Publicado originalmente no site The Next Recession.
Data 18 de outubro de 2019.
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Em
2014, o economista francês Thomas Piketty publicou um conhecido livro, “O
Capital do Século XXI”. Repetindo o nome do livro de Marx (O Capital), a
implicação do título se trata de uma crítica atualizada do capitalismo no nosso
século. Piketty argumenta que a desigualdade de renda e riqueza no capitalismo
tem alcançado extremos não vistos desde o século 18 e a menos que alguma coisa
seja feita, a desigualdade continuará a subir.
O
livro teve um enorme impacto, não apenas entre economistas (particularmente na
América, menos na França), mas também entre o público em geral. Duas milhões de
copias foram vendidas desse monumental livro de 800 páginas cheios de
argumentos teóricos, dados empíricos e anedotas para explicitar a enorme
desigualdade de riquezas da moderna sociedade capitalista. O livro ganhou
duvidosa honra por ser muito comprado e ninguém ter lido, substituindo Stephen
Hawking no “Breve História do Tempo”. Eu suponho o “Capital” de Marx também
esteja nessa lista.
Muitas
críticas ao argumento de Piketty seguiram-se tanto do mainstream quanto da
heterodoxia. Piketty tem feito uma grande contribuição para os trabalhos
empíricos que ele e seus colegas franceses Daniel Zucman e Emmanuel Saez têm
feito nas estimativas nos níveis de desigualdade da economia capitalista. Antes
disso, ele foi o pai dos estudos sobre desigualdade de renda, o recentemente
falecido Anthony Atkinson (de quem o trabalho foi base da tese do meu PhD sobre
desigualdade de renda no séc. XIX na Grã-Bretanha).
Mas,
como argumentei em minha própria crítica contra Piketty, qual foi publicada revista
na “Materialismo Histórico” no momento, Piketty não estava seguindo Marx de
maneira alguma – na verdade, ele destruiu a teoria econômica de Marx que se
baseava na lei de valor e lucratividade. Para Piketty, a exploração do trabalho
pelo capital não foi a questão, mas a propriedade de riqueza (ou seja,
propriedade e ativos imobiliários), pelo qual ativada para aumentarem suas
parcelas das rendas totais na economia. Não foi preciso a substituição que o
modo de produção capitalista precisou, mas a redistribuição da total riqueza
acumulada pelos ricos.
A fama
de Piketty entre o mainstream
econômico desapareceu. Até 2015 na conferência anula da “Associação Americana
de Economia”, ele foi elogiado e criticado. Dentro de um ano, tudo foi
esquecido. Agora, seis anos depois, Piketty seguiu adiante com um novo livro,
“Capital e Ideologia”, no qual ainda é maior: com 1200 páginas. Com uma revisão
feita, maior do que “Guerra e Paz”. Considerando que seu primeiro livro proveu
de teoria e evidencias sobre desigualdade, esse livro procura explicar porque isso tem permitido acontecer na
primeira metade do séc. XX. E a partir disso, sua proposta era de algumas
políticas reversivas.
Piketty amplia o escopo de sua análise para o mundo inteiro
e apresenta um panorama histórico de como a propriedade de ativos (incluindo
pessoas) foi tratada e justificada em várias sociedades históricas, da China,
Japão e Índia, aos americanos governados pela Europa colônias e sociedades
feudais e capitalistas na Europa.
Sua premissa é que a desigualdade é uma escolha. É algo
pelo qual as sociedades optam, não um resultado inevitável da tecnologia e da
globalização. Enquanto Marx via as ideologias como um produto dos interesses de
classe, Piketty adota a visão idealista de que a história é uma batalha de
ideologias. As principais economias aumentaram as desigualdades porque as
elites dominantes forneceram justificativas falsas para a desigualdade. Toda sociedade
desigual, diz ele, cria uma ideologia para justificar a desigualdade. Todas
essas justificativas somam o que ele chama de “sacralização da propriedade”.
O trabalho dos economistas é expor esses argumentos falsos.
