Por Gustavo Machado - doutorando em Filosofia pela UFMG.
Publicado orginalmente no site Teoria e Revolução
Data 04 de Março de 2020.
Nesse artigo faremos uma resenha crítica dos livros
de Silvia Federici: O patriarcado do salário. Críticas feministas ao
marxismo e, também: Calibã e a Bruxa: mulheres, corpo e
acumulação primitiva. O objetivo, todavia, não é abordar todos aspectos
contidos em tais obras, mas a sua relação com o pensamento de Marx. Apesar
disso é importante destacar que não gastaremos nosso tempo para mostrar que a
elaboração de Silvia Federici não condiz com aquela apresentada por Marx
em O Capital. Afinal, a autora está plenamente consciente disso. A
sua leitura procura reformular conscientemente vários aspectos centrais da obra
principal de Marx, porque estariam incorretos. Esses aspectos teriam como
núcleo central o que a autora denomina trabalho reprodutivo. No entanto,
Federici não pretende jogar pela janela toda obra de Marx, ao contrário, parte
do pressuposto de que, ao menos em alguns de seus contornos fundamentais, O
Capital constitui um ponto de partida válido, mas que deve ser
rearranjado naquilo que ela considera seu principal erro: o papel do trabalho
doméstico no interior da sociedade capitalista, enquanto produto genuíno dessa
forma social e fomentada por ela.
O que procuraremos mostrar, neste artigo, é que,
tendo em vista os objetivos de Marx em O Capital, todas as reformulações e
alterações propostas por Federici são desprovidas de sentido.
É importante, contudo, fazermos um alerta antes de
seguirmos adiante. Nosso objetivo não é, em sentido algum, negar a opressão da
mulher relacionado aos temas do que Federici denomina de trabalho reprodutivo e
trabalho doméstico. É um fato inquestionável e da maior relevância que a mulher
sofre brutal opressão no âmbito doméstico na sociedade capitalista. Disto não se
segue, obviamente, que toda e qualquer elaboração que tenha tais temas como
alvo deve ser referendada. Tomemos o caso do próprio Marx como exemplo. Ele
surgiu lutando contra inúmeras concepções socialistas que reconheciam e
denunciavam a exploração dos trabalhadores. Apesar disso, ao compreenderem de
forma equivocada a forma e natureza dessa exploração, apontavam saídas
igualmente equivocadas. É exclusivamente nesse quadro que deve ser entendida a
crítica que se segue as elaborações de Sílvia Federici.
Cabe, portanto, alguns comentários prévios
sobre O Capital de Marx, para avaliarmos em que medida são
válidos os elementos colocados pela autora italiana.
O que Marx procura realizar em O Capital
Uma das críticas comumente direcionadas a O
Capital de Marx não foi aquilo que ele examinou e efetivamente
analisou em sua obra, mas o que deixou de analisar. A ideia geral é a seguinte:
já que está em análise o modo de produção capitalista, tudo aquilo que envolve
este modo de produção deveria estar ali contido. Fosse esse o caso, a
empreitada de Marx seria, evidentemente, impossível.
Em O Capital, Marx não está preocupado
em analisar nenhuma realidade particular, local ou nacional. Não lhe preocupa a
Inglaterra ou França do século XIX, nem qualquer outro caso. Sua análise possui
abrangência maior: são os aspectos necessários do modo de produção capitalista,
presentes em todo lugar e tempo em que domina esse modo de produção. Esses
aspectos são duplamente importantes para um autor que tem por finalidade de sua
obra, e vida, a destruição desse modo de produção. Principalmente por duas
razões.
Em primeiro lugar, porque tais aspectos, ao
figurarem em toda e qualquer forma capitalista de sociedade, devem ser levados
em conta em toda e qualquer análise particular. Em segundo lugar, mostram que
laços devem ser necessariamente dissolvidos se quisermos destruir essa forma de
sociedade. É porque o capitalismo se desenvolve sob a base dessas relações
universais e necessárias que torna não apenas possível, como necessário, uma organização
socialista mundial, com objetivo de destruir esta forma de organização também
mundial, levando em conta todas particularidades quando aplicado a um contexto
particular, mas sem jamais perder de vista a base universal sob a qual se
desenvolve cada particularidade.
