Entrevista com Douglas Rodrigues Barros: “repensar a democracia como um significante vazio”

 

Douglas Rodrigues Barros é graduado em filosofia pela Universidade Federal de São Paulo UNIFESP (2012). É mestre em estética e filosofia da arte com a dissertação “O Jovem Lukács e Dostoiévski” (2015) e, atualmente é doutorando em ética e filosofia política pela mesma. Tem experiência em filosofia, com ênfase em ética, estética e filosofia política, investigando principalmente a filosofia alemã conjuntamente com o pensamento diaspórico de matriz africana e suas principais contribuições teóricas no campo da arte e da política. Atua nos seguintes temas: literatura, teatro, filosofia política, filosofia do direito e Estado. É escritor com dois romances publicados e autor do livro “Lugar de negro, lugar de branco? Esboço para uma crítica à metafisica racial”, lançado pela editora Hedra. 

AC – Sua dissertação concentra-se em Gyorgy Lukács e Fiódor Dostoiévski. Como é esta relação entre autores aparentemente tão díspares? Qual foi a tese central de sua análise?

Douglas Barros – Na verdade, embora os autores sejam dispares, as atenções do jovem Lukács se voltavam intensamente para a obra de Dostoiévski. Isso porque, segundo aquele Lukács, a obra de Dostoiévski estava marcada por uma espécie de novo Etos, quer dizer; ela era premonitória de uma nova época na experiência humana que se traduzia em novas escolhas e horizonte social que superavam inclusive o dever-ser (Sollen) burguês. Havia algo na literatura russa e, sobretudo, na de Dostoiévski, que para o jovem húngaro não se encaixava na forma do romance convencional, ou no romance europeu como um todo: uma força e uma narrativa poética que sendo radicalmente original apontava também para algo muito inédito nas relações humanas.

É claro, para que nós entendamos isso, precisamos entender o que Lukács entende por forma artística. Para ele a forma não se reduz ao contexto da qual emerge, ainda que parta dele, a ideia central é que a forma artística é uma das poucas atividades humanas capaz de dar significação e sentido a uma multiplicidade heterogênea e alienada da experiência do sujeito. Lukács está aqui sob a influência de Georg Simmel – importante sociólogo lido no círculo de Max Weber do qual Lukács era um dos participantes – e passam por suas construções críticas ideias como; segunda natureza e autonomização das formas sociais que tornaram o homem impotente. Isto significa em grande medida que a forma artística consegue imprimir sentido a uma heterogeneidade incoerente e formar uma totalidade de significações e sentidos que traduzem experiências nevrálgicas humanas e possibilitam a humanidade se enxergar.

Aqui entra Dostoiévski. Em suas investigações, Lukács prevê que algo muito diferente acontecia na Rússia da época. Estamos falando aqui do final da primeira década do século XX, indo para a segunda... e é na literatura russa que Lukács acaba por captar um novo espírito do tempo que formava uma tempestade revolucionária e em breve se abateria no céu czarista. Estamos aqui em 1915, ano no qual lança sua Teoria do romance – e praticamente abre a crítica literária no século XX, está tudo lá... todos os temas que os críticos do século XX iriam repensar – que na verdade era uma introdução à uma obra maior sobre Dostoiévski. Projeto este que fica inconcluso. Lukács vai para a guerra, conhece a revolução, tem sua candidatura como docente na universidade negada por ser assistemático e se torna um revolucionário.

Minha dissertação trata exatamente disso: o que Lukács via na obra de Dostoiévski e por qual motivo ela traduzia um novo tempo do mundo? Eu tentei responder isso, acho que cheguei em conclusões instigantes que poderiam nos fazer repensar a força das artes e sua capacidade de compreender aquilo que escapa aos nossos conceitos tão sólidos...

AC – Douglas, olhando sob a ótica histórica, vemos que alguns acontecimentos da década de 10 influíram drasticamente para uma transição do pensamento do jovem Lukács. Pergunto: até que ponto a Primeira Guerra Mundial, tanto quanto a Revolução Russa, pôde ter condicionado a direção a práxis de Lukács na sequência de sua vida intelectual?

