Lucas Parreira Álvares é doutorando em Antropologia Cultural pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia (PPGSA) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Desenvolve investigações teóricas com foco nos aspectos etnológicos da obra de Karl Marx e pesquisas etnográficas entre pactários com o Diabo no médio São Francisco e promesseiros a Deus nas cidades margens do Rio das Mortes, articulando relações econômicas e dinâmicas de parentesco.
Acervo
Crítico – Para principiar nossa entrevista, fale um pouco como chegou ao
marxismo e sua maturação intelectual...
Lucas Parreira
Álvares – Cresci no interior de Minas Gerais acompanhando meus
pais enquanto trabalhadores de uma Indústria local. Como técnica em química,
minha mãe trabalhou no laboratório industrial por aproximadamente 15 anos; já
meu pai literalmente construiu a empresa: como pedreiro, fez parte da equipe
responsável pela edificação da indústria e desde então foi efetivado, onde
trabalhou por mais de 30 anos até se aposentar. Desde muito cedo pude perceber
algumas contradições nas quais meus pais estavam inseridos. Jornada de 16 horas
diárias era comum a meu pai, e ele conta que em um momento específico chegou a
trabalhar 40 horas ininterruptas; além do também denso trabalho de minha mãe, o
que me marcou bastante em sua trajetória foi seu último ato, quando foi
demitida ao confrontar - com a devida razão - o seu superior. À época eu ainda
não tinha consciência de como essas questões contribuíram para minha formação
pessoal, mas hoje consigo dar algum sentido mais coeso a tais lembranças.
Quando me mudei para BH aos 17 anos e me inseri em espaços de partidos e
movimentos sociais, notei que intuitivamente eu já estava influenciado pela
tradição marxista, embora esta não fosse uma percepção consciente. Fazendo a
devida menção ao revolucionário moçambicano Samora Machel, e a despeito das
distinções, foi como se eu tivesse lido Marx pela segunda vez.
AC – No
mestrado, sua dissertação defendida é intitulada “Flechas e Martelos: Marx e Engels como leitores de Lewis Morgan”.
Qual foi o problema central e a contribuição do marxismo para a (crítica da)
antropologia?
LPA
- Nos cursos introdutórios do conhecimento antropológico, o período histórico
crucial onde a Antropologia adquire seus contornos enquanto um campo
disciplinar distinto, a saber, a segunda metade do século XIX, normalmente é
apresentado de uma maneira bastante displicente. Frente às transformações nos
meios de vida do mundo pan-europeu, Marx e Engels são personagens incontornáveis
nos campos da Economia, Filosofia, Sociologia e até mesmo da Ciência Política.
Já na Antropologia, quando citados, aparecem como teóricos indissociáveis de
Lewis Henry Morgan, um pensador evolucionista tido como o “pai da Antropologia
estadunidense”. Lembro que nas aulas introdutórias de Antropologia um professor
certa vez falou algo como: “tá vendo? Isso aqui é Morgan, um pensador
evolucionista que atraiu Marx e Engels. Daí veio o marxismo!”, e obviamente,
nada mais simplório e equivocado que isso. No entanto, a justificativa para
essa aproximação se baseia numa trama mal contada entre esses três personagens.
De maneira cronológica, eu resumiria brevemente da seguinte forma: Lewis Morgan
publica sua obra Ancient Society
[Sociedade Antiga] no ano de 1877; após receber uma edição da obra de Morgan
emprestada pelo seu amigo Maksim Kovalevsky, Karl Marx faz uma série de
transcrições e comentários à obra de Morgan; após a morte de Marx em 1883,
Friedrich Engels encontra esses “fichamentos” de Marx e supõe que o
revolucionário alemão tinha o interesse em divulgar os resultados de Lewis
Morgan. Em razão disso, Engels publica A
Origem da família, da propriedade privada e do Estado como um “testamento”
a Marx. O meu problema na dissertação de mestrado, portanto, foi identificar as
distinções existentes entre as leituras que Marx e Engels fizeram de Lewis
Morgan. Através de uma investigação minuciosa dos textos de Morgan, Marx e
Engels, que conformam esta “trama”, descobri que a exposição de Engels em A origem, embora trata-se de uma obra
importante, não é definitivamente fiel à leitura que Marx havia feito de
Morgan. Em grandes traços eu diria que ao passo que Engels aderiu aos
resultados de Morgan, Marx foi crítico a suas assertivas, enfatizando ainda
mais a posição de que Marx não é um adepto ao evolucionismo, mas antes, um
crítico irredutível. Minha dissertação Flechas
e Martelos demonstra isso com precisão, mas nada substitui uma leitura
atenciosa dos chamados Cadernos
Etnológicos de Marx, onde seus “fichamentos” podem ser facilmente cotejados
com a obra original de Morgan.
