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Felipe Taufer é doutorando em Filosofia Política pela Universidade de
Caxias do Sul (UCS).
Acervo Crítico – Para começar nossa entrevista, nos conte um pouco sobre sua trajetória até aqui, o amadurecer das ideias, a adesão ao marxismo...
Felipe
Taufer – Deixe-me, antes de qualquer outra coisa, agradecer o teu
convite para esta entrevista. Desde que acompanho o Acervo Crítico – há mais ou
menos 5 anos –, li muitas entrevistas, traduções e colunas de opinião
interessantíssimas.
Não sei se me considero um marxista. Pois isso
implicaria assumir um compromisso com um tipo específico de transformação
social do modo de produção capitalista. O fato é que considero a obra de Marx
muito interessante e concordo com seu diagnóstico crítico da sociedade
capitalista. Também partilho com ele o profundo sentimento de indignação com
esse modo de vida. Em sua época, Marx traçou diversos programas específicos de
intervenção na realidade conforme a “conjuntura” dos conflitos sociais
variavam. Basta lembrar da Liga dos Comunistas, da Associação Internacional dos
Trabalhadores, das disputas com Lasalle no Partido Social-Democrata Alemão etc.
Nesse sentido, sua obra nunca deixou de estar subordinada aos seus compromissos
revolucionários. O que não sei se concordo é justamente se a melhor maneira de
levar a cabo tais compromissos revolucionários ainda remonte aos
traços gerais desses programas de transformação social. Por isso, penso que o
marxismo é uma espécie específica de transformar a sociedade, que é uma aposta,
para fazer uso de um termo genérico, no “socialismo científico”. Meu ponto é
que talvez possamos concordar com o diagnóstico crítico de Marx e acreditar na
adequação de sua crítica da economia política ao presente. Mas ao assumir que a
validade daqueles programas de intervenção na realidade varia de acordo com
mudanças não essenciais do capitalismo, podemos discordar sobre a
forma de transformação social mais adequada ao nosso tempo. E, se discordarmos
disso, já não seremos marxistas. O que nos colocaria na posição de pensar,
construir e dialogar com outros sobre qual seria essa outra forma de transformação.
A isso não sei qual seria a resposta adequada, mas se ela fosse marxista,
seria, no mínimo, ‘heterodoxa’.
Seja como for, foi aquele sentimento de indignação com a realidade que me despertou para começar a ler alguns clássicos da política e, não poderia ser diferente, o encontro com a obra de Marx esclareceu – desde a primeira vez que li Sobre a questão Judaica – que minha indignação não era com a política. Era com uma certa forma de vida social e todos os efeitos que dela se seguem (embora ele não tivesse clareza sobre isso em 1844): a miséria generalizada, o fato de que só podemos nos manter fisicamente se submetermos nossa força de trabalho ao mercado, o rebaixamento da condição humana, a ausência de espaço para autorrealização da individualidade da maioria de nós etc. Foi também nesse tempo – ainda cursava a graduação em administração – que decidi estudar filosofia. Logo após, apliquei o exame de ingresso no curso de mestrado, onde fiz uma dissertação sobre György Lukács. Há cerca de dois anos estou me dedicando ao estudo específico da obra de Marx no curso de doutorado. Não é muito bem uma trajetória, até porque não tenho uma propriamente falando, mas penso que essa é uma boa maneira de descrever para onde meus estudos têm me levado e como minhas ideias têm sido articuladas.
AC – Recentemente você tem tido reflexões sobre o pensamento do filósofo contemporâneo Axel Honneth, da chamada “Escola de Frankfurt”. O autor alemão tem em mente uma “teoria do reconhecimento”, uma certa mitigação do pensamento de Hegel e Marx. A questão problemática a partir disso seria atribuir um certo de tipologia do “reconhecimento” em Marx, como se fosse uma forma epistêmica de mundo. Qual o problema dessa interpretação de Honneth que identifica?
FT
– A
teoria crítica de Axel Honneth é, sem dúvida, não só um dos mais importantes
desenvolvimentos da teoria social surgidas na última parte do Século XX, mas
também um marco para a filosofia política como um todo. Desde que John Rawls
publicou Uma Teoria da Justiça (1971) e, com isso, reinaugurou a
filosofia política, as discussões desse campo tem se dedicado a responder
fundamentalmente quatro questões. A primeira dessas questões pode ser elaborada
da seguinte forma: qual é a fundamentação normativa mais adequada para nossos
juízos políticos? Essa questão remonta à querela da “fonte da normatividade”.