DB – Uma pequena anedota: Lukács se reunia frequentemente na casa de Weber. (Essa história ou está num livro de Tertulian ou naquele de Löwy sobre os intelectuais revolucionários) e logo que estourou a guerra se encontrou com o pequeno círculo de Weber. Naquela noite, Weber apareceu fardado, falando sobre o espírito patriótico e besteiras sobre a grandeza dos exercícios militares. Algo que chocou profundamente Lukács. Disso, e de outros acontecimentos e testemunhos, é facilmente factível concluir que a guerra inter-imperialista para Lukács era só mais um novo sinal da barbárie europeia. Aliás para ele – já naquela segunda metade do século XX – nada de bom podia vir da Europa (adendo seja feito: Lukács não enxergava a Rússia como Europa).

Nesse sentido, podemos presumir que a Primeira Guerra teve forte impacto sobre seu espírito que já caminhava à época para uma crítica radical do mundo burguês. Os longos colóquios que teve, com outro grande revolucionário: Ernst Bloch, atentam para o fato de que sua crítica ao romantismo e encontro com a obra de Dostoiévski e a premonição sobre a revolução marcariam uma inflexão em seu pensamento. Aliás no livro Thomas Müntzer teólogo da revolução, Bloch atenta para o fato de Lukács ter previsto a transformação radical na Rússia enquanto os refinados intelectuais de seu círculo, a nata da cultura europeia, ignoravam solenemente o que acontecia. Em sua juventude Lukács foi marcado pela presença de Kierkegaard, no seu Alma e as formas – a meu ver, um dos mais belos ensaios do século XX – essa posição (e aqui vem algo polêmico) nunca saiu de seu horizonte.

É Tertulian em seu trabalho colossal que mostra as linhas de continuidade no pensamento de Lukács. Essa linha ética... de uma ética kierkegaardiana persiste em Lukács. Sei, que para muitos leitores brasileiros do húngaro, estou falando algo desconhecido quando digo: ética kierkegaardiana (risos). Acontece que Lukács apostava muito no gesto kierkegaardiano que, em síntese, é aquilo que rompe o círculo fechado das determinações do mundo burguês. Inclusive ele aposta na fidelidade a esse gesto. A ética para Kierkegaard – num belíssimo livrinho, radicalmente dialético, chamado O conceito de angústia – nada tem a ver com um apego ao registro do dado, quer dizer, não se determina nem se limita de maneira nenhuma pelo que na vida cotidiana é posto como possível. A ética é da ordem do ideal e da impossibilidade e, nesse sentido, a impossibilidade é somente aquilo que nega os limites do possível. Noutras palavras, a ética não dá a mínima para a realpolitik atuar sob tais limites é, inclusive para Kierkegaard, anti-ético.  

Pois bem, Lukács, a meu ver, nunca abandonou isso. E mesmo quando adentra a Revolução com os dois pés, e faz seus primeiros ensaios polêmicos, é fortemente marcado por essa noção esplendida de uma ética que não presta contas com uma realidade putrefata. É justamente um gesto kierkegaardiano que o faz ingressar no Partido Comunista deixando seus amigos atônitos diante daquela decisão... eu quase enxergo Max Weber engasgando com o chá ao saber da notícia. E vejam, a meu ver, a sua permanência no Partido, mesmo diante da degeneração stalinista, é marcada por essa fidelidade ao gesto. Aqui é uma hipótese só (risos). É claro que como tal é reducionista, mas creio que entender isso permite entender a sua tomada e permanência nessa posição.

Então, para responder sua questão: naturalmente a Guerra e a Revolução foram determinantes para o que aconteceria com Lukács e sua práxis-teórica que a partir daí se aprofundaria em Marx e Engels. Uma nota de rodapé: é engraçado perceber que só com a Revolução, Lukács definitivamente abraçou a filosofia marxiana. É sabido hoje que ele leu Marx, pelo menos desde 1905, e tinha algumas críticas inclusive que irão persegui-lo pelo resto da vida: a insuficiência marxista de pensar a política, o sujeito, o ser... 

AC – Você tem interesse e pesquisa sobre Estética. Em sua visão, o campo do marxismo pode ainda fazer boas contribuições à Estética? Qual sua visão sobre as premissas sobre a “arte engajada” ou “toda arte é política”?

DB – O marxismo é algo múltiplo variado e sua significação é aberta. Vou tomar uma delas: a crítica marxista. Marx é um ponto de inflexão na história do pensamento porque foi, segundo dizem, o primeiro a partir das relações sociais, da multiplicidade das determinações, a pensar sobre a concretude e como ela é quem influencia na nossa percepção de mundo.

Se pensarmos o debate em sua época podemos concluir que Marx já nos anos de juventude inicia sua transformação conceitual ao tentar pensar a subordinação do conhecimento como conhecimento do objeto. É claro que seu diálogo aqui é com Hegel e sua posição vai resultar em duas conclusões fundamentais: por um lado, o próprio método pressupõe uma ontologia, por outro, as próprias categorias científicas ficam circunscritas as transformações exercidas pelo trabalho.