AC – Lucas,
segundo sua dedicada investigação, aquilo que foi designado como os Cadernos Etnológicos de Marx só contém
cerca de metade dos materiais marxianos escritos à época. Qual foi a origem,
pretexto e consequência dessa seleção e designação?
LPA
- Tenho insistido em dizer que Marx não escreveu “Cadernos Etnológicos”, o que não significa que o conteúdo do livro
publicado sob este nome não tenha sido um escrito de Marx. A rigor, ele é o autor.
No entanto, é necessário dizer que todos os editores das obras do Marx, em
maior ou menor instância, intervieram em seus escritos. Os chamados Cadernos Etnológicos constituem um
exemplo clássico. O modo como essa obra foi organizada pelo antropólogo Lawrence
Krader e publicada em 1972, faz parecer que Marx tinha um interesse específico
pela etnologia que fosse desvinculado de suas investigações centrais. Isso pois
Krader selecionou os fichamentos de Marx de quatro escritos que dialogam com o
que hoje entendemos por etnologia (são eles: Sir John Lubbock – The origin of civilization, 1870; Sir
Henry Sumner Maine – Lectures on the
early history of institutions, 1875; Sir John Budd Phear – The Aryan village in India and Ceylon,
1880; e por fim, Lewis Henry Morgan – Ancient
Society, 1877). Mas na mesma época e dentre outras investigações, Marx fez
intensas pesquisas sobre o Direito antigo, e nada poderia impedir um editor de
publicar os Cadernos Jurídicos de
Marx. Essa é uma questão delicada, pois pode parecer que estou me opondo à
publicação de um material inédito, e obviamente não se trata disso - até mesmo
porque me utilizo desse material para minhas investigações. Contudo, minha
objeção a essa atividade se inicia quando Lawrence Krader afirma que Marx
pretendia desenvolver um “tratado de etnologia”, sendo que não há nenhuma
evidência concreta disso. Essa postura é tão recorrente que o editor dos Cadernos Matemáticos de Marx afirmou que
o revolucionário pretendia desenvolver um “tratado de matemática”. É como se
reivindicassem um Marx adequado a cada um de seus campos disciplinares, e essa
me parece uma consequência nefasta aos propósitos de Marx em fundamentar, com a
maior quantidade de evidências possíveis, sua crítica à economia política. A
despeito do desejo de Krader, Marx nunca foi um etnólogo. Essa minha posição
não anula o trabalho editorial de Lawrence Krader, afinal, ele antecipou em 50
anos - a contar - a publicação de um material inédito de Marx que ainda não foi
publicado pela MEGA². Mas se há algo de interessante nessa história toda foi
sua origem: a sugestão a Lawrence Krader para editar esse material foi dada
pelo importante filósofo Karl Korsch, a quem ainda devemos muito. Korsh leu em
russo alguns fragmentos do fichamento de Marx a Morgan, e sugeriu que Krader
seria o perfil de intelectual adequado para trabalhar o material original. De
toda forma, a MEGA² vem preparando um número específico para os escritos de
Marx sobre sociedades não ocidentais, gênero e propriedade da terra. As
investigações mais detidas demonstram que o que foi publicado como Cadernos Etnológicos contém
aproximadamente metade dos escritos de Marx sobre esses temas. Em breve o
conteúdo dos chamados Cadernos
Etnológicos irá se dissolver em meio a uma grande coleção que terá notas
sobre o escravismo romano, finanças egípcias, sobre moradores de cavernas da
Grâ-Bretanha, sobre diversas sociedades tribais, entre outros temas ainda
inéditos para os “marxistas das margens”, que de certo modo ficam desalojados
frente ao acesso às fontes primárias.