Naturalmente, seu objetivo é construir critérios para que a realidade política
possa ser avaliada. As outras três questões dizem respeito a especificidade
desses critérios: justiça, reconhecimento e o modo como devemos atender nossas
carências. A discussão sobre carências também pode ser tida como uma discussão
sobre os bens básicos de qualquer sociedade e como esses devem ser atendidos de
acordo com critérios de justiça.
Claro que essa divisão nem é (e talvez nem
possa ser) sempre tão esquemática. Mas penso que isso ilustra bem o pano de
fundo no qual Honneth aparece. O mérito de sua obra foi o de ter tentado
vincular os resultados da teoria social mais recente com essas discussões
normativas. Como sua inspiração é hegeliana, Honneth desejou construir uma
teoria social amplamente baseada na noção de reconhecimento. Dessa forma, é a
teoria social quem adota uma fundamentação normativa e oferece critérios de
reconhecimento para avaliar nossa sociedade e apontar saídas normativas que se
conformem a esses critérios. No contexto de sua primeira tentativa de
reconstrução da teoria do reconhecimento, em Luta por Reconhecimento (1992),
Honneth mostrou como sua teoria era herdeira de tentativas passadas de
definição de critérios normativos de reconhecimento. Ele enxergou no ‘jovem
Marx’ uma dessas tentativas frustradas e, nessa ocasião, enxergou um
‘reducionismo econômico’ na suposta fundamentação normativa dos critérios de
reconhecimento que, nesse sentido, atravessariam toda obra de Marx.
Recentemente, em A Ideia de Socialismo (2015), Honneth reelaborou essa
crítica afirmando que a concepção normativa de ‘liberdade social’ sustentada
pelo ‘jovem Marx’ sofreria de um déficit político. Nesse sentido, a crítica de
Honneth não só apontaria que em Marx encontraríamos um economicismo enquanto
perspectiva de crítica normativa, mas que a fundamentação normativa de Marx
seria insuficiente para pensar sociedades democráticas.
Penso que este ponto de vista de Honneth sobre
a obra de Marx expressa a versão mais sofisticada da crítica de economicismo
que poderia lhe ser sugerida. Isso porque Honneth toca num ponto fundamental
(ainda que não formule nesses próprios termos): qual papel, se é que há algum,
a normatividade desempenha na obra de Marx? A minha convicção representa o
oposto da de Honneth: nenhum. Evidentemente que esse tipo de empreendimento não
representa nenhum prejuízo para o projeto teórico de Honneth, a saber, a construção
de uma teoria do reconhecimento. O que vejo nesse assunto marginal de sua obra
é a oportunidade para explorar uma temática que deveria despertar a curiosidade
de qualquer leitor de Marx: qual é o fundamento, se é que exista algum, de sua
crítica à sociabilidade capitalista? Se a versão da crítica feita por Honneth é
a mais sofisticada, então atacá-la pode muito bem representar uma resposta
geral à maioria das objeções do mesmo tipo que são endereçadas a Marx. Por
conseguinte, explorar os resultados dessa defesa de Marx contra Honneth é um
uso estratégico para fornecer uma descrição positiva do estatuto de sua crítica
ao modo de produção capitalista. Afinal, não foram só os críticos de Marx, mas
muitos de seus defensores – principalmente daqueles que viram em Marx ‘um
filósofo humanista’ – que pensaram em encontrar em Marx critérios normativos
(muitas vezes sem a clareza que isso possui em Honneth e nas discussões
contemporâneas) para criticar a sociedade capitalista. Meu objetivo nesse
sentido tem sido o de mostrar como a crítica de Marx não se fundamenta em
critérios de justiça e nem de reconhecimento, ou seja, ela não é normativa.
A isso se soma o fato de que essa me parece uma boa forma de recuperar Marx
para, aí sim, criticar as perspectivas contemporâneas em filosofia política e,
a partir disso, demonstrar como elas são formas exclusivamente teóricas de
encarar problemas práticos.