É por aí que o jovem Marx vai conseguir um "salto" conceitual ao chegar à conclusão que na sociedade civil burguesa há a negação da implicação genérica do homem. Uma ferida narcísica já que a liberdade humana é pensada no interior das relações de produção da própria humanidade. Claro que essa conclusão é potente e se pensarmos; ela iluminou o século XX e iluminará o século XXI. No interior dessa proposta o marxismo segue sendo a bússola, o norte da crítica. Brincando um pouco, gosto de fazer uma paráfrase de Marx, um pastiche: a crítica da economia política segue sendo o pressuposto de toda crítica. Uma crítica que abandone os pressupostos de produção e reprodução social e sua redução na forma mercadoria e capital não é crítica...

 Tendo dito isso, acredito que é preciso pensar como se apossar do arsenal da crítica e é aqui que começa as vulgaridades que num determinado “marxismo” se comete. Em primeiro lugar, a noção da dialética não deve se tornar uma doxa; não há determinismo possível nem na história, nem no próprio ser humano, então, deve-se abandonar, em segundo lugar, a noção de um fechamento totalizador da própria relação social. Mas, não vou por aí. Acredito firmemente que se pensarmos o marxismo criticamente – em especial o que entendemos por marxismo: método? Prática política? Visão de mundo? – teremos infindáveis renascimentos dele enquanto crítica. Aliás como eu disse acima: sem prestar contas com Marx, uma crítica estética fica solta...

AC – Em seu doutorado, você trabalha a partir do pensamento de Hegel, em especial acerca do “automovimento do conceito de trabalho”. Brevemente, o que Marx conserva e supera da concepção hegeliana do “trabalho”?

DB – Eu gostaria muito de poder dar uma resposta a essa pergunta, mas é tão complexa a questão que não conseguirei. O que posso acrescentar é o seguinte: Marx lê Hegel como um filósofo, isto é, rindo da filosofia hegeliana – se pensarmos com Pascal – e por isso comete diversas violências contra o mestre. Tem uma ideia um pouco enviesada de que Hegel pensa o trabalho abstratamente, o que é uma injustiça porque se lermos Filosofia do direito, Hegel está falando explicitamente dos trabalhos existentes em sua época e mesmo quando fala de um trabalho do espirito isso não pode ser concebido como algo dentro da cabeça do filósofo. Hegel sofre o mesmo tipo de injustiça que sofreu Platão ao ser encaixotado na pecha de idealista sem mais.

É interessante que na maturidade, Marx, por exemplo n’Os Grundrisses, vai pensar o trabalho cada vez mais à luz das conclusões hegelianas e ali vemos um estreitamento entre os dois que é difícil captar n’O capital. Difícil, mas não impossível. Só negando a obra de Marx é possível negar as influências hegelianas para pensar o movimento do capital. Portanto, eu não consigo responder até onde um vai e o outro ultrapassa, o que posso dizer é que ambos pensam o trabalho como uma radical abertura para o processo do Espírito e, portanto, da violência que se chama História. 

AC – Camarada, ano passado tivemos um livro seu publicado: “Lugar de negro, lugar de branco? – Esboço para uma crítica à metafísica racial” (2019). Gostaria de saber, pois, se é possível pensar a questão racial deslocada da “luta de classes”, em outros termos: falar de racismo é necessariamente falar de “luta de classes”? Como lidar com essa questão em tempos que o capitalismo coopta lutas que outrora eram “subversivas” (como a luta pelo sufrágio universal)?

DB – Classe permanece sendo um conceito muito utilizado nas ciências humanas, mas um dos mais indefiníveis porque extremamente aberto. Há várias maneiras de pensá-lo; no interior de uma sociologia positivada; nas formas de adequação estatística em que se torna apenas um significante para traduzir o conjunto A, B e C que traduz quantitativamente os seus componentes; porém, talvez a mais aceita em termos críticos – isto é, em termos da crítica da economia política – seria aquela forma pela qual o conjunto da sociedade se divide em dois subconjuntos. Quer dizer, o centro nervoso do conjunto da sociedade capitalista é o conjunto classe dividido em dois subconjuntos: burguesia e proletariado.