AC - É
possível destacar em sua obra a sinalização de que é preciso uma nova
interpretação “em relação à forma pelo qual ele [Lewis Morgan] foi investigado
pela antropologia tradicional”. Aparentemente, essa exigência perpassa pelo
modo como se tentou acertar e degradar o marxismo através do acinte à obra de
Morgan. É necessário, dessa feita, fazer uma recuperação justa da obra de
Morgan?
LPA
- Morgan deve ser severamente criticado, mas para isso precisa antes ser lido.
Numa aula de pós-graduação de Antropologia fui taxado como “morganiano” ainda
que eu tenha escrito 231 páginas inteiramente criticando Morgan. Mas para
alguns colegas eu havia cometido o crime inafiançável de “levar Morgan a
sério”. Quanto a essa acusação, admito ser um réu confesso. Alguns antropólogos
brasileiros como Mauro W. B. Almeida, Márcio Silva e Piero Leirner
aparentemente também cometeram esse crime, pois recentemente fizeram leituras importantes
e rigorosas da Morgan. Este intelectual tem responsabilidade por algumas
adjetivações clássicas da Antropologia: foi o primeiro a colocar o parentesco
sob a órbita desse conhecimento disciplinar e também criou uma linguagem que
passou a ser recorrente nesse ambiente. Sem falar que já em 1851, quando
publicou Liga dos Iroqueses, ele
deixou explícito até mesmo na capa de seu livro que aquela obra havia sido
produzida em estreita colaboração com Ely Parker, importante indígena iroquês
que foi seu principal informante. Morgan não foi um “antropólogo de gabinete”,
termo pejorativo utilizado para designar antropólogos que nunca foram a campo.
Ao contrário, passou temporadas junto aos iroqueses, e perdeu duas filhas
enquanto estava entre os indígenas. Frequentemente Morgan é criticado por ter
feito uso do termo “cultura humana”, no singular, para designar certa unidade
entre os mais diversos povos. Mas é fundamental perceber que até poucos anos
antes de suas formulações, indígenas sequer eram concebidos como humanos, e
essa concepção não é apenas um eco do passado, pois o atual presidente
brasileiro afirmou recentemente que “cada vez mais o índio é um ser humano
igual a nós”. De certa forma, as formulações de Lewis Morgan, ainda na segunda
metade do século XIX, são mais sofisticadas que as de Bolsonaro no século
XXI... Na transição da década de 50 para a de 60 do século XX, alguns
antropólogos estadunidenses como Julian Steward e Elman Service, tentaram
reabilitar Morgan com alguma pitada de marxismo, mas acredito que o caminho
deva ser o inverso disso: distanciar Marx de Morgan. Isso, pois embora Morgan
seja um autor materialista, e um entusiasta da história, ele não pode ser
concebido como um adepto à “concepção materialista da história” elaborada por Karl
Marx. Sua divisão dos períodos étnicos - “selvageria, barbárie e civilização” -
baseia-se principalmente no “o que” é produzido, e para Marx, as distinções das
formas sociais econômicas, não evolutivamente como Morgan fez, deve se basear
no “como se produz” e “com que meios de trabalho”. Essa é uma formulação d’O Capital que ainda julgo bastante
producente, pois Marx não tratou os iroqueses como “povos sem história” - por
mais que vertentes do marxismo reproduzam esses arquétipos até hoje.
AC – Você acha
plausível a ideia de uma “antropologia marxista”? E mais ainda: poderia trazer
alguns elementos gerais de sua percepção acerca de debates atuais no âmbito?
