Nota
introdutória
Wesley Sousa – estudante de filosofia pela UFSJ.
O texto que se segue abaixo foi extraído do site Vermelho (título homônimo). Porém, faço aqui uma nota introdutória historiográfica. É interessante como o esporte
onde os soviéticos era os imbatíveis serviu como palco das lutas ideológicas,
inclusive, da reação encarniçada na URSS dentro do PCUS. A luta
política, ideológica e propagandística no xadrez não havia começado com Garry Kasparov (o “último” soviético campeão
mundial). Por isso, é necessário que recuemos um pouco no tempo para
abordá-la. De modo rasteiro: é interessante que o anticomunista
Kasparov, na hora de produzir o que apresentou como sua magna obra sobre a
história do Xadrez (em 4 vols.), tenha recorrido a uma caricatura do
marxismo com o sinal político trocado. Pois, a sua tese que
nada tem de original, é que cada campeão mundial – ou, melhor, a maneira como
cada
campeão abordou o xadrez – foi expressão do tempo em que cada um viveu. A
partir disso, está liberada a enxurrada de bobagens, pois
Kasparov, ou os que escreveram os livros por ele (já que sua autoria é
duvidosa!), nada entendem nem da época atual, nem das épocas passadas, e nem
querem
entender. Preferem o rasteiro panfleto anticomunista, daqueles em que a CIA é
muito
mais competente.
A História, enquanto história, é feita pelos homens vivos, e nela permeia sempre o espírito de sua época, mas ao contrário da propaganda reacionária e, de certo modo, ocasionada pelos próprios erros dos soviéticos. Com isso, impossível a URSS ter “dado certo”: veja, se até no esporte nacional deles era o ponto culminante mais reacionário possível, explicitando o caráter atrofiador, burocrático, contrarrevolucionário, etc. daquela forma de Estado. O “final” da URSS foi uma catástrofe, é verdade, em grande parte, causada parte por seus gestores.
O xadrez é um jogo, uma ciência e uma
arte milenar. Desde os turcos e otomanos, vindo para o leste do império romano.
Nos dias de hoje, o xadrez é permeado por aqueles que, se tem o esporte como um
meio de satisfação financeira ou desportiva sob égide do mundo da mercadoria, é
preciso ter o conhecimento que, de tempos em tempos, os seus interesses sempre
servem aos interesses dominantes. Assim como o xadrez é uma luta contra si e
contra as ideias opostas, o socialismo só se erigirá a partir da luta contra a
ideologia impregnada à reação e contra essa forma social que avilta, explora
e torna o próprio homem em “peões” do jogo capitalista.
Publicado
no site Jacobin Brasil, um texto intitulado: O Gambito da Rainha é um xequemate no anticomunismo de hollywood, há uma passagem bem esclarecedora. Trata-se
de um texto sobre a série da Netflix muito famosa sobre uma moça “prodígia”,
que fora órfã e, no orfanato, aprende o jogo com o zelador. Quando é adotada,
por uma família “típica” dos anos 50/60 nos EUA, começa a “romper barreiras”
para disputar torneios (sexismo, principalmente). No entanto, a romantização
toda não se dá apenas no aspecto lúdico da coisa, mas na tragicidade romanesca
da película encenada:
“No mundo de O Gambito da Rainha, o único “vilão” que Beth precisa enfrentar são as
realidades sociais que a impedem de atingir seu potencial por completo. E essas
realidades são um produto do sistema capitalista que se ostenta como “livre”.
Em última análise, Beth só pode vencer esses obstáculos agindo em solidariedade
com os outros. Esta é uma lição que ela aprende em grande parte com seus
“oponentes” do xadrez na União Soviética, uma sociedade que aprecia o valor da
solidariedade muito mais do que a sociedade norte-americana” (21/02, Jacobin).
Portanto, sem estender demais, fica claro que se hoje a “guerra
fria” não “existe”, sabemos que do “outro lado do tabuleiro” há sempre um algoz,
um oponente, prestes ao xeque-mate: a derrota não é um momento, mas um processo
que se consolida quando não temos planos e objetivos de vencer a exploração, a
destruição e a irracionalidade do “jogo” capitalista.