Tomemos um exemplo. Preocupa a Marx em O
Capital estudar e compreender a exploração do trabalho sob o
capitalismo. Em particular, a mais-valia. Que tipo de relações possibilitam ao
capitalista obter o trabalho excedente dos trabalhadores que emprega, mesmo
partindo do pressuposto de que capitalistas e trabalhadores apareçam no mercado
como pessoas juridicamente livres, cada qual vendendo sua mercadoria pelo seu
valor? Como de uma troca de equivalentes, uma troca entre valores iguais, pode
surgir exploração? A solução desse problema esclarece como o capitalismo
funciona e se reproduz em todo em qualquer lugar e em qualquer momento do
tempo. É claro que produção de mais-valia irá se ligar a outras especificidades
locais e historicamente desenvolvidas de modo a permitir seu pleno
desenvolvimento. A análise desses traços específicos, por exemplo: a questão
indígena e negra no Brasil, a divisão dos trabalhadores em distintas
nacionalidades em diversos países são igualmente importantes. Mas para entendermos
como tais aspectos influem na dinâmica da produção de mais-valia, precisamos
primeiro compreendermos a mais-valia. É esta a tarefa de O Capital:
desvelar a estrutura geral e universal do modo de produção capitalista, de modo
a servir de base para todas demais análises desse modo de produção.
Vejamos apenas algumas dessas categorias universais
e necessárias que Marx desenvolve no Livro I de O Capital:
Mercadoria → Valor → Trabalho abstrato → Dinheiro →
Capital → Classe trabalhadora e Classe Capitalista → Processo de valorização do
valor → Mais-valia absoluta → Cooperação Industrial → Mais-valia relativa →
Forma salário → Acumulação de Capital → Exército Industrial de Reserva e assim
por diante.
Será que a essas categorias deveria ser agregada
aquela do trabalho reprodutivo? É o que sustenta Silvia Federici. Vejamos em
que consiste seu argumento.
O Capital em fragalhos
A tese de Silvia Federici é a seguinte: Marx
abordou apenas a separação do campesinato da terra, sua separação dos meios de
produção, tornando-os aptos a venderem sua força de trabalho como mercadoria,
no entanto, não teria visto outra faceta da questão: o trabalho reprodutivo1. Este último diz respeito ao
trabalho de produção e reprodução da força de trabalho, desenvolvido no âmbito
doméstico, pelo trabalho não assalariado majoritariamente feminino. Em resumo,
Marx teria desconsiderado o trabalho que possibilita a classe trabalhadora se
reproduzir enquanto tal, no sentido de voltar a trabalhar depois de serem
consumidos em fábricas ou escritórios. Não seria algo pré-capitalista, mas um
desenvolvimento específico da sociedade capitalista, ainda não totalmente
desenvolvido nos tempos de Marx, quando o trabalho doméstico e a família
nuclear estavam incipientemente desenvolvidas.
Seria correta essa crítica de Federici? Para termos
maior clareza a este respeito, iremos fazer algumas considerações sobre o modo
como ela interpreta e analisa a obra principal de Marx.
É importante ter claro que Marx não sai por aí
criando conceitos de nenhum tipo. Quando analisa e expõem a mais-valia ou o a
acumulação de capital, Marx em absoluto não cria tais conceitos. O que ele faz
é traduzir conceitualmente certos tipos de relações reais e necessárias que se
dão no interior do modo de produção capitalista. Por isso, os conceitos não são
uma escolha de nossa cabeça, mas definidos no interior deste modo de produção.
Mas em todo seu livro, a autora italiana desconsidera esses aspectos. Antes de
procurar compreender essa conexão interna, ela toma a obra em pedaços, sem
conectar cada uma de suas partes, assumindo-as ou descartando-as de modo a
justificar o que irá propor na sequência. Tomemos um exemplo modelar, nesse
sentido.
Em seu livro O patriarcado do salário.