Penso que uma das formulações mais adequadas
para caracterizar a crítica de Marx foi cunhada por György Lukács. Lukács
enxergou em Marx uma “crítica ontológica”. Ou seja, a crítica de Marx ao modo
de produção capitalista seria, ao mesmo tempo, uma crítica da vida real que
levamos sob esse modo de produção, mas também das representações que essa
sociedade faz de si mesma. E essas representações, ainda que falsas, podem ter
impactos reais. Por exemplo, quando um governo pensa que um determinado tipo de
política econômica aumentará os empregos e, na verdade, a política adotada
acaba com boa parte dos empregos desse país. Desconsiderar o impacto dessas
representações ‘não-reais’ na própria realidade, seria desconsiderar a própria
realidade específica (‘ontologia’) desse modo de vida. No entanto, a obra de
Lukács pressupunha de fundo uma intenção normativa. Não será desnecessário
lembrar que ele escreveu sua Ontologia do Ser Social justamente para
fundar uma Ética (se quisermos, uma Filosofia Prática) marxista. Haveria algo
de ‘trans-histórico’ pressuposto como ‘verdadeiro’ para criticar a ‘falsidade’
das ‘formas sociais especificamente capitalistas’. O ponto de vista da crítica,
como em qualquer outra teoria normativa, estaria ancorado fora do objeto de
análise e, nesse sentido, a ‘crítica ontológica’ pressuporia normatividade. De
outra parte, os seguidores das Novas Leituras de Marx e de Theodor Adorno
buscaram desenvolver uma noção de ‘crítica imanente’ em oposição às
perspectivas normativas. Deveríamos, segundo essa perspectiva, dar primazia à
vida do objetivo de análise sem pressuposições normativas ou trans-históricas
de antemão. De fato, isso guarda muitas semelhanças com a crítica da economia
política de Marx. Porém, Adorno pensava que essa crítica deveria em algum grau
ser justificada teoricamente. Nisso, recorreu a aspectos externos como à psicanálise
e à noção de sofrimento para justificar sua crítica. Haveria, desse ponto de
vista, certos sofrimentos que poderiam ser eliminados com a abolição do modo de
produção capitalista. O fato de que ele opunha justificação à fundamentação
normativa aqui não me interessa muito, pois isso é o que lhe levaria apelar
teoricamente para a noção de sofrimento que, em algum sentido, seria um
‘critério exterior’. Mas se chamarmos atenção para sua tentativa ‘imanente’ de
construção de crítica e preservarmos também aquele aspecto não-normativo da
noção de ‘crítica ontológica’, poderemos notar como estão intimamente ligados
em O Capital.
Penso que essas duas noções podem, em algum sentido, serem combinadas para esclarecermos o estatuto da crítica de Marx. O problema, no entanto, é que sempre queremos esclarecer teoricamente o estatuto de uma ‘crítica’, já estamos nos situando externamente ao texto e, se fosse assim, não nos diferenciaríamos em nada de Honneth. Meu objetivo tem sido, então, contrapor à objeção de Honneth, passagens do próprio texto de Marx onde conseguimos localizar com exatidão uma espécie de crítica direta à realidade do objeto criticado e as representações ‘não-reais’ que ele pode fazer de si mesmo (e nisso mostrar como ele está próximo à noção de ‘crítica ontológica’ de Lukács) e ressaltar, nessas mesmas passagens, que o ponto de vista de Marx não é externo (sublinhando uma aproximação à noção de ‘crítica imanente’). O que não se pode fazer é classificá-la definitivamente como ou ‘imanente’ ou ‘ontológica’. A dificuldade, enfim, reside no fato de que o próprio Marx não esclareceu e nem se preocupou em esclarecer o estatuto de sua própria crítica. Por essa razão, sempre que tentarmos esclarecer o estatuto mesmo dessa crítica estaremos na contramão de Marx, isto é, vamos encarar a realidade modo teórico. A crítica de Marx era, sobretudo, prática. Talvez seja por isso que ele não fez nenhuma Filosofia Política, mas participou ativamente na construção de movimentos civis e políticos de intervenção na realidade; talvez seja por isso também que não quis elaborar uma Ética, mas enfrentou as concepções éticas que circulavam nos conflitos sociais como formas de consciência que muitas vezes mistificam a verdadeira causa de porque o capitalismo nos empobrece e reduz nossa vida à venda de força de trabalho para a acumulação de capital nos mercados.