LPA
- Tenho insistido que “antropologia marxista” é um oxímoro. Antropologia e o
marxismo são frutos de um mesmo tempo histórico, no entanto nascem com
interesses absolutamente divergentes: ao passo que a primeira se origina sob a
forma de uma reprodução da ordem capitalista, o segundo nasce como uma reação a
essa ordem. As primeiras investigações etnográficas das linhagens francesas e
inglesas – como bem aponta a tese de Gerárd Leclerc sob orientação de Georges
Balandier – foram desenvolvidas por administradores coloniais ou por
funcionários imperiais. Além disso, até mesmo nas primeiras décadas do século
XX algumas das principais monografias etnográficas foram financiadas por órgãos
que reproduziam os interesses coloniais. Antropólogos sérios como Raymond Firth
e Adam Kuper tentaram relativizar, cada qual a seu modo, os vínculos entre a
linhagem da Antropologia britânica e o colonialismo. Um dos argumentos de
Firth, por exemplo, é que muitos desses etnógrafos que estavam a serviço da
administração colonial tinham consciência dos efeitos deletérios do
imperialismo e acreditavam que suas etnografias nas colônias poderiam produzir
um efeito reverso, a saber, as administrações coloniais repensarem seus atos
imperiais. É até incômodo acreditar que um antropólogo sério como Raymond Firth
tenha se deixado levar por uma concepção tão ingênua. A intenção do etnógrafo
colonial, Y, jamais poderia ser levada em conta se o interesse da metrópole era
X e se o produto de seu trabalho resultou em X. Enfim, além dessa distinção
originária entre a Antropologia e o marxismo, ressalto que falar de uma
“antropologia marxista” é algo que deve remeter também ao desenvolvimento das
ciências parcelares, onde há uma dissociação dos problemas sociais em relação
às questões econômicas, perdendo de vista a totalidade dos fenômenos sociais.
Em razão disso, como bem aponta Lukács n’A
Destruição da Razão, o modo de pensar dessas novas ciências sociais emergem
da dissolução da Economia Política e do Socialismo Utópico, campos estes que,
cada qual a seu modo, consistiam em teorias abrangentes da vida social. As
razões do incômodo que sinto com a expressão “antropologia marxista” poderiam
se valer também para outras associações, como “sociologia marxista” ou
“psicologia marxista”. Mesmo que resulte de um elemento que busque uma
delimitação para fins que nem sempre são prejudiciais, assumir a posição de um
“antropólogo marxista” incorre numa forma redutiva da amplitude investigativa e
mesmo dos complexos sociais. Portanto, embora eu seja marxista e antropólogo,
não me entendo como um “antropólogo marxista”, pois não penso o marxismo a partir
da ótica antropológica, e considero que esta não é apenas uma questão nomenclatura.
AC - É
possível afirmar que a apreciação de K. Marx acerca das formações sociais não
capitalistas possui um intento de demarcar pressupostos e estabelecer
comparações para a clarificação do que é próprio à sociedade capitalista ou
essas investidas marxianas engendraram um corpo de investigações autônomo?
LPA -
Esta é uma ótima pergunta, pois frente à incertezas dos intérpretes a respeito
dos anseios de Marx nos anos finais de sua vida, alguns acreditam que seu
interesse por formas sociais não capitalistas revelariam “um outro Marx”.
Minhas investigações caminham em sentido oposto: tais estudos de Marx confluem
com seu trabalho principal, que foi a crítica irredutível ao modo de produção
capitalista. Onde alocar tais investigações no interior de uma obra inacabada é
um exercício que a meu ver não é tão produtivo: “será que esses escritos
serviriam para o fatídico capítulo do tomo III de O Capital sobre as Classes Sociais?” “Será que Marx tinha o
interesse de produzir um capítulo específico sobre essas formas sociais?” Já
estive interessado por essa espécie de futurologia do passado, mas hoje
acredito que ela não me interessa, sobretudo pela ausência de evidências que
forneçam direcionamentos mais precisos. Talvez seja mais produtivo pensar como
esses estudos podem também contribuir para uma crítica à sociedade capitalista
do que imaginar onde Marx pretendia inseri-los em sua obra. Isso, sem qualquer
concepção romântica do movimento revolucionário, pois embora Marx tenha chegado
a identificar “tendências socialistas” em formas sociais não capitalistas (como
ele disse em uma carta a Engels em 1868) ele nunca enxergou tais formas de
sociedade como um modelo crítico ao capitalismo. Esse é um ponto bastante
sensível, mas quando tratou das comunas russas, por exemplo, uma forma social
na qual propriedade comum e privada de terras convergiam mutuamente, ele não
defendeu sua manutenção, mas sim, sugeriu que ela “poderia trocar de pele sem
precisar se suicidar”, ou seja, poderia regenerar em razão de sua ascendência
comunal através do comunismo.