Ao texto.
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Se o
futebol transformou o Brasil na “pátria de chuteiras”, o xadrez fez da ex-União
Soviética a terra do tabuleiro. Mas verdade seja dita: antes mesmo da Revolução
de 1917, os russos já nutriam uma paixão secular pelo xadrez, anterior até à
tricentenária dinastia da Casa Romanov (1614-1917).
Ivan,
o Terrível, estava jogando uma partida quando um derrame o matou, em 1584. A
Condessa de Stroganoff – da família que deu nome ao prato – organizou um duelo
entre a imperatriz Catarina 2ª e o rei sueco Gustavo 4º em 1796. Detalhe: era
xadrez gigante, com peças humanas.
Em uma
foto de 1908, o líder bolchevique Vladimir Lênin joga uma partida com seu
“camarada” Alexander Bogdanov, autor de ficção científica e médico pioneiro da
transfusão sanguínea. Eles estão na casa do célebre escritor Maxim Gorki, na
Itália. Lênin (que, segundo Gorki, acusava o xadrez de ser viciante, mas não
escondia a irritação ao perder) recorreu ao jogo até em seu exílio de três anos
na Sibéria antes da Revolução Russa: os movimentos das peças iam e voltavam por
correspondência.
O
xadrez surgiu a partir de um jogo indiano do século 6, chamado chaturanga – que
tinha um elefantinho no lugar do bispo. Chegou aos persas, espalhou-se pela
Ásia e entrou na Rússia pela Sibéria no século 9. Deu match com o
temperamento russo e virou o passatempo preferido da aristocracia imperial. Mas
só caiu de vez no gosto do povo séculos depois, quando foi amplamente
disseminado pelos soviéticos.
Alexander
Ilyin-Genevsky foi o primeiro bolchevique a incentivar o xadrez como uma
atividade útil aos revolucionários. Com suporte financeiro do Estado de cem mil
rublos – o primeiro patrocínio estatal para o jogo –, ele organizou o primeiro
campeonato soviético de xadrez na década de 1920. Genevsky iniciou também uma
coluna de xadrez em um jornal e abriu um clube para enxadristas financiado pelo
Estado.
Foi
Nikolai Krylenko, de todo modo, quem efetivamente transformou o xadrez em um
instrumento estatal. Fiel aliado de Lenin, Krylenko foi presidente da primeira
federação soviética de xadrez. Sob seu comando, foi organizado o Torneio de
Xadrez de Moscou de 1925 e fundada a revista 64, do qual era editor.
Após a
União Soviética abrir mão de participar da fundação da Federação Internacional
de Xadrez, a Fide, em 1924, na França, o governo comunista passou a
patrocinar outras competições internacionais. Mais tarde, esses torneiros
viriam a qualificar Mikhail Botvinnik como principal jogador do regime e
possível desafiante ao título mundial.
Na
década de 1940, jogadores soviéticos começaram a se destacar em competições e
venceram uma série de matches, via rádio, contra a equipe dos Estados
Unidos e Reino Unido. Nikolai Krylenko, influente assessor de Stálin, disse:
“Vamos organizar brigadas de choque de jogadores – e começar um plano quinquenal”.
A ideia era a de que um jogo lógico e racional – o favorito do alemão Karl
Marx, diga-se – demonstrasse a superioridade intelectual da União Soviética
sobre os países capitalistas.
Ao
contrário de determinados jogos ou esportes, o xadrez tem baixíssimo custo: as
peças podem ser fabricadas em larga escala, e a única infraestrutura necessária
é uma mesa. Além disso, a população já nutria alguma simpatia pelo tabuleiro
alvinegro, e havia um herói nacional recente para exaltar: Mikhail Chigorin, que
esteve no top 5 mundial no final do século 19 e batizou vários
lances. Logo, o xadrez foi incorporado ao treinamento de todos os recrutas das
Forças Armadas.