AC – Camarada, no seu mestrado, você pesquisou sobre os “fundamentos” da Ética de György Lukács, intitulado “Contribuição ao estudo da Ética em Lukács” (2019). Você pensa que a noção da ética no autor húngaro tem a ver com uma crítica às noções utilitaristas e normativas existentes? Qual seria a posição central de Lukács nessa questão, visto que não chegou a sequer escrever sistematicamente sobre?
FT
– Creio
que Lukács buscou um meio termo entre concepções utilitaristas e deontológicas
de Ética. Ele deixa isso um pouco explicito em algumas das reflexões mais
gerais que faz sobre a Ética em seu texto dedicado à “A Responsabilidade Social
do Filósofo”. Um juízo moral adequado, nesse sentido, teria que valorizar tanto
as consequências da ação, quanto a intenção. A dificuldade aqui para Lukács
sempre foi a de evitar encarar a moralidade do ponto de vista do indivíduo. No
entanto, mesmo em sua Ontologia do Ser Social ele tem de fazer
concessões ao fato de que nossas ações são, em algum sentido, individuais. A
noção de teleologia das ações por ele reivindicada está amarrada com sua ideia
de que a realidade social é uma ‘causalidade posta’. Ou seja, ela é animada
pelas ações intencionadas de indivíduos singulares, mas isso não a impede de
adquirir uma existência expressa em termos causais independente-da-mente. Dessa
forma, a dificuldade que perpassa todo seu argumento lhe faz cair, a meu juízo,
num ponto de vista do indivíduo. Indivíduo esse que tem que descobrir os
processos de causalidade social e conhecê-los corretamente (lembre-se que
Lukács defende um realismo direto) para fazer valer corretamente a marca de sua
vontade na realidade. Para quem queria escapar de alternativas
‘individualistas’, esse parece ser um sério problema. Por outro lado, é
evidente que isso reforça o fato de que a Ontologia era um prelúdio para
escrever uma Ética. Tarefa inacabada a qual Lukács se dedicou na última fase de
sua vida. Mas isso não lhe impediu de ter certo sucesso nessa empreitada.
Pois nesse sentido, a tentativa de Lukács,
embora crítica do consequencialismo e da deontologia, é eminentemente
normativa. Isso mostra que ele conseguiu delinear o que queria: uma fonte
ontológica para a normatividade. Que esta esteja ancorada na base de uma
‘ontologia social’ não lhe compromete a ter de rejeitar a existência de
valores, mas antes lhe permite mostrar que os fatos sociais não são meramente
‘fatos’, mas carregam em sua ‘causalidade’ os valores intencionados que lhes
constituíram. Ao menos foi essa a sua tentativa
na Ontologia do Ser Social: estabelecer as bases ontológicas da vida e
do pensamento humano para que fosse possível encontrar uma base social capaz de
informar juízos morais objetivos sobre o que devemos fazer. Por essa razão, poderíamos
descrever que a posição central de Lukács na ontologia era, ainda que ele não
expressasse desse modo, a de construção de uma fundamentação normativa
diferente para nossos juízos morais. A fonte da normatividade estaria ancorada
numa espécie de metafísica social na qual não há uma dicotomia entre fatos e
valores. Como a ‘causalidade posta’ que constitui a realidade social é já uma
externalização do conjunto movido das ações humanas, o ‘estatuto causal’ desses
fatos é por si só ‘axiologico’.
Descobrir a forma verdadeira de correção dessa realidade social é a função do juízo moral. Por exemplo, a ‘causalidade posta’ da realidade social capitalista esconderia a forma verdadeira dessa realidade social. Qual seria a forma verdadeira? A vida genérica. Se a vida genérica é a forma verdadeira sobre como devemos viver ela é a fonte da correção de nossos juízos. Sua base existencial seria constituída por propriedades, relações, processos e fins ‘puramente sociais’. Na Ontologia, então, encontraríamos uma posição de fundo – algo análogo ao que os metaeticistas contemporâneos tem tentado fazer – sobre a natureza (o tipo de existência) dos valores e dos fatos morais. Para que depois, na Ética, fosse possível erguer um edifício teórico normativo com base na especificidade moral dos fatos sociais. Para essa sua bela tentativa, Lukács reivindicou a obra de Marx como justificativa teórica. No entanto, uma “ontologia social” ou uma “metafísica social” desse tipo talvez fosse justamente tudo o que Marx sempre quis evitar.