AC –
Recentemente foi publicado em português – pelo Instituto Lukács – o livro
clássico da Eleanor Leacock, “Mitos da dominação masculina” (2019). Qual a
importância dessa publicação, no que se diz respeito às teses de Engels na Origem da família, da propriedade privada e
do Estado, em sua retomada? Esse livro é um contraponto, ainda que sumário,
à tese de um feminismo que veria um “essencialismo” na dominação masculina?
LPA
- Depois de 20 edições somente nos Estados Unidos, a principal obra da Eleanor
Leacock, originalmente publicada em 1981, finalmente foi traduzida para outro
idioma, e este foi o português. Em essência, o livro é constituído de uma
coleção de textos da autora que contrapõem algumas teses da antropologia, do
feminismo e do marxismo, e talvez por isso tenha sido relegada a um
esquecimento consciente. É curioso que o meio para a publicação de Mitos da Dominação Masculina no Brasil
tenha sido uma editora marxista, e não uma editora de antropologia ou de
estudos feministas. Isso talvez faça com que a obra tenha uma circulação
principalmente em meios marxistas, embora eu considere que ela deveria ser lida
também nestes outros domínios. De certa forma, Eleanor Leacock retoma algumas
das principais teses de Friedrich Engels em A
origem da família, da propriedade privada e do Estado, mesmo que reconheça
suas insuficiências em razão da pouca quantidade de fontes etnográficas à
época, em comparação ao tempo presente. Seu trabalho de campo entre os
montagnais-naskapi (Inuítes da região do Labrador, Canadá), vai ao encontro de
algumas teses de Engels, sobretudo quando ela identifica que o poder masculino
dessa sociabilidade foi alavancado ao momento em que os montagnais-naskapi
passaram a comercializar peles de animais com povos ocidentais. Isso pois os
ocidentais só aceitavam “fazer negócio” com os homens, e no interior da
comunidade isso provocou certa predominância masculina nas tomadas de decisões.
Em linhas gerais ela demonstra que neste caso a dominação masculina foi fruto
de um processo histórico dos montagnais-naskapi, e não algo natural. Assim,
embora a dominação masculina não seja um marcador exclusivo da sociedade
capitalista, nesta forma social ela é uma regra. Essa posição de Eleanor
Leacock contraria a tese de Simone de Beauvoir, por exemplo, de que a dominação
masculina é um dado generalizado na história, e talvez por isso as teses de
Leacock tenham tanta dificuldade em ressoar.
AC - Em
artigo recentemente publicado, você questiona convictamente a equiparação da
obra de Engels (A Situação da Classe
Trabalhadora na Inglaterra) à etnografia. Poderia explanar sobre o cerne
desse equívoco?
