mercado, mais barata ela se torna; quanto menos, mais cara. Assim, para os salários, da maneira geral se tornarem mais baratos, permitindo maior lucro para o capitalista, deve-se ter mais trabalho em oferta, ou seja, mais trabalhadores, aptos e disponíveis para vender sua força de trabalho.

Outro ponto a se considerar para o barateamento dos salários é a produção das mercadorias de primeira necessidade em larga escala, de forma a torná-las cada vez mais baratas e acessíveis a população em geral. Isto reduz o custo da reprodução da força de trabalho.

Mais uma consideração, e não menos importante, é que cada indivíduo com acesso a uma renda, torna-se para o mundo do capital um consumidor em potencial. A figura do trabalhador e do consumidor costuma ser fragmentada ou distanciada uma da outra, como se fosse indivíduos diferentes. O consumidor, para o capital, é aquele que irá possibilitar a “realização” da mercadoria. A monetarização do lucro. O que potencializa o consumo de mercadorias e a circulação do capital.

Tudo que é necessário para que estes fatores sejam possíveis de serem efetivados, além de interesse dos trabalhadores, é também interesse do capital. Então, porque seria má ideia possibilitar uma melhoria da “qualidade de vida” da população, se dessa forma o capital terá mais trabalhadores disponíveis, mais margem de lucratividade, mais taxa de exploração e mais consumidores?

Assim sendo, os problemas relacionados ao desenvolvimento do sistema do capital, que têm a mesma base de fundamentação e existência, não são percebidos como um só. São fragmentados em análise e minimizados por medidas (a maioria estatais) que não busca combater suas causas e apenas protelar os problemas que se mostram altamente explosivos.

Se a população tem condições de vida impróprias para a manutenção de sua saúde, o que pode provocar mortes de muitas pessoas, o Estado procura garantir uma condição mínima para manutenção da vida, por meio de uma política de saúde. Se as condições de moradia são precárias e insalubres, tem-se política habitacional. Se o trabalhador por algum motivo de doença, idade avançada ou acidente não pode mais trabalhar, mas precisa se manter enquanto consumidor, o Estado garante a política de previdência. Se toda uma sociedade precisa se submeter ideologicamente à lógica deste sistema econômico, como algo normal, ou se o sistema produtivo necessita empregar força de trabalho com conhecimento e habilidade especializada, mas não se disponibiliza a formar o trabalhador, por não poder perder tempo de produção, tem-se política de educação. Se existe um contingente populacional considerável que não pode ser absorvido pelo mercado de trabalho, não pode recorrer à criminalidade, para que se mantenha

a “paz social” e que não pode ter sua vida sucumbida por não ter acesso ao necessário para sua existência, cria-se política de assistência social e etc. Pense em cada grande problema relacionado à contradição fundamental entre capital e trabalho, no qual além de demanda do trabalho também é demanda do capital. Todos eles são acobertados minimamente por uma política social.

Isto permite garantia, para o grande capital, de escoamento de mercadorias, pois possibilita renda para que boa parte da população atue enquanto consumidora, como também faz do Estado um grande comprador para os setores monopolistas do mercado. Uma dimensão de consumo que não poderia se dar de outra forma. Isto permite também a repartição dos custos da reprodução do trabalho entre toda a sociedade, aumentando a margem de lucro do capital. Dentre vários outros pontos que não podemos desenvolver aqui, devido ao tempo.

Com isto concluímos que até as ações do Estado Moderno, enquanto uma instituição jurídico-política do sistema do capital, que aparentam garantir ou responder aos interesses da classe trabalhadora, na verdade respondem às necessidades do capital.

De volta à pandemia

Assim, mesmo com esta rápida explanação dos nossos pressupostos, voltemos a análise da nossa situação atual e o novo Coronavírus.

Mesmo antes do registro do primeiro caso da Covid-19, em dezembro de 2019, o mercado financeiro mundial estava dando fortes sinais de desestabilização e trazendo o prenúncio de uma grande crise econômica de caráter mundial. Com crescimento do desemprego nos países centrais; redução na produtividade das indústria (principalmente automobilística europeia, em 2017 e 2018); crescimento dos investimentos no mercado financeiro, em detrimento dos investimentos no setor produtivo, gerando um aumento do capital fictício; desde fevereiro, uma queda vertiginosa das principais bolsas de valores em todo o mundo (que veio a apresentar singela alta nesta semana, depois dos anúncios das medidas adotadas pelo governo americano); baixa no preço do petróleo, provocada por aumento do petróleo da Arábia Saudita disponível para venda exportação e etc.

Como já não bastasse todos estes fatores em ebulição no mercado global, o surto mundial da Covid-19 coincide com tudo isto. A doença e suas consequências para a economia estão sendo utilizados enquanto justificativas para a recessão atual. A paralização das industrias e dos estabelecimentos comerciais são apontados enquanto causas da atual crise. O que não é verdade, era um processo que estava prestes a estourar antes.

Os governos procuram desesperadamente atender as novas demandas do capital em crise, remodelando estratégias da ajuda. Se o slogan neoliberal é por “menos Estado”, são justamente os países dominados por este modelo político que recorrem a medidas do “mais Estado”. Antes um pouco encoberto, agora descaradamente, o Estado presta seu papel de salvaguarda do grande capital. Esta semana, foi anunciado pelo governo americano a ajuda de quase 2 trilhões de dólares para o restabelecimento da economia em meio à esta Pandemia. A maior “ajuda” financeira do Estado registrada em “tempos de crise”. Tudo na tentativa de acalmar os “ânimos do mercado” mundial e segurar a queda das bolsas de valores. E não sabemos que terá os efeitos esperados.

Nos países mais “avançados” também foram anunciadas medidas de manutenção da renda dos trabalhadores e outras formas de assistência. Não pela “benevolência” do Estado ou da garantia dos direitos humanos, mas sim para não piorar a situação econômica com mais uma crise provocada pela falta de consumo.

A alternativa socialista

Para concluirmos, certos que fica muito ao que considerar ainda e que este debate não tem a intenção e nem pode se esgotar aqui, devemos esperar as piores consequências desta crise para classe trabalhadora. Além das mortes ocasionadas pela doença da Covid-19, as demais mortes por falta de assistência médica, num sistema de saúde em colapso, como também o aumento da morte pela fome; a tendência de aumento da desigualdade social, do desemprego, e da barbárie social. Para o capital, o evidente aprofundamento da sua crises estrutural; diminuição da taxa de lucratividade; uma crise financeira pior que a de 2008; e a aproximação cada vez maior aos limites do próprio sistema.

Então, devemos pensar claramente sobre uma alternativa a este sistema socioeconômico. Não que apenas trace estratégias no âmbito da política. A história comprova que as buscas de solução estritamente via política só resultaram no fortalecimento do sistema do capital e aprofundamento dos problemas sociais. Neste momento não devemos rodar no círculo já ultrapassado do debate entre “menos” ou “mais” Estado, entre neoliberalismo e “Estado de Bem-estar social”. Devemos buscar estratégias de superação deste sistema de forma a atingir sua raiz, modificar sua estrutura interna. A qual não se encontra na esfera do consumo ou da circulação, e sim na esfera da produção material. Uma mudança efetiva, que vise superar o capital, só pode acontecer se chegar a atingir a base material da produção da riqueza social.

Para tanto, os conceitos de comunismo, trabalho associado e emancipação humana precisam se amplamente divulgados e reconhecidos como possíveis.


Wesley Sousa

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