Trago aqui a ideia de conjunto porque ela nos ajuda muito a pensar o interior das relações dominadas pela lógica do capital. Temos no interior da lógica do capital o subconjunto burguesia e o subconjunto proletariado. Pensemos então que a sociedade capitalista (A) é um conjunto que se regula pelo conjunto classe (B): e o conjunto classe por outros dois subconjuntos: Burguesia (B¹) e Proletariado (B²). No interior desses subconjuntos há uma lógica subjacente que permite sua definição enquanto tal. São as determinações desses dois subconjuntos que definem o conjunto classe e, portanto, o conjunto das relações capitalistas. É aqui que entra a transversalidade das questões de raça, de gênero ou de sexualidade porque todas estão pensadas no interior dessas relações conjuntistas que definem as classes em sua relação de reciprocidade no interior do sistema capitalista.

Desse modo, não há como pensar qualquer forma social alheia a essa lógica mesmo quando as relações parecem se excluir do seu regime de visibilidade. Classe (B) aparece assim como configuração da lógica do capital (A) logo (A»B).

 No interior do conjunto classe (B¹; B²) há suas determinações; raça (α) ou gênero (β) ou sexualidade (µ). É claro que nessa lógica há os lugares definidos no conjunto e os papeis cabíveis que a mantém. Então, por isso, fica evidente que é inseparável da noção de classe qualquer forma de negação a essa lógica. O que evidencia algo muito difícil de ser capturado; qualquer luta que não vise ultrapassar essa lógica, mas simplesmente fortalecer sua posição no interior dela, permanecerá a alimentando, pode-se trocar os espaços de determinação nos conjuntos sem alterar a lógica das relações de exclusão. De modo que a luta radical antirracista é aquela que visa implodir a lógica que estruturou as raças, ou seja, a própria determinação raça (α) funciona como uma determinação no conjunto classe que implica o capital.

Assim é inescapável a questão de raça ligada à classe porque a classe a enforma. Isso não significa que uma é mais importante que a outra senão que uma atravessa a outra, estão imbrincadas e na lógica do capital são indissociáveis. Qualquer pesquisa por mínima que seja irá demonstrar que o negro no mercado de trabalho atende por um lugar específico nas relações de produção e reprodução que geralmente tem a ver com posições subalternizadas, lutar por uma igualdade equânime é um passo no interior da luta de classes. Um passo insuficiente, porém, radicalmente necessário porque pode pôr em questão a própria lógica. De modo que uma esquerda que não enxergue tais questões como determinadas pela lógica da luta de classes é uma esquerda amorfa. Escapar dessa lógica significa ir à raiz e pôr em questão a própria lógica que enforma as classes e que é alimentada por essa luta. Ou seja, o fim do capital é o fim da luta de classes e, portanto, daquilo que a classe enformou como resultado de sua lógica.

AC – Douglas, sabemos que toda crise é, sobretudo, uma crise de ideias. Diante disso, pensa que o capitalismo já está dando mostras de seu esgotamento civilizatório? Nesse sentido, o marxismo e os ideais comunistas passa por uma “crise” rastejante também?

 DB – O esgotamento civilizatório do capital se deu nos anos 1970. Isto é, antes da gente nascer... Nós não vimos o período áureo do capitalismo em que o american dream se revelava com seus carros conversíveis, loiras e família nuclear burguesa. Quer dizer, nem vimos a ideologia do Welfare State ativa. Já somos frutos de uma época em que imperava uma espécie de horizonte de expectativas decrescentes, para citar Paulo Arantes. Então acredito que precisamos entender o que é esse tal processo civilizatório.

Eu, na verdade, prefiro substituir processo civilizatório por modernizante. Tudo que escutamos sobre o capitalismo do século XX, sobretudo no pós-Guerra, diz respeito aos investimentos massivos por parte do Estado na produção de empregos, educação e tecnologia. A corrida espacial, a competição sobre qual modelo econômico e de sociedade poderia ser o melhor, tudo isso civilizava o capital; o keynesianismo como uma tentativa de resposta à economia planificada da URSS mantinha uma perspectiva de socialização mínima do capital. A ideia de um Estado de bem-estar social docilizava as massas europeias na medida que ocultava a origem desse bem-estar produzido às custas das periferias do capitalismo. Tudo isso permanecerá até a cataclismática crise do petróleo que demonstrou que as taxas de lucros recrudesciam e o endividamento dos Estados se tornava insuportável.