LPA -
Não sei se se trata de um equívoco, mas certamente é uma “robinsonada”, como
Marx se referia ironicamente a certas posições da economia política. Isso, pois
Robinson Crusoé, numa ilha deserta, reproduziu com Sexta-Feira, o nativo, as
relações de trabalho da Inglaterra. Intérpretes como Thomas C. Patterson, que
entende a obra A Situação da Classe
Trabalhadora na Inglaterra como um trabalho etnográfico, estão reproduzindo
as ciências parcelares do século XX numa época em que tais matizes não eram tão
evidentes. À época - início da década de 40 do século XIX - sequer a etnografia
era um modo de investigação alocado sob a órbita da Antropologia. É verdade que
Engels se valeu de sua experiência vivida entre os trabalhadores de Manchester
para produzir sua obra, mas os interesses do revolucionário prussiano são
antagônicos ao que se prezou a Antropologia no século XX. Meu argumento no
artigo “Engels, etnógrafo do capitalismo?” é que embora possam ser extraídos
elementos que aproximem a excelente obra A
Situação da Classe Trabalhadora na Inglaterra do que hoje é entendido por
“etnografia”, reduzir a investigação de Engels à um campo restrito é caminhar
no vetor oposto do que pretende o marxismo, a saber, apreender a totalidade dos
fenômenos sociais (e das mais diferentes formas, como fez Engels, a
propósito!), de modo que subsumir esta importante obra de Engels nos marcos
de um
campo de conhecimento
parece ser, antes de
qualquer outra coisa,
uma traição a seus próprios anseios. No fim de sua vida, Engels teve
certa admiração por Morgan e Bachofen, dois expoentes da etnologia nascente que
adquire seus contornos próprios na segunda metade do século XIX, mas ainda
assim chegou a dizer numa carta a Laura Lafargue em 1891, que “Não há ciência
em que o conchavo e a camaradagem sejam mais dominantes”, identificando, ainda
em seu tempo, certo autorreferenciamento deste campo disciplinar que ainda se
mantém. Uma pesquisa demonstrou que de todos os campos de conhecimento, a
Antropologia é aquele que menos faz menções e citações a trabalhos de
disciplinas que não a sua. Para um campo que se afirma crítico e aberto, eis
uma bela contradição. Enfim, os complexos sociais não se manifestam na
realidade em locais delimitados, e além disso, não existe um campo disciplinar
que seja exterior ao mundo.
AC – Você
recentemente publicou, nos últimos dois anos, sua “Crítica da razão
antropológica” (2018 e 2019) na revista Práxis Comunal (UFMG). Qual seria essa
“razão antropológica”?
LPA -
Trata-se da prévia de um material para uma pesquisa contínua. Nesse texto, que
foi dividido em dois artigos, me propus duas missões bastante ambiciosas: a
primeira, identificar os nexos que originaram historicamente uma espécie de
“razão antropológica”, isto é, que constituíram a Antropologia enquanto um
campo de conhecimento autônomo; e em seguida, pensar as bases, sob influência
da tradição marxista, para uma crítica a essa razão. Por isso ressaltei no
título que esse texto nada mais é que os fundamentos “para uma crítica à razão
antropológica”, ou seja, uma espécie de prospecção para uma futura análise mais
detida. Em linhas gerais eu diria que minha conclusão parcial vai no sentido de
entender que a razão antropológica está constituída por uma origem controversa
na qual esse campo de conhecimento foi incapaz de definir o seu objeto – tendo
essa tarefa sido desempenhada pelo imperialismo. A não definição própria de seu
objeto provocou, em consequência, uma relação absolutamente desigual entre
teoria, método e técnicas de pesquisa, na qual a etnografia, em determinado
momento, adquiriu uma importância maior do que a própria Antropologia em si,
provocando, a partir da transição da primeira para a segunda metade do Século
XX, uma inflexão epistemológica no
seio do pensamento antropológico. Esse movimento produziu a aparência de que a
Antropologia pode ser concebida como uma ciência autônoma, sendo que, mesmo no
interior de suas características, e historicamente, essa independência não se
sustente. A reação a essas minhas conclusões fora bastante dúbia, o que julgo
interessante. Isso pois através deste texto passei a ter contato com diversos
interlocutores do Brasil, de Moçambique e até mesmo da China. Por outro lado,
recebi algumas críticas, e nem sempre com tanta parcimônia! [Risos] Sem
dúvidas, a crítica mais densa e rigorosa que recebi foi a desempenhada pelos
meus amigos do grupo Máquina Crísica
(Alex Moraes, Juliana Mesomo e Tomáz Guzmán). Embora eu tenha algumas
discordâncias com certos pontos da crítica deles, a considero bastante
pertinente. Não apenas fizeram uma leitura bastante rigorosa de meu texto como
identificaram algumas contradições ali existentes. Uma pena que esse material
não foi publicizado, mas já adianto que não tenho nenhuma objeção que essa
crítica seja aberta. De toda forma, e não em razão das críticas, hoje eu
repensaria a publicação desse material, pois o considero incipiente para um
objetivo tão pretensioso. Talvez meu erro tenha sido confundir o limiar entre o
que é um material para pesquisa e o que deve ser publicado - embora, é claro,
eu não tenha discordâncias frente a meus argumentos principais dessa Crítica à razão Antropológica, e
acredito até que ela pode contestar algumas noções axiomáticas, sobretudo na
forma como a história do pensamento antropológica é transmitida aos alunos.