Críticas feministas ao marxismo, Federici diz:
Se o trabalho reprodutivo só pode ser mecanizado em
parte, o programa de Marx pelo qual a expansão da riqueza material depende da
automação e a consequente redução do trabalho necessário são interrompidos,
porque o trabalho doméstico e, principalmente, o cuidado de filhos, constitui a
maior parte do trabalho neste planeta. O mesmo conceito de trabalho socialmente
necessário perde muito de sua força de convicção. Como definir o trabalho
socialmente necessário quando o maior e mais indispensável setor trabalhista do
mundo não é sequer reconhecido como parte essencial do conceito? E que
critérios e princípios governariam a organização do trabalho assistencial,
sexual e procriativo, quando essas atividades não são consideradas parte do
trabalho socialmente necessário? (pag. 91)
Como se vê, para Federici, o conceito de trabalho
socialmente necessário enquanto medida do valor perde muito de sua eficácia
quando consideramos o trabalho reprodutivo, já que não levaria em conta o maior
setor trabalhista do mundo. Tal setor seria pouco afetado pela automação, além
de ser gratuito e, portanto, não valorado pelo tempo de trabalho socialmente
necessário. Esse conceito deveria ser, portanto, reformulado ou, talvez, até
deixado de lado.
Mas vejamos. Do que exatamente está a falar Silvia
Federici? O que é o tempo de trabalho socialmente necessário? Ora, é a medida
do valor das mercadorias que se encontram e se equiparam umas com as outras no
mercado. Sua medida surge do fato de que ao se compararem todas umas com as
outras, as mercadorias se reduzem, na realidade, a única substância social
comum que há entre elas: o trabalho genérico e abstrato, medido por unidades de
tempo. Seguindo o próprio argumento de Federici, o trabalho reprodutivo seria o
“produtor” da mercadoria força de trabalho. Ocorre que a autora ignora que o
valor das mercadorias não é determinado pelo valor da força de trabalho. Tanto
é assim que, no Brasil colônia, foi possível produzir mercadorias para
sociedade capitalista, cujo valor é medido pelo tempo de trabalho socialmente necessário,
com trabalho escravo. Ainda que Federici tenha razão e a força de trabalho
fosse mesmo produzida pela atividade por ela denominada trabalho reprodutivo,
isto não alteraria em absolutamente nada a medida do valor das mercadorias,
pelo simples fato de que tal medida não é determinada pelo valor da força de
trabalho. Vejamos mais detidamente a questão.
Quando Marx examina a medida do valor das
mercadorias no Capítulo I de O Capital, a mercadoria força de trabalho ainda
não surgiu, ela irá aparecer apenas no capítulo 4. E isto tem sua razão de ser.
Conforme a exposição de Marx, o valor da força de trabalho não interfere em
absolutamente nada na medida do valor das mercadorias, porque esta medida as
mercadorias possuem em si mesmas, objetivamente, conforme o tempo socialmente
necessário de trabalho para produzi-la. Atentemos ao fato de que a força de
trabalho não constitui a imensidão de mercadorias que o capitalista acumula
como capital. A força de trabalho é propriedade do trabalhador, é uma capacidade
interna sua e materialmente inseparável dele mesmo. O capitalista não compra a
propriedade da força de trabalho do trabalhador, mas o seu direito de uso por
determinado tempo. O valor da força de trabalho não altera, portanto, em
absolutamente nada o elemento de medida dos valores das mercadorias, o tempo de
trabalho socialmente necessário, cujo processo ocorre independentemente do
valor da força de trabalho2.
Mas Federici acompanha e comenta esse procedimento
expositivo de Marx? Não. Ela mostra os equívocos na demonstração da medida do
valor das mercadorias? Absolutamente não. Ela unicamente faz alusão de que
nessa medida empregou-se a palavra “trabalho”: “tempo de trabalho socialmente
necessário” e como Marx deixou de fora um desses tipos fundamentais de
“trabalho”, o trabalho reprodutivo, segue-se que a determinação da medida de
valor está incorreta. Ora, mas Federici mostra como este trabalho reprodutivo
determina o valor das mercadorias? Nem uma só linha a este respeito.