Para ser sintético e um tanto grosseiro, resumo dizendo que aqui prefiro a leitura que Mészáros faz de uma crise estrutural que se abateu desde os anos 1970 tendo seu apogeu nos anos 1990 com a queda da antiga URSS, Kurz lançou um livro chamado O colapso da modernização nesse período. A crise estrutural forneceu uma espécie de capitalismo de crise acompanhada de uma crise permanente na qual ela própria se tornou forma de governo. O nome dessa crise é neoliberalismo. Sabemos da reestruturação produtiva, do processo de globalização de mercados e circulação de mercadoria; a tentativa de transnacionalização para responder a queda da taxa de lucro. Ela funciona, mas funciona na perspectiva de uma contínua expropriação e reacumulação primitiva baseada em guerras locais e disputas geopolíticas de influências por mercados. Com o aprofundamento da crise temos agora uma espécie de capitalismo escravista que criou dispositivos de subempregos, taxas horripilantes de desigualdades e pilhagem dos recursos sociais.

Tem algo nisso tudo que foi mais aprofundado com essa recente crise econômica que se desenvolve debaixo dos panos de nossa terrível pandemia. E aqui entra em xeque nossas ideias; o capitalismo se tornou uma força de abstração fictícia e quando potências capitalistas injetam 3 trilhões de dólares para salvar a economia e isso não tem impactos diretos na inflação é porque uma outra lógica teológica está se processando, ou melhor, sendo forçada a se processar. É fato que o capitalismo hoje se tornou uma força da fé. Há muito dinheiro rolando mundo afora. Isso tudo ainda é muito difícil de explicar criticamente, por exemplo, tem gente apostando na MMT.

Eu aposto mais na ideia de um dinheiro sem valor, que a qualquer momento vai revelar uma enorme crise. Apesar de tudo, a MMT não me parece uma aposta simplesmente ingênua, porém, por outro lado, não parece repousar em teorias econômicas firmes. Tudo pode se dissolver a qualquer hora, com o peso, é claro, de que a crise é só um impulso a mais. Vivemos num mundo de plutocratas que estão virando castas sociais intocáveis como o foram os antigos aristocratas.

Claro que tudo isso repõe os ideais comunistas na ordem do dia. Não há possibilidade de salvar a humanidade que não passe pelo socialismo hoje. O capitalismo se tornou uma força de destruição massiva do próprio planeta e essa crise sanitária mundial é só um de seus indícios. Por outro lado, é evidente um processo terrível de regressão teórica de alguns que se arrogam marxistas, principalmente, no Brasil. Devemos encarar as experiências revolucionárias do século XX, fazer um balanço crítico que não tenha medo de apontar seus fracassos e os limites de sua proposta. Hoje, no entanto, é mais comum vermos uma certa militância restrita quantitativamente, mas muito barulhenta que confunde o necessário balanço com a defesa acrítica dessas experiências. Olhados à meia distância, socialismo para essa turma significa uma espécie de Welfare State militarizado.

Apesar de ironicamente não me intitular marxista, não há crítica anticapitalista hoje capaz de responder os eventos históricos que não passe pelo marxismo. Nesse sentido, ele continua sendo o melhor arsenal disponível e segue sendo a filosofia insuperável de nossa época, para concordar com Sartre.

 AC – Para finalizar nossa entrevista, como brevemente avalia a atuação da esquerda revolucionária (o que restou dela) frente ao capitalismo contemporâneo? Faça também, se possível, alguma consideração geral sobre as atuações dos partidos comunistas.

DB – Contraditoriamente, acredito num renascimento da esquerda revolucionária. Esses dias mesmo estava otimista em ver tantas pessoas qualificadas usando as redes e ajudando a fornecer um caldo de cultura crítica. Há uma espécie de ida dos intelectuais para as praças digitais, com a crise espiritual que se abateu no Brasil fomos todos expulsos de uma certa posição de conforto – embora eu mesmo nunca estive numa posição de conforto. Lembro que fiz uma piada quando vi que Paulo Arantes estava gravando lives, nela eu dizia que o mundo devia estar acabando de fato. Veja só, não quero cometer injustiças, já que Arantes sempre se demonstrou um crítico engajado e é um dos meus mestres! Só quero dizer que algo muito interessante está acontecendo.