Tome bilionários. Como podemos justificar que a existência deles é necessária
para o bem comum? Ao contrário do que se costuma dizer, seu enriquecimento foi
obtido graças a bens coletivos, que são o conhecimento público, as
infraestruturas, os laboratórios de pesquisa (Sombras do trabalho de Mariana
Mazzucato aqui). A noção de que bilionários criam empregos e impulsionam o
crescimento é falsa. O crescimento da renda per capita foi de 2,2% ao ano nos
EUA entre 1950 e 1990. Mas quando o número de bilionários explodiu nas décadas
de 1990 e 2000 – passando de 100 em 1990 para cerca de 600 hoje - o crescimento
da renda per capita caiu para 1,1%.
Piketty diz que o tipo de capitalismo de mercado livre que
domina os EUA desde Ronald Reagan precisa ser reformado. “O reaganismo começou a justificar qualquer concentração de riqueza,
como se os bilionários fossem nossos salvadores”. Mas; “O reaganismo mostrou seus limites: o crescimento foi reduzido pela
metade, as desigualdades dobraram. É hora de romper com esta fase da
sacralidade da propriedade”.
Ele não quer o que a maioria das pessoas considera “socialismo”,
mas quer “superar o capitalismo”. Longe de abolir a propriedade ou o capital,
ele quer espalhar suas recompensas para a metade inferior da população, que
mesmo em países ricos nunca possuía muito. Para fazer isso, ele diz, exige
redefinir a propriedade privada como “temporária” e limitada: você pode desfrutá-la durante toda a sua
vida, em quantidades moderadas.
Como isso tem que ser feito? Bem, Piketty pede um imposto de riqueza graduado de 5% para aqueles que valem 2 milhões de euros ou mais e até 90% para aqueles que valem mais de 2 bilhões de euros. “Os empresários terão milhões ou dezenas de milhões”, disse ele. “Mas, além disso, quem tem centenas de milhões ou bilhões terá que compartilhar com os acionistas, que podem ser funcionários. Então não, não haverá mais bilionários”. Com os recursos, um país como a França poderia conceder a cada cidadão um fundo fiduciário no valor de cerca de 120.000 euros aos 25 anos. Taxas de imposto muito altas, observa ele, não impediram o rápido crescimento no período 1950-80.
Piketty também pede “justiça educacional” – essencialmente, gastando a mesma quantia na educação de cada pessoa. E ele prefere dar aos trabalhadores uma voz importante sobre como as empresas são administradas, como na Alemanha e na Suécia. Os funcionários devem ter 50% dos assentos nos conselhos da empresa; que o poder de voto até dos maiores acionistas deve ser limitado a 10%; impostos sobre a propriedade muito mais altos, chegando a 90% para as maiores propriedades; uma alocação de capital fixo de € 120.000 (pouco mais de £ 107.000) a todos quando atingirem 25 anos; e um imposto individualizado sobre o carbono calculado por um cartão personalizado que acompanharia a contribuição de cada pessoa para o aquecimento global. Ele chama esse movimento além do capitalismo para “socialismo participativo e social-federalismo”.
Tudo isso cheira a retornar as economias capitalistas aos
dias da chamada ‘idade de ouro’ de
1948 a 1965, quando a desigualdade era muito menor, o crescimento econômico era
muito mais forte e as famílias da classe trabalhadora experimentavam pleno
emprego e podiam ser educadas a níveis que lhes permitiu fazer trabalhos mais
qualificados e com melhores salários. Havia uma “economia mista”, na qual
empresas capitalistas supostamente trabalhavam em parceria com sindicatos e o
governo. Isso foi um mito. Mas se você aceitar a premissa de Piketty de que
esse paraíso social-democrata existia e seu fim foi causado por uma mudança de
ideologia, é possível considerar que “ideias
redistributivas” poderiam obter apoio após a experiência da Grande Recessão
e o aumento da extrema desigualdade agora.