Acontece que quem define o que é o trabalho no modo
de produção capitalista não é a cabeça de Marx ou de qualquer outra pessoa, mas
o próprio modo de produção capitalista. Não é nossa escolha. Ali, o trabalho,
aquele que valoriza o valor do capitalista individual, é o consumo da força de
trabalho no processo de produção de mercadorias. Não é o dispêndio genérico de
energia, não é a realização de uma atividade qualquer, nem tampouco o quão
importante tal atividade é para o próprio capital. Mas Federici responde a esta
questão de um modo um tanto quanto estranho. Diz ela:
Cabe ressaltar que, ao afirmar
que o trabalho que realizamos em casa é produção capitalista não estamos
expressando o desejo de que este seja legitimado como parte das “forças
produtivas”. Em outras palavras, não é um recurso ao moralismo. Somente do
ponto de vista capitalista, ser produtivo é uma virtude moral, mesmo um
imperativo moral. Do ponto de vista da classe trabalhadora, ser produtivo
significa simplesmente ser explorado. (pag. 32-33) (grifo nosso)
Confessamos que incrédulos lemos a presente passagem
várias vezes. O subjetivismo que a domina, e em outras tantas passagens, é
assombroso. Ela diz não “ter o desejo” de legitimar o trabalho reprodutivo como
parte das forças produtivas. Ora, mas não são os desejos de Silvia Federici que
nos interessa. Queremos saber, como e de que forma o trabalho reprodutivo se
apresenta objetivamente como trabalho para o capital e o valoriza. Mas ela
denomina este procedimento de “moralismo”. Como assim? Significa que a
acumulação de capital não existe? Que é um mero produto moral do capitalismo?
Na frase seguinte, fica um pouco mais claro, na medida do possível, o que passa
pela cabeça de nossa autora. Ser parte das forças produtivas é uma análise “do
ponto de vista capitalista”. Ela está interessada no “ponto de vista da classe
trabalhadora”. Este procedimento pode até parecer ser muito revolucionário, mas
é bem o contrário. Vejamos.
Certamente é possível enxergar a forma social em
que vivemos do “ponto de vista da classe capitalista” e também “do ponto de
vista da classe trabalhadora”. Mas não se trata, de forma alguma, de uma
análise subjetiva do processo visto sob dois pontos de vista diferentes. Para
Marx “o ponto de vista da classe trabalhadora” é aquele que permite ver a
sociedade capitalista em seu conjunto, sem tapar uma única parte, pois a classe
trabalhadora não tem nada a esconder em função da própria posição que ocupa
objetivamente. O “ponto de vista do capitalista”, no entanto, vê o processo
unicamente do ponto de vista da circulação de mercadorias, esfera superficial
da valorização do capital, esfera em que ele atua como agente direto na
infinita busca de valorização de seu capital. Mas para Federici a situação é
bem diversa. “O ponto de vista do capitalista” é um pedaço do processo. O
“ponto de vista da classe trabalhadora” é outro pedaço. A ciência que ela
propõem fazer é aquela que pega o pedaço que lhe interessa e apetece tendo em
vistas seus interesses subjetivos.
Da perspectiva de Federici, “ser produtivo
significa simplesmente ser explorado”, já que ser parte das “forças produtivas”
é o pedaço que corresponde ao ponto de vista do capitalista. Com este
procedimento estranhíssimo, a autora joga no lixo em uma tacada só toda análise
de Marx do funcionamento interno da sociedade capitalista e retêm algo de absolutamente
genérico: ser explorado, algo que não é suficiente sequer para distinguir o
trabalhador assalariado de um escravo ou servo. Daí ela pode partir para sua
análise específica do trabalho reprodutivo, desconectado de qualquer aspecto
determinado da forma de sociedade que se propõem analisar.
Enfim, o trabalho reprodutivo
De nossa parte, e seguindo a perspectiva de Marx,
que toma o conjunto da sociedade e não um pedaço como sendo “o ponto de vista
da classe trabalhadora”, a noção de trabalho reprodutivo está equivocada por
dois motivos principais:
1.
não é
trabalho.
2.
não é
reprodutivo.
Vejamos, em primeiro lugar, o fato do trabalho
reprodutivo não ser trabalho na função específica que cumpre no interior da
forma de sociedade capitalista. Nessa forma de sociedade, o trabalho é o
consumo da força de trabalho que pode ser vendida abertamente no mercado
enquanto tal. Sem o consumo da força de trabalho não há valor, não há
mais-valia, não há acumulação de capital e todo o resto. Ao colocar as coisas
desse modo, não se pretende fazer um juízo moral de se isto é bom ou ruim, de
quais atividades são de maior ou menor importância, mas de entender como a
sociedade funciona. Atividades as mais desprezíveis quanto a sua finalidade são
realizadas na forma do consumo da força de trabalho vendida e, portanto, são,
para o capital, trabalho. Da mesma forma, atividades as mais nobres e
relevantes são realizadas fora dessa relação e, por esse motivo, não são
trabalho de uma perspectiva capitalista.