AC -
Mergulhando na problemática levantada pelos textos, como poderia ser definida e
explicada a “abdicação de ambição teórica” no campo da antropologia? É possível
constatar uma aniquilação da distinção entre “observação dos fatos” e
“conclusões”?
LPA
- Se não me engano, quando utilizei essa expressão num artigo eu estava citando
uma passagem do texto “Relativismo antropológico e objetividade etnográfica”,
do Mauro W. B. Almeida, com o qual tenho muita concordância. Em determinado
momento de sua exposição, Mauro identifica que a “etnografia” passou a ocupar um
lugar central no conhecimento antropológico - ele diz que uma “antropologia da
pobreza” parece algo demodé, ao passo
que uma “etnografia da pobreza” soa bem aos ouvidos - e tenho concordância com
ele. No fim das contas, Mauro identificou um momento fundamental na história do
pensamento antropológico que ocorreu nas décadas de 60 e 70 do XX, o que tenho
chamado de inflexão epistemológica da
Antropologia, onde o “o que” pesquisar cedeu lugar ao “como” pesquisar enquanto
elemento central da atividade antropológica, o que fez com que a etnografia
adquirisse um lugar de absoluto destaque neste campo disciplinar. Essa
conclusão que considero correta não é apenas do Mauro ou minha, mas de um
importante antropólogo interpretativo, Clifford Geertz, este nem um pouco suspeito
de tendências marxistas. A antiga “ciência das sociedades primitivas”, ao se
definir - ou se reduzir - à atividade etnográfica, se abdicou, em certo
momento, de sua ambição teórica. Mas eu diria que essa ambição teórica tem
retornado, mas não sob os vieses da década de 60 e 70 (estruturalismo,
pós-colonialismo e marxismo, algumas das influências mais proeminentes), mas
sim sob a égide do pós-estruturalismo e do pós-modernismo, campos que
atualmente dão as cartas na antropologia. A etnografia em si, uma estratégia de
investigação, não pode ser o problema, mas sim o que fazem dela. Ao mesmo tempo
que trabalhos etnográficos foram utilizados para justificar intervenções
coloniais no XIX, já nos séculos XX e XXI também foram e são fundamentais para
demarcação de terras de comunidades indígenas, políticas de assistência a
comunidades quilombolas, mensuração de impactos em atingidos por barragens,
entre outros. Eu anunciaria a necessidade urgente de uma terceira inflexão: já
não basta apenas o “o quê” pesquisar, tampouco o “como” pesquisar, se não
pensarmos também no “porquê” pesquisar. Não poderei explorar isso aqui
detidamente, mas tenho notado um certo estranhamento
antropológico da realidade, e talvez se pensarmos mais no “porquê”
pesquisar, e não apenas enquanto um ítem de justificativa de um projeto de
pesquisa, o produto de nossas investigações (não apenas antropológicas, é
claro) poderá ter uma importância maior para os problemas de nosso tempo.
AC –
Aproveite esse tema e comente um pouco sobre seu trabalho de campo, seu objeto
de pesquisa que está sendo realizado em seu doutorado....