O que ainda me entristece é esse caldo não ter encontrado as artes já que geralmente elas preveem melhor os Acontecimentos do que a filosofia. Talvez, eu esteja pouco atento, aqui e ali vemos artistas se manifestando, mas ainda me parece ser algo muito tímido... rarefeito. Tenho nos quadros de Marcela Cantuaria algo extremamente interessante, uma artista radical com uma estética fundamentalmente crítica – já que isso será publicado convido os leitores a procurarem suas obras. Também nos quadros de Cleiton Custódio e sua turma: o mexismo vemos despontar conclusões possíveis. Algumas tentativas de organizações coletivas emergem cá e acolá. Temos coletivos interessantes de teatro como o Antropofágica e a Cia. do Latão. Mas vejam são experiências particulares que precisavam se unir no solo comum da crítica... bem, talvez já estão unidas... eu mesmo entrei no Sindicato dos Escritores de São Paulo, ainda permanecemos parados, mas penso que será um ótimo lugar para reunir escritores e pensar nossos desafios...

Agora, precisamos de novo reinventar a política e para isso é preciso descolonizar nossa imaginação que com cinquenta anos de neoliberalismo foi praticamente limitada à uma gramática estranha a qualquer projeto revolucionário. Essa reinvenção passa por um balanço crítico de nossas experiências passadas num sentido dialético particular: entender os limites das propostas do passado para repensar novas propostas de construção social. E, sobretudo, é preciso entender a dinâmica do capital contemporâneo, suas formas de produção e reprodução social, seus mecanismos, sua utilização central do Estado como um financista e investidor.

Precisamos repensar a democracia como um significante vazio, e, portanto, ideológico, na estrutura liberal, mas que não se limita a essa estrutura. Me incomoda muito o abandono puro e simples da ideia de democracia que, a meu ver, só será efetiva na sociedade socialista. A democracia é um ideal, e devemos repensar o que significa ideal, assim como o que significa comunismo. Pensar isso, entretanto, fugiria a pergunta, só para concluir: a democracia permanece no horizonte de qualquer socialista porque ela é a única forma que não exclui o negativo, o não-idêntico.

Quanto aos partidos comunistas; todos sabem que estive muito próximo do PCB e fui coordenador político pelo PSOL – que nunca foi algo próximo de um partido comunista. O PCB teve um processo muito interessante intitulado reconstrução revolucionária e abriu-se à discussão ampla e democrática em diálogo inclusive com movimentos sociais. Não tenho como avaliá-lo hoje porque às vezes sua posição se confunde com a de alguns militantes destacados. Só posso acrescentar nisso, portanto, que tais posições, mais barulhentas, me parecem um retrocesso, toda a crítica e desestalinização de outrora parece ter refluído nos últimos anos. Entretanto, sei que isso não diz respeito ao partido como um todo... por isso, não tenho como estabelecer um parâmetro crítico... Segue sendo um partido interessante por sua história e força. A Unidade Popular, que se afigura como um partido revolucionário, parece se destacar por estar em sintonia com os processos atuais e com os discursos contra-hegemônicos. Tem feito um trabalho muito interessante nas quebradas, trabalho solidário e de formação, nutro grandes simpatias, além de perceber uma formação crítica que tem se tornado cada vez mais robusta. Já o PSOL... bem... O PSOL não tem nada a ver, pelo menos por enquanto, com um partido que queira de fato uma transformação efetiva da sociedade. Embora, seja permeado por bons militantes...

Tenho críticas a todos, inclusive aos que não citei, como PSTU – que permanece engessado – na exata medida que acredito que todos são fundamentais. Não nutro esperanças nostálgicas por um partido leninista que agarre a história pelos cabelos, isso é uma mistificação dos processos revolucionários. Não acredito no partido ilibado e “realmente” revolucionário que não seja a própria classe que nem é ilibada nem só revolucionária (risos). Nesse sentido, penso o partido (legalizado) de esquerda como uma ferramenta e não como finalidade do processo revolucionário, o contrário disso é tornar tais partidos religiões e seitas. Ser leninista não é arrotar centralismo democrático senão entender que esse tipo de organização era fundamental em tal período histórico, e buscar por meio da crítica qual melhor forma de organização atual fazendo uma Aufhebung das experiências anteriores. Daí a noção de imaginação política.

É importante militar num partido, ajudar a construí-lo, sou brechtiano nesse sentido, por exemplo, o PSOL de Itaquá tinha uma vocação comunista (risos) e eu sai simplesmente quando essa vocação se esgotou. Mas sempre refletindo criticamente sua forma, se realmente a forma partido atende as novas complexidades que emergem no terreno social. O meu partido é o conjunto da classe, o proletariado. Os partidos de esquerda são subconjuntos que colaboram ou não para a ruptura com a lógica do capital, é preciso sempre pô-los em suspensão crítica para tanto é preciso garantir autonomia aos seus militantes...

Wesley Sousa

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