Como vimos, o que Federici denomina trabalho
reprodutivo não é vendido no mercado, mas exercido de forma opressiva no âmbito
doméstico. Fica claro, portanto, que, para transformar tais atividades em
trabalho, Federici precisa criar um conceito de trabalho como sendo mero
dispêndio de esforço e energia em uma atividade qualquer. Ao fazê-lo,
des-historiciza o conceito de trabalho e não o considera em sua forma
capitalista, mas genericamente e a-historicamente. Ora, ocorre que esse passo
contradiz frontalmente os objetivos da autora: ela quer mostrar que o trabalho
reprodutivo é o motor da sociedade capitalista e uma forma típica desse modo de
produção, mas para o fazê-lo precisa conceituar o trabalho de forma a-histórica
e genérica. A tal ponto que tal conceito de trabalho, assim desnudado de sua
forma histórica específica, poderia ser aplicado para as atividades de qualquer
indivíduo em toda e qualquer forma social do passado. Se considerarmos do ponto
de vista do capital e do capitalismo, resta constatar que não existe trabalho
doméstico, exceto quando se vende sua força de trabalho como trabalhador(a)
doméstico.
Mas não é somente isto. O trabalho reprodutivo de
Federici também não é reprodutivo. É impressionante que Silvia Federici
discorra páginas e mais páginas sobre o fato do trabalho doméstico não ser
assalariado. E diz constantemente da ditadura do salariato. Mas ela esquece de
comentar que o salário é exatamente a fatia de capital que garante a
subsistência da classe trabalhadora. Mais ainda. Diferentemente do trabalho
doméstico, esta é a condição necessária que possibilita ao trabalhador
sobreviver nesta forma de sociedade. Qualquer família de trabalhadores deixa de
existir sem o salário. No capitalismo, esta é a condição necessária de sua
subsistência e, não sem razão, “do ponto de vista do trabalhador”, é o elemento
fundamental a ser revolucionado, sem o qual não há transformação socialista
concebível. Por outro lado, o trabalho doméstico não é condição necessária para
reprodução da força de trabalho dos trabalhadores, mas uma condição contingente
e, por esse motivo, não teria porque aparecer como uma categoria específica
em O Capital de Marx.
Por que motivo, então, Federici denomina tais
tarefas de trabalho reprodutivo? Ela utiliza o termo reprodutivo no sentido da
reprodução individual do trabalhador, isto é, “o complexo de atividades e
relações por meio das quais nossa vida e nosso trabalho são reconstituídos
diariamente’’ e não no sentido da reprodução da forma de organização social. Já
o termo trabalho, como já analisamos, aparece no sentido genérico e abstrato de
dispêndio de energia e cérebro em uma atividade qualquer. Em ambos os casos,
ela abstrai da forma social capitalista em que se reveste tais
atividades. Atenção! Federici, a todo o momento, procura, com
toda razão, indicar que esses elementos anteriormente indicados são produto
específico e impactam diretamente na sociedade capitalista. Mas ao fazê-lo,
ela, contraditoriamente, abstrai o aspecto social e histórico de seu conceito
de trabalho reprodutivo. Isto é assim porque ela precisa retirar fora
exatamente o nexo social que une os indivíduos ao conjunto da sociedade: a
compra e venda da força de trabalho paga na forma de um salário. Ela faz uma
condenação meramente moral ao salário, “a ditadura do salariato”, e não o
incorpora objetivamente a suas categorias. Aí se encontra o centro de todas as
confusões que em seus livros irão se multiplicar a cada página.
Ora, mas nesse momento o leitor pode nos indagar:
ao negar a categoria do trabalho reprodutivo, onde entra então as tarefas
domésticas do trabalhador? Significa que elas não possuem nenhuma relevância?