LPA
- A despeito de alguns marxistas, sou um grande entusiasta do trabalho de
campo. Em toda minha trajetória desenvolvi pesquisas desse gênero, e não tenho
dúvidas de que esse contato com interlocutores, através dos apetites da
sensibilidade, foram fundamentais para minha formação. Minha proposta de tese é
essencialmente uma experimentação etnográfica de influência marxista na qual
comparo duas práticas distintas em contextos diferentes: o pacto com o Diabo na
região do médio São Francisco, noroeste de Minas Gerais; e a promessa a Deus
nas cidades margens do Rio das Mortes, centro-sul do mesmo estado. No interior
das relações privadas e cerimoniais, essas práticas aparentemente reproduzem
relações jurídicas e mercantis. O pacto com o Diabo, por exemplo, é
essencialmente um contrato entre duas partes; já a promessa necessariamente
incorre em uma dívida cujo credor é uma entidade divina. Mas essa acepção faz
parecer que a Economia e o Direito são inerentes ao ser social, o que não é
verdade. Ao contrário do que parece, são exatamente a Economia e o Direito que
reproduzem as relações de contrato e dívida, que historicamente antecederam
tanto as relações econômicas quanto as relações jurídicas. Bem, trata-se ainda
de formulações incipientes, e se existe algo de invariável nas pesquisas
etnográficas é a capacidade da relação do pesquisador com os interlocutores
modificar completamente os pressupostos e os rumos da investigação. Isso até
mesmo por uma razão tautológica: através de regimes de conhecimento diferentes,
há formas distintas de compreender o movimento do real. Dessa forma, em se
tratando de investigações que lidam imediatamente não com objetos, mas com gente, e com a forma como concebem sua
própria sociabilidade, o domínio sobre o resultado não está inteiramente nas
mãos do pesquisador. Ao contrário, a pesquisa que atualmente desenvolvo é
condicionada ao outro. Por isso não pesquiso “sobre” eles, mas “entre” e “com”
meus interlocutores. Mas se anunciei numa resposta anterior a necessidade do
“porquê” pesquisar, é importante que eu justifique as razões de minha pesquisa:
suspeito que essas práticas se modificam em função das transformações dos meios
de vida decorrentes da expansão do capitalismo em contextos rurais ou
provincianos, e compreender esse processo pode oferecer insumos de como o
capitalismo age também em práticas onde as contradições sociais não se
manifestam imediatamente, como no manusear uma máquina em linhas de montagem ou
no corte da cana do trabalho de bóias-frias. Desvendar essas mediações
capitalistas em ambientes onde elas não são aparentes é o que motiva minha
investigação.
AC – Para
encerrar, você está para publicar um livro, “As Serpentes de Marx”. Poderia explanar um pouco sobre as questões
motivadoras de seu livro?
LPA: Bem, a concepção do livro se originou a partir de uma recorrência que comecei a perceber, do uso de Marx, da metáfora da “troca de pele” das Serpentes. Desde seus textos de juventude na Gazeta Renana, até os escritos finais de sua vida, Marx se utilizou desse recurso estilístico. Comecei então a selecionar essas passagens na tentativa de identificar algum nexo entre elas. As apresentei em um seminário na UFMG em 2018, e naquele momento fui interpelado pela professora Lívia Cotrim de uma maneira bastante rígida. Com a devida razão, ela disse algo como: “bem, mais do que a metáfora em si, o que você deveria ter investigado é o que a metáfora quer dizer”. E vejam só que inocência de minha parte: acreditei que a mera identificação da recorrência do uso dessa metáfora por Marx já era suficiente! Esse material ficou parado por dois anos. Porém, diante do falecimento da professora Lívia em 2019 - a “destruidora de ilusões burguesas”, como suas filhas bem adjetivaram, uma perda absolutamente inestimável para o pensamento crítico brasileiro - retomei esse material e finalmente tentei entender o sentido que Marx pretendia dar ao fazer uso daquela metáfora. Descobri, por óbvio, que assim como as serpentes, as formas sociais também trocam de pele. Construí As Serpentes de Marx para ser um livro simples e acessível, e o interesse é enfatizar as transformações dos meios de vida, sobretudo aquelas que estiveram vinculadas ao processo de “acumulação originária do capital”, categoria que Marx comparou ao pecado original da mitologia judaica-cristã, no qual Adão e Eva são seduzidos pelo Diabo personificado, reparem, numa Serpente. A obra está prevista para publicação no fim de 2021 ou início de 2022, e será dedicada à memória de Lívia Cotrim.