AC – Em seu doutorado, sua linha de pesquisa gira em torno se é de fato possível pensar uma “ontologia social” no pensamento de Marx. Parece-nos ser uma polêmica voltada ao próprio Lukács. Poderia expor um pouco o centro nevrálgico de sua tese que está sendo trabalhada e seus pressupostos gerais?
FT
– Sim,
uma das questões fundamentais sobre as quais estou pesquisando é essa. Porém,
como o problema que atormentava Lukács em esclarecer os “princípios ontológicos
fundamentais de Marx” e, a partir disso, encontrar as categorias objetivas que
estruturam o ser social em geral estava subordinado ao seu desejo de escrever
uma Ética ou uma Filosofia Prática marxista, também me pergunto se é possível
uma Filosofia Prática marxista. Importante mencionar que, fora do âmbito
marxista, essa tem sido uma questão recorrente em toda discussão de ‘ontologia
social’ propriamente dita. Os filósofos que se dedicam a essa área procuram
formas de explicar o que são os objetos sociais (dinheiro,
parques, estacionamentos, jardins, Estados etc.). Muitos deles tem achado esse
tipo de análise atrativo para fornecer uma descrição do tipo de existência de
fatos morais, políticos ou, ainda, jurídicos. Penso que em Marx encontramos uma
crítica à ontologia social de forma generalizada.
Desse modo, a primeira coisa que fiz foi
empreender uma análise comparativa entre alguns capítulos da Ontologia
com O Capital. Nesse sentido, notei (e isso não sabia antes) que Lukács
vai muito além de Marx e comete certos exageros metafísicos em sua
interpretação. A solução que busco fornecer é a de que em Marx encontramos uma
“ontologia histórica das formas sociais”. Claro que tenho noção do problema
dessa afirmação. Em Marx não encontramos uma análise exaustiva das “formas de
ser” de outras sociedades que não sejam a capitalista. Mas ele diz a uma certa
altura da Introdução de 1857 (e aqui devemos ser cautelosos, pois ele não quis
publicar esse texto para não antecipar resultados metodológicos) que ali havia
encontrado a ‘forma da ciência’. Já em uma carta a Kugelmann de 1868 (um ano
após a publicação da primeira edição de O Capital) Marx critica posições
que querem encontrar a “ciência antes da própria ciência ser feita”. Com isso,
penso que estava se referindo a metodologias de investigação prévias à análise
do objeto, mas também a tentativas de esclarecer ‘princípios ontológicos
fundamentais’ em abstrato. Contra esses fatos, busco em minha tese esclarecer –
sempre recorrendo a exemplos para mostrar que o discurso de Marx é válido para
um objeto singular e carece de generalização – três pontos decisivos que
constituem uma “Crítica de Marx à Ontologia Social”: (a) uma crítica aos
universais, mas não só isso, pois trata-se de uma própria crítica à querela dos
universais; (b) uma extração das determinações de reflexão
(identidade-diferença, forma-conteúdo etc.) a partir da própria singularidade
do objeto analisado e não uma metafísica das determinações de reflexão aplicada
à análise da sociedade (nisso podemos diferenciar claramente a tentativa de
Marx de toda ‘ontologia social hegeliana’); e, por fim, (c) a ausência de uma
linguagem representativa sobre as relações sociais que são objeto de análise.