Absolutamente não. Na medida que é uma atividade não paga realizada no âmbito
doméstico, ela reduz o valor da força de trabalho. Não é responsável pela sua
reprodução (por isso não é reprodutivo), mas interfere no seu valor. Não no
valor das demais mercadorias, mas unicamente no valor da própria força de
trabalho. O valor da força de trabalho, por sua vez, interfere na fatia da
riqueza a ser distribuída entre trabalhadores e capitalistas. Quanto maior o
valor da força de trabalho, menor a mais-valia (ou lucro) e vice-versa.
Feito isso, o leitor ainda poderia nos perguntar:
ora, se as tarefas domésticas reduzem o valor da força de trabalho, ao serem
uma atividade gratuita realizada pelas mulheres no âmbito doméstico, não se
segue que ele é algo importante ao intervir na fatia de valor que o capitalista
acumula na forma de capital?
A resposta é afirmativa. Certamente o trabalho
doméstico interfere na magnitude da mais-valia, sendo, portanto, algo de grande
relevância. Acontece que em O Capital Marx não está estudando
tudo aquilo que é importante. Fosse esse o caso a tarefa dessa obra seria
impossível e cada capítulo abriria outras 1000 páginas sobre aspectos
relevantes e que interferem na acumulação de capital. A questão é: o trabalho
doméstico é uma condição necessária para a acumulação de capital? Evidentemente
não.
O trabalhador vende sua força de trabalho, mas é a
efetivação desta força que cria valor. O capitalista, enquanto comprador desta
mercadoria específica, pode, a princípio, consumi-la ao seu bel-prazer e
estender seu consumo para além dos limites necessários ao pagamento da
mercadoria que comprou. Isto é, pode estender o uso da força de trabalho para
além do necessário ao pagamento do salário e extrair daí um excedente, a
mais-valia. Assim, seja qual for o valor da força de trabalho, mais baixo ou
mais elevado em função, por exemplo, do trabalho doméstico, o capitalista pode
estender a jornada de trabalho para além do necessário ao pagamento dessa força
de trabalho e, assim, obter uma mais-valia e dar marcha ao processo de
acumulação de capital. Não há nenhum motivo para inserir a categoria de
trabalho doméstico em O Capital, já que ela não é condição
necessária para sua reprodução. E, de fato, Silvia Federici argumenta a
respeito da relevância do trabalho doméstico na sociedade capitalista, sua
extensão e abrangência, seu papel especificamente capitalista e seu
desenvolvimento histórico. No entanto, em nenhum lugar ela demonstra ser um
elemento necessário para a reprodução de capital, nem demonstra seu vínculo
direto com o processo de reprodução de capital.
O mesmo problema que analisamos acima propaga, em
seguida, em diferentes níveis nas elaborações de Federici. Por exemplo, sua
crítica de que Marx não tratou do problema do trabalho doméstico no capítulo da
Acumulação Originária. Ora, o que Marx busca nesse célebre capítulo não são
todos os processos historicamente específicos que fizeram parte da formação do
modo de produção capitalista. Marx não pretende fazer a história do surgimento
do capitalismo nesse célebre capítulo. Ele procura os seus pressupostos
necessários, conforme a investigação anterior já indicara: a liberação dos
trabalhadores de todos os meios de produção, de um lado, e sua acumulação no
polo oposto. Este processo que pressupõe a expropriação violenta da massa de
trabalhadores de todos os meios de produção. A esses processos analisados por
Marx certamente poderíamos elencar outros que também ocorreram duramente o
período formativo do capitalismo. Esses processos poderiam povoar dezenas e
dezenas de novos livros. Mas Marx não está preocupado com isso nesse momento de
sua elaboração. Procura os pressupostos necessários e não aqueles
historicamente contingentes. Por isso mesmo, a crítica de Silvia Federici de
que Marx não analisou o papel do trabalho doméstico no surgimento do
capitalismo não procede, já que ela não demonstra que seria preciso inseri-lo
enquanto um momento necessário para a formação do capital.
A relevância do debate
Por que tal debate é importante? Seria uma mera
querela conceitual sem qualquer relevância? Não é, definitivamente, o caso. Não
é por mero preciosismo teórico que Marx procura em O Capital aquelas
relações necessárias no processo de reprodução do modo de produção capitalista.