“O
Partido Comunista acreditava que o xadrez poderia ser de grande utilidade para
elevar o nível cultural das massas trabalhadoras”, escreveu o historiador
Michael A. Hudson. “O encorajamento oficial fez do xadrez um componente
cultural significativo na vida dos cidadãos.” Stálin, em particular, estimulou
a propagação do jogo.
O
Campeonato Soviético, disputado de 1920 a 1991, era, sem dúvida, a mais forte
das competições nacionais de xadrez. Todo esse incentivo rendeu frutos em 1948,
quando Botvinnik venceu o primeiro Campeonato Mundial organizado pela Fide. Era
o início do domínio soviético na competição masculina: todos os campeões das
duas décadas seguintes eram de lá. Além disso, de 1950 a 1984, a União
Soviética organizou todas os campeonatos mundiais femininos, que sempre tiveram
campeãs do país.
A
hegemonia era tanta que, em 1970, houve o “Match do Século” entre enxadristas
da União Soviética e jogadores do resto do mundo – “grandes mestres de todos os
países, uni-vos contra os soviéticos”. Além de Botvinnik e de Boris Spassky –
que detinha o título mundial desde 1969 –, os comunistas foram ao confronto com
outros três ex-campeões mundiais: Tigran Petrosian, Vasily Smyslov e Mikhail
Tal. No final, os soviéticos levaram a melhor por 20,5 x 19,5.
Só que
o equilíbrio na disputa apontava para o crescimento dos rivais. “Ganhamos, mas
há algumas razões para preocupação”, resumiu o “mago de Riga”, Mikhail Tal, um
dos maiores enxadristas soviéticos. “Por que, aparentemente, os jogadores
estrangeiros estão progredindo mais rapidamente? Por que a idade média dos
adversários também é menor que a da nossa equipe nacional? Por que houve apenas
um torneio de xadrez realmente forte na União Soviética nos últimos anos?”.
Os
EUA, do outro lado da Guerra Fria, nem sequer conseguiam chegar à fase final
dos Campeonatos Mundiais. Vontade de provocar os soviéticos não faltava.
Faltava tradição mesmo. A sorte ianque só começou a mudar em 1972, com Bobby
Fischer, único norte-americano a se sagrar campeão mundial de xadrez, ao vencer
Boris Spassky.
Como
no gambito – uma das jogadas mais populares da atualidade, graças à série O Gambito
da Rainha –, houve sacrifícios na escola soviética. A derrota de Spassky
para Fischer acelerou a transição da lendária “geração Mikhail” – aquela
liderada por Mikhail Botvinnik e Mikhail Tal, entre outros – para a última
safra de expoentes do xadrez no país comunista. O próprio Spassky caiu no
ostracismo e abandonou o país, indo morar na França.
Em
1975, Fischer se recusou a defender seu título e acabou por perdê-lo – o
desafiante soviético Anatóli Karpov se sagrou campeão mundial sem precisar jogar.
A transição estava consolidada. Nove anos depois, em 1984, o Resto do Mundo
voltou a enfrentar a União Soviética. Mais uma vez, a vitória foi comunista: 21
a 19. Sinal dos tempos, a equipe soviética agora tinha Karpov, Garry Kasparov e
cia.
Um,
Karpov, era militante e chegou a se eleger deputado pelo Partido Comunista. O
outro, Kasparov, foi o mais dissidente dos soviéticos que se tornaram campeões
mundiais. O contraste entre ambos simbolizava os anos finais do país que
emergiu com a Revolução de 1917 e que valorizou o xadrez mais do que qualquer
outra nação. Com a queda do regime, em 1991, a Rússia continuou a formar
grandes mestres – mas nada que se equiparasse aos históricos e longevos anos da
hegemonia soviética.
https://vermelho.org.br/2021/02/27/gambito-sovietico-a-hegemonia-dos-comunistas-no-xadrez/
https://jacobin.com.br/2021/02/o-gambito-da-rainha-e-um-xeque-mate-no-anticomunismo-de-hollywood/
https://horadopovo.com.br/miserias-e-glorias-do-xadrez-parte-1/