Isso posto, o centro de atenção de minha tese muda drasticamente de direção, pois passo a me perguntar, ainda em um debate com Lukács, quais são as implicações dessa “ontologia histórica das formas sociais” para os assuntos de Filosofia Prática e, especialmente, Filosofia Política. Nesse sentido, alguns desses pressupostos de Marx podem ajudar a isolar um outro implícito argumento de sua obra. Esse, por sua vez, não está presente só na sua crítica da economia política, mas atravessa todas as suas polêmicas e de Engels contra a ideologia alemã: a crítica a teorias normativas. Para Marx, teorias normativas necessariamente defrontam-se com aporias insolúveis: “como atender melhor as carências dos membros da sociedade: com mais estado ou menos estado? Uma economia boa deve ser mais industrial ou mais agrária? O que é mais justo: democracia direta ou democracia representativa? A melhor forma de reconhecer minorais excluídas em nossa sociedade é a representação delas no Estado ou a diminuição do Estado?” e assim por diante. Todas essas perguntas que acabam se encaminhando para fundar teorias normativas sobre a justiça, o reconhecimento e as carências, são – de acordo com essa “ontologia histórica das formas sociais” – formas de transformar ‘aporias práticas’ em ‘aporias teóricas’ e é só por essa razão que conseguem estabelecer critérios normativos antes de analisar a realidade. O ponto de Marx é que essas ‘aporias práticas’ devem ser encaradas conjunturalmente e sempre respeitando suas especificidades. Nesse sentido, minha tese busca sustentar que não há uma Filosofia Política em Marx. A melhor forma que Marx pode nos auxiliar para pensar sobre esses ‘problemas especificamente políticos’ é através de análises conjunturais ou, se quisermos, diagnósticos de época. Grosso modo, do modo como vejo, não há nenhum humanismo pressuposto na obra de Marx.
AC – Seguindo o mote anterior, parece que a questão gira em torno de que se falar sobre produção, distribuição, troca e consumo genericamente, era o que Marx censurava à Economia Política clássica, pois isso não explica como a sociedade capitalista se estrutura em sua especificidade. Em outras palavras, o termo “ontologia” não explica o problema, mas apenas o aponta? E como relaciona seu entendimento da noção de “ontologia” dentro da filosofia de Lukács?
FT
– A
obra de Lukács é muito interessante e toca em problemas decisivos. O fato de
que ele chama atenção para assuntos ontológicos contribuiu para que muitos
outros pudessem ter uma interpretação mais acurada de Marx do que aquela
proposta pela tradição da ‘diamat’. No entanto, por querer buscar em Marx
‘princípios ontológicos fundamentais’, Lukács assumiu compromissos com a ideia de
que o marxismo é uma espécie de visão de mundo. Isso de forma alguma tira o
brilho de sua obra (que é muito mais longa que a derradeira Ontologia e
mesmo esta obra é monumental). Porém, essa visão é extremamente criticável. Não
só por reivindicar Marx e, nesse sentido, cometer um exagero metafísico, mas
porque pode tirar da crítica de Marx à economia política toda sua potência. Também
sabemos que visões genéricas de mundo fundadas na tal da ‘diamat’ (repito que
isso não está em Lukács, mas de alguma forma ele se aproxima
disso com seus ‘princípios ontológicos fundamentais’) serviram para justificar
a burocracia estatal stalinista que disfarçava uma grande máquina de
assassinato, perseguição e fome. Por fim, penso que uma concepção ontológica
geral muitas vezes contribui para reforçar o conservadorismo de nossas posições,
ao invés de nos fazer enfrentar os problemas de formas não doutrinárias.
Vou me permitir uma palavra um pouco mais livre
sobre isso. Há algo de muito interessante no período de formação e de
autoesclarecimento de Marx que penso ser de uma importância decisiva para
entender sua crítica da economia política e que pouco ouvi e li em comentários
sobre isso. Pretendo desenvolver essa ideia em minha tese e ela é uma das
maiores razões da crítica aos “princípios ontológicos fundamentais” de Lukács.