Piketty argumenta que os partidos social-democratas
abandonaram seus objetivos originais de igualdade e optaram pela meritocracia,
ou seja, o trabalho duro e a educação proporcionarão uma vida melhor para a
classe trabalhadora. E fizeram isso porque gradualmente haviam se transformado
de partidos das classes menos instruídas e mais pobres para se tornarem
partidos das classes média e alta e média educadas e ricas. Ele considera que,
em grande parte, os partidos tradicionalmente de esquerda mudaram porque sua
agenda social-democrata original foi tão bem-sucedida em abrir possibilidades
de educação e de alta renda para as pessoas, que nas décadas de 1950 e 1960
eram de origens modestas. Essas pessoas, as “vencedoras” da social-democracia, continuaram votando nos partidos
de esquerda, mas seus interesses e visão de mundo não eram mais os mesmos de
seus pais (menos instruídos). A estrutura social interna dos partidos mudou
assim - foi o produto de seu próprio sucesso político e social.
Será mesmo? O fracasso dos partidos social-democratas em representar os interesses dos trabalhadores remonta à década de 1970. Os partidos social-democratas apoiaram os objetivos nacionalistas das potências capitalistas em guerra na Primeira Guerra Mundial; na Grã-Bretanha, os líderes do Partido Trabalhista entraram em coalizão com os conservadores para impor austeridade e quebrar os sindicatos em 1929. Após a Segunda Guerra Mundial, a social-democracia mudou de Attlee para Wilson, de Callaghan para Kinnock e, finalmente, para Blair e Brown. Foi uma história semelhante na Europa continental: na França, de Mitterand a Hollande; na Alemanha, de Brandt a Schmidt.
Isso não aconteceu apenas porque a composição das partes do SD mudou de trabalhadores industriais para profissionais instruídos. A própria saúde das economias capitalistas do pós-guerra mudou. A breve “era de ouro” chegou ao fim, não por causa de uma mudança de ideologia (ou, como Joseph Stiglitz colocou, “uma mudança de regras”), mas porque a lucratividade do capital despencou na década de 1970 (seguindo a lei de rentabilidade de Marx) conforme descrito em Capital). Isso significava que políticos pró-capitalistas não podiam mais fazer concessões ao trabalho; de fato, os ganhos da idade de ouro tiveram que ser revertidos no período “neoliberal”. Assim, a ideologia mudou com a mudança na saúde econômica do capital. E os líderes social-democratas acompanharam essa mudança porque, em última análise, não acham possível substituir o capitalismo pelo socialismo. “Não há alternativa”, para usar a frase de Thatcher.
Pelo menos, Piketty acha que é possível ir além do capitalismo, ao contrário de Branco Milanovic que, em seu último livro, Capitalism Alone, que revi recentemente, concorda com Thatcher e acha que o capitalismo veio para ficar. “Você tem que ir além do capitalismo”, diz Piketty. Em uma entrevista, quando perguntado “Por que essa palavra ‘além’, por que não “Sair do capitalismo”? Piketty respondeu: “Eu digo ‘vá além’ para dizer sair, abolir, substituir. Mas o termo ‘exceder’ me permite dar um pouco mais de ênfase à necessidade de discutir o sistema alternativo. Após o fracasso soviético, não podemos mais prometer a abolição do capitalismo sem debater muito e precisamente o que colocaremos em prática a seguir. Estou tentando contribuir”.
Piketty considera que a “narrativa
própria e meritocrática” do período neoliberal está ficando frágil. “Há um entendimento crescente de que a
chamada meritocracia foi capturada pelos ricos, que colocam seus filhos nas
melhores universidades, compram partidos políticos e escondem seu dinheiro da
tributação”. Isso deixa uma lacuna no mercado político para ideias
redistributivistas.
Mas as respostas de Piketty são exatamente isso: uma redistribuição de riqueza e renda desiguais geradas pela propriedade privada do capital, não substituindo a propriedade e o controle dos meios de produção e a exploração do trabalho na produção por um sistema de propriedade e controle comum. Aparentemente, as grandes multinacionais continuarão, as grandes empresas farmacêuticas continuarão; as empresas de combustíveis fósseis continuarão; o complexo industrial militar continuará. Crises regulares e recorrentes na produção e acumulação capitalistas continuarão. Mas, como esses interesses adquiridos de capital ainda não estão gerando rentabilidade suficiente para permitir um aumento significativo na tributação de riqueza e renda extremas que eles controlam, que chances existem de que a atual ‘ideologia’ da ‘sacralização da propriedade’ possa ser superar, sem assumi-los?