Tais relações necessárias são aquelas que devem ser reconfiguradas se quisermos
caminhar apara além do modo de produção capitalista, com as mazelas e opressões
que lhe são próprias. Ao deixar de fora a categoria de trabalho reprodutivo
de O Capital a conclusão a que chegamos não é que o problema
seja menor. A questão é que, se temos por objetivo superar essa forma de
sociedade, a questão do trabalho doméstico jamais poderá ser tomada de forma
isolada e descolada das demais relações necessárias e estruturais do capital e
do capitalismo. Não sem razão, uma das principais palavras de ordem da AIT é a
“supressão do trabalho assalariado”.
Observemos que isto não torna a palavra de ordem
“supressão do trabalho doméstico” de menor importância. Mas desautoriza, do
ponto de vista da classe trabalhadora e da destruição da sociedade capitalista,
seu uso isolado como eixo e centro da intervenção, porque isoladamente ela não
conduz invariavelmente a necessidade de destruição dessa forma de sociedade. E
esta vinculação das tarefas domésticas as determinações da compra e venda da
força de trabalho não é uma opção para os marxistas. É o próprio capitalismo
que as vincula objetivamente, em função da forma como funciona e se organiza.
Mas este aspecto passa ao largo na análise da autora italiana, pois, segundo ela,
não é seu desejo fazer essa vinculação.
Pensamos, ao contrário, que independente de nossos
desejos, nós temos que levar em conta a realidade tal como ela é, para
traçarmos então nossa intervenção. Não é o caso de fazermos uma eleição
subjetiva de qual opressão é mais importante: a doméstica ou a assalariada. É o
caso de entendermos como tudo isso se articula dentro da forma de sociedade em
questão. Nessa análise vemos que o trabalho assalariado é condição necessária
desse modo de produção. O trabalho doméstico, por sua vez, destinado de forma
opressiva às mulheres, fragmenta a classe trabalhadora: um polo que realiza o
trabalho doméstico e outro que se beneficia dele. Daí que seu combate é
fundamental para a unidade da classe. Não se trata de uma conclusão moral e
utilitária, mas objetiva.
O moralismo está em procurar combater algo porque
este algo seria um “mal em si” sem entendermos a base que o possibilita e,
assim, as possibilidades reais de destruí-lo. Se isolarmos o trabalho doméstico
estaremos nos movendo ainda no interior das determinações contingentes do
capital – o que pode abstratamente ser e o que pode abstratamente não ser no
interior desse modo de produção – e jamais no campo revolucionário. Nesse
sentido, longe de aprimorar, o que Federici realiza é uma ruptura com o
marxismo, seu programa, finalidade e meios.
É importante aqui abrirmos um parênteses para
aprofundar a questão. Inúmeros outros aspectos interferem na magnitude de valor
da força de trabalho. Todos esses aspectos são relevantes, devem ser levados em
conta na intervenção política específica das organizações marxistas, mas nem
por isso fazem parte das determinações necessárias do capital, das suas
condicionantes estruturais. Por exemplo, o desenvolvimento histórico e cultural
de um dado povo determina ou não a inserção de certos produtos como
necessidades de consumo, causando uma enorme diversidade nacional dos salários,
que variam de país para país em conformidade com tais necessidades. Daí não se
segue que a revindicação por um certo padrão de consumo e vida da classe
trabalhadora (por exemplo, um padrão brasileiro de consumo similar ao europeu)
seja, em si, uma luta pela destruição da sociedade capitalista. Da mesma forma,
os preconceitos de todos os tipos entre setores da classe de distintas
nacionalidades e raças comumente rebaixa o valor da força de trabalho da classe
trabalhadora no geral e dos setores oprimidos com maior intensidade. É a mesma
situação. Isto faz dessas revindicações específicas uma questão de vida ou
morte para uma organização marxista, mas de forma alguma uma revindicação que
deve ser tomada de forma isolada, como se fosse em si mesma anti-capitalista,
socialista e revolucionária.
Uma síntese das debilidades na análise de Federici
Para concluir, gostaríamos de ser bastante sinceros
a respeito das elaborações de Federici a que tivemos acesso. Elas padecem dos
seguintes problemas:
1.