Posso ilustrar isso da seguinte maneira: Marx não nos fornece metateoria
alguma. Ao contrário, se prestarmos atenção em suas polêmicas contra os jovens
hegelianos em A Sagrada Família e em A Ideologia Alemã, ou mesmo
em algumas passagens dos seus textos de 1844 encontramos uma clara rejeição da
necessidade de fundamentação teórica. Se quisermos, trata-se de um abandono de
doutrinas ou de ‘princípios ontológicos fundamentais’. Marx estava interessado
em atacar os problemas em sua ‘imanência’ ou, para usar a terminologia de um
filósofo do direito contemporâneo, do ‘ponto de vista interno’. Foi assim que
ele tentou encarar a economia política desde 1844 e essa foi uma das tarefas a
qual ele dedicou todo o resto de sua vida. No Prefácio de 1859, Marx diz
que, por volta daquela época, já tinha se esclarecido sobre o fato de que é nas
relações sociais atuais através das quais as condições materiais de vida
contemporânea se expressam que a fonte dos problemas tem de ser analisada. Como
se sabe, relações sociais como o dinheiro e as formas do capital (mais valor
absoluto, relativo etc.) são problemas eminentemente práticos. Constatar isso
nos remonta a uma passagem dos Manuscritos de 1844, na qual ele escreve algo
mais ou menos do seguinte tipo: materialismo e idealismo, objetivismo e
subjetivismo etc. são formas filosóficas e, tal qual essas, só podem atacar os
problemas práticos de um ponto de vista teórico. Ou seja, a filosofia
transforma problemas práticos em problemas teóricos. Marx enxerga aqui essa
transformação como um problema. É dizer, discutir o estatuto da
teoria é uma ideia que não desperta simpatia alguma em Marx. Mais adiante, numa
das Teses contra Feuerbach (publicadas por Engels muito tempo depois), Marx
esclareceu para si mesmo o seguinte: ninguém prova a verdade teoricamente. A
questão de saber se nosso pensamento é verdadeiro não é uma questão
representacional, mas ela mesma é uma questão prática.
Muitos viram nesse último texto – que não tinha intenção alguma de ser publicado – não um autoesclarecimento, mas a fundação de uma doutrina filosófica geral ou, se quisermos, a elaboração de ‘princípios ontológicos fundamentais’. O fato é que o texto estava criticando uma espécie de materialismo que se quer apresentar como uma doutrina filosófica geral. E isso, Marx diz mais tarde no Prefácio de 1859, foi o ponto de virada para perceber que relações sociais não se explicam i) em si mesmas; e nem ii) pela evolução do espírito humano. Se quisermos, não se explicam pela evolução do ‘ser social’. A análise das relações sociais como expressão prática de condições materiais de vida historicamente específicas é carente de qualquer fundamentação teórica geral. Esse foi o mote da crítica de Marx a Feuerbach tanto em 1844 quanto naquelas Teses. Nesse sentido, Marx está muito mais próximo de Wittgenstein do que da adoção de ‘princípios ontológicos fundamentais’. Isso porque não está preocupado com discussões de princípio, de fundamentação ou, para usar novamente um de seus modos de falar, ‘em fazer ciência antes da ciência’. Está preocupado em explicar relações sociais práticas e reais. Pelo menos é como tenho entendido.
AC – Para finalizar, a crise do capitalismo sem precedentes também revela uma crise da esquerda e sua inoperância organizativa. Aquilo que o historiador espanhol Fernando Claudín chamou de “crise do movimento comunista”, teria muito a ver com a burocratização das lutas sociais, como também, seguindo o jurista marxista Bernard Edelman, em que a luta de classes “foi legalizada” pela burguesia e sua dominação. Ainda que breve, você acha – na esteira de José Paulo Netto – que o “déficit” da esquerda seja “organizacional”? Qual diagnóstico do momento atual em sua observação dos desafios históricos dos trabalhadores?
Talvez minhas
opiniões sobre esse assunto devam ser bastante relativizadas. Há muita gente
que faz um trabalho muito nobre e louvável de militância, organização e
estruturação de atividades há mais tempo e com mais experiência. Certamente
saberiam da realidade dos movimentos de esquerda muito mais do que uma opinião
praticamente externa como a minha. Mas tendo a concordar que por muito tempo
houve um ‘déficit organizacional’ na esquerda revolucionária. Pode ser que essa
ainda seja uma realidade brasileira, mas há muitos fatos que contradizem essa
posição segundo a qual haveria um ‘déficit organizacional’. Recentemente li o
livro de Bhaskar Sunkara, “O Manifesto Socialista”, e é impressionante, por
exemplo, a capacidade de organização de movimentos socialistas nos Estados
Unidos. Além disso, desde a crise de 2008, o mundo experimentou uma nova onda
de manifestações populares que abandonou o ‘clima ideológico’ do pós-1989. Marx
subiu à cena novamente e novos sujeitos políticos de toda sorte tem se
organizado de forma revolucionária em muitos países. A Primavera Árabe, os
movimentos do Occupy Wall Street, junho de 2013 no Brasil, as conquistas muito
recentes do povo chileno, os movimentos civis no Peru e no Paraguai etc. são um
exemplo disso. Dessa forma, há uma recuperação organizacional no campo da
esquerda revolucionária um pouco por toda parte. Claro que socialismo não se
constrói do dia para noite e, mais do que isso, não é feito somente por
‘socialistas’. Se bem entendi algo da obra de Marx, os socialistas se organizam
para atuar em revoluções quando elas acontecem, como foi em 1848 na Europa de
modo geral e 1871 na França. Dessa perspectiva, houve no ‘clima ideológico’ do pós-1989
um claro ‘déficit de organização’ na esquerda revolucionária. Pois foi uma
época na qual não vimos grandes revoluções. Mas as experiências de ‘governos de
esquerda’, sejam eles neoliberais humanistas ou partes de uma social-democracia
fraca, nos anos que se seguiram, não foram de modo algum expressões de um ‘déficit
de organização’ da ‘esquerda revolucionária’. Foram organizações muito bem
estruturadas de tentativas para administrar e atualizar o capitalismo. À título
de ilustração, não podemos pensar que a experiência do Partido dos
Trabalhadores no Brasil cometeu ‘erros’. Ela foi um projeto. Nesse sentido, também
foi um projeto de silenciamento das próprias forças populares e movimentos
civis que apoiavam conjunturalmente esse partido, mas que sempre procuraram se
manter, de uma forma ou de outra, organizadas.
Bhaskar Sunkara utiliza a analogia que Rosa Luxemburgo fez com o ‘trabalho de Sísifo” ao falar dos sindicatos alemães de sua época para fornecer uma imagem do apoio que os movimentos socialistas deram à social-democracia durante o Século XX. Tudo se passa como se – para empregar um jargão muito engraçado dos representantes dessas vertentes – houvesse ‘avanços civilizatórios’ durante um certo período. ‘Avanços’ que ocorreriam com a ‘esquerda no poder’. Mas esses ‘avanços’ encontram um limite e começam a descer o morro novamente e, nisso, os movimentos socialistas, populares e civis da classe trabalhadora que os apoiaram descem a ladeira junto. O trabalho de Sísifo se repete de modo infinito. Só que cada vez que você desce e precisa reconstruir o trabalho do zero, o projeto de reconstrução fica ‘menos radical’. De tal maneira que hoje muitos socialistas apoiam projetos totalmente neoliberais, como o do PT, por exemplo, mas que defendem um mínimo de intervenção estatal na distribuição de renda. Por vezes, há uma certa ilusão de que esse partido seria reformista, social-democrata ou qualquer coisa do gênero. Há ainda quem ache que apoiar esse partido é decisivo na luta de classes para uma perspectiva revolucionária. Não concordo com essas posições, penso que esse ‘trabalho de Sísifo’ nos levou a uma determinada condição em que as alternativas políticas dominantes se dividem entre ‘neoliberalismo autoritário’ e ‘neoliberalismo com rosto humano’. Dessa forma, a representação socialista na política está totalmente descartada e fora de questão. Paradoxalmente, o socialismo volta a ser uma questão para aqueles que estão fora da política institucional: os trabalhadores. É isso que vimos, no Brasil, a partir de 2013. Talvez o desafio histórico mais urgente das forças populares e movimentos civis brasileiros seja abandonar qualquer tipo de esperança com o ‘neoliberalismo com rosto humano’. Ele não é ‘menos pior’. É curioso, para dar apenas um exemplo, que na época em que o capitalismo dispensa uma grande parte da força de trabalho e consegue empregar meios automatizados de reprodução de mais-valor, o establishment de esquerda esteja mais preocupado em como distribuir renda universal para a suposta sociedade do ‘trabalho imaterial’ do que em ouvir e dar vazão a demandas por redução da jornada de trabalho ou em criar impostos sobre grandes fortunas.
Agradecemos ao professor e pesquisador Felipe Taufer pela gentil entreivista para est plataforma de crític e reflexão!