Não acompanha
internamente os argumentos de Marx que são alvo de sua crítica, mas os arranca
fora já na largada como correspondendo a fatia da realidade ligada “ao ponto de
vista do capitalista” ou que simplesmente não é seu desejo investigar este ou
aquele aspecto. Por exemplo: como o trabalho doméstico poderia interferir no
“tempo de trabalho socialmente necessário” das mercadorias? Não há nenhum
desenvolvimento nesse sentido.
2.
Ignora pontos
centrais que feririam de morte a sua tese: como o papel do salário como
condição necessária de reprodução da força de trabalho. Se ela levasse em conta
este aspecto, como ficaria sua demonstração de que a força de trabalho é
produzida e reproduzida pelo trabalho doméstico? Ela simplesmente desconsidera
o papel do salário no modo de produção capitalista e se foca unilateralmente no
fato dele servir de base para a opressão doméstica.
3.
Faz críticas a
Marx por não ter tratado de vários temas particulares em O Capital,
sem problematizar porque eles deveriam ser tratados tendo em vista seus
objetivos nessa obra. Marx não procurou escrever uma megalomaníaca obra que
trata de tudo que envolve o capitalismo, mas estudar o capitalismo enquanto um
todo.
4.
Apela
recorrentemente para a extensão quantitativa de um dado aspecto da realidade
(como a extensão do trabalho doméstico) sem problematizar a fundo o papel
qualitativo que este aspecto cumpre na realidade capitalista. É como se a
extensão falasse por si só e eliminasse a necessidade de examinarmos sua
dimensão qualitativa.
5.
Recorrentemente,
utiliza o artifício de se apropriar de certas noções de Marx para fundamentar
suas teses. Mas o faz desistoricizando-as. Por exemplo, reduzindo o papel do
trabalho no capitalismo a exploração de um indivíduo sobre o outro, permitindo
assim enquadrar o trabalho doméstico nesse conceito tornado abstrato e
a-histórico.
6.
Confunde a
relevância empírica do tema com seu papel enquanto determinação necessária do
modo de produção capitalista, este último o objetivo de Marx em sua obra.
Concluindo, acreditamos que Federici detecta muito
honestamente o problema do trabalho doméstico e tem uma vontade sincera de
atacá-lo. Mas sua subjetividade impede, na maioria das vezes, um tratamento
científico e objetivo da questão. Seu trabalho traz informações empíricas e
históricas interessantes, mas estas são contaminadas pela ausência de critérios
objetivos claros no desenvolvimento do tema e pela propensão de chegar, custe o
que custar, à determinadas conclusões. Não vemos tal trabalho como
cientificamente sério e acreditamos que não agrega muita coisa ao tema e
problemas que propõem do ponto de vista dos conceitos que reformula e critica.
A grande dificuldade de tratar de sua obra é que a
explicitação de sua debilidade conceitual pode fazer parecer que o problema por
ela colocado é pouco relevante. Devemos alertar que este não é o caso. O
problema que aborda é de grande relevância, mas a forma como ela o faz é frágil
teoricamente, sem critérios objetivos claros, com uma coerência artificialmente
forjada ao inserir na análise apenas os elementos que lhe interessa tendo em
vista seus objetivos. Do ponto de vista de sua crítica aos conceitos
descobertos e desenvolvidos por Marx em sua obra principal devemos dizer com
todas as letras que seu trabalho não tem absolutamente nada a agregar.
Referências
Federici, Silvia. El patriarcado del
salario. Críticas feministas al marxismo. Madrid: Traficantes de sueños.
2018.
Federici, Silvia. Calibán y la bruja.
Mujeres, cuerpo y acumulación originaria. Madrid: Traficantes de sueños.
2004.
Notas
1 A primeira
elaboração desse conceito, na verdade, pertence ao trabalho conjunto de
Mariarosa della Costa e Selma James: “Women and the Subversion of the
Community” (As Mulheres e a Subversão da Comunidade):
https://libcom.org/files/Dalla%20Costa%20and%20James%20-%20Women%20and%20the%20Subversion%20of%20the%20Community.pdf
2 Cabe ressaltar que um manuscrito de Marx publicado posteriormente com o título de “Salário, preço e lucro” é um discurso pronunciado na AIT justamente para refutar a ideia de que a magnitude dos salários interfere no valor das mercadorias.