Por Aparício Francisco Nhacole [1]
Imagem: Xiconhoca – O inimigo. Maputo: Departamento
do Trabalho Ideológico da FRELIMO, 1979[2].
publicado originalmente no site Máquina Crísica
data 22/03/21
A produção de conhecimento, no
caso particular da antropologia, passa por uma triangulação cautelosa que
começa na censura do tema do envolvimento colonial da disciplina. O que estou
tentando apontar aqui é a “imparcialidade” cega e cansativa, muito candente nos
antropólogos “liberalóides”, que gostam de ocultar a intensidade do
envolvimento da antropologia com o poder colonial. O saldo dessa escolha é a
entrega de análises supostamente profundas, mas sem um pingo de razão crítica e
que perdem de vista uma série de nuanças do debate.
Textos relacionados que podem interessar: Graeber, Viveiros de Castro e o necessário fim da política
antropológica; Antropologias da revolução: ou de como perder os acontecimentos; Lições impertinentes de etnografia com o professor Mao Tsé-Tung; O desafio de Marx à Razão antropológica; A eloquência da trivialidade; Os que não contam podem ter razão?
***
Introdução
“Agora, numa época em que os métodos e
objetivos da etnologia científica parecem terem-se delineado; em que um pessoal
adequadamente treinado para a pesquisa científica está começando a empreender
viagem às regiões selvagens para estudar seus habitantes, estes estão
desaparecendo ante nossos olhos em virtude da descolonização” (Bronislaw
Malinowski, abril de 1921 [2018], Prólogo a “Argonautas do Pacífico Ocidental”)
“O preço
da verdade” ou Dark Waters (2019) é um drama cinematográfico
centrado em dois momentos: a investigação e o julgamento de um crime. O filme
acompanha o trabalho de vinte anos de um advogado que leva às cortes de justiça
uma denúncia por danos ambientais causados por uma grande corporação chamada
Dupont. O enredo começa com o personagem principal sendo promovido a sócio de
um escritório de advocacia conhecida por defender gigantes do setor químico.
Porém, ao aceitar representar um fazendeiro indignado cujo terreno foi
contaminado pelo lixo tóxico da Dupont, o advogado rapidamente se transforma num
denunciante do crime, desmascarando a farsa por trás dos homens de negócios que
comandam a empresa – homens tidos como racionais e civilizados. A coragem com
que o advogado teve de bater de frente com os “lobistas”, procurando falar e
defender a verdade, mesmo sabendo do perigo profissional que corria, é um
elemento digno de nota nesse filme.
A ideia central do presente texto não é expor, julgar
e condenar a antropologia nos tribunais da ciência, muito menos apresentar o
quadro nebuloso da sua trajetória enquanto área de saber. Meu intuito, antes de
mais nada, é apresentar o complexo e profícuo debate académico que divide
opiniões quando se trata de definir a natureza e a intensidade da influência do
processo colonialista no crescimento e na maturação da antropologia. Mesmo não
tendo a pretensão de dar um veredito final, pretendo enfrentar a questão munido
da coragem de falar a verdade sobre certos momentos que constituem a história
da disciplina antropológica.
Entre os autores que costumam negar ou relativizar o
envolvimento colonial da antropologia, destacam-se Asad (1973), Kuper (1983),
Fischer (1983), Kuklick (1991), pela escola britânica clássica, e Leiris (1988)
Jamin (1982) e Clifford (1998: 179-226), pela escola francesa.
Na visão desses autores, o ofício antropológico, na
menor das hipóteses, soube lidar com a situação colonial, mesmo que seu auge,
em termos de visibilidade e reconhecimento intelectual, tenha coincidido com o
período de apogeu do processo colonialista. Pensadores como Victor Turner, por
exemplo, defendem que a disciplina antropológica demonstrou, diante das
condições nas colônias, fidelidade e imparcialidade académica enquanto área da
produção do conhecimento. Aliás, para este pensador, tomar a antropologia como
“filha” do colonialismo seria um alto equívoco, pois, pelo contrário, a
Antropologia teria desempenhado ações contrárias à agenda colonial. Segundo
ele, repetidas vezes os antropólogos teriam sido acusados pelos administradores
de “aceitar a perspectiva de seus informantes”, tornando-se seus porta-vozes, e
por suas palavras e obras impediam os esforços dos governadores distritais de
fazer um governo adequado dos povos colonizados. Alguns antropólogos teriam
sido até mesmo acusados pelos colonos e funcionários públicos europeus de serem
“vermelhos”, “socialistas” e “anarquistas” (Turner, 1978, apud Asad,
2017, p. 321). Portanto, poderíamos dizer que, do ponto de vista desta
abordagem, longe do colonialismo influenciar o pensamento antropológico, foi a
antropologia, na menor das hipóteses, quem teria influenciado o imperialismo
colonial, através do seu zelo científico que mostrava-se independente e, por
vezes, inclusive, contrário ao colonialismo.
Por outro lado, estão os que, como Frantz Fanon,
descartam a possibilidade de um escapatório que pudesse salvar a antropologia
da influencia colonial, tanto na sua génese quanto no seu processo de
amadurecimento. Basta o olhar de um leigo para dar-se conta que a antropologia
nasce como arte etnográfica para estudar o “outro”, o “selvagem”, o
“primitivo”, o “nativo”, o “indígena” (conceitos considerados, hoje,
etnocêntricos), enquanto a sociologia estudaria as sociedades ditas civilizadas
e organizadas. Jean Paul Sartre, em seu prefácio a Os Condenados da Terra (1961),
lembra-nos que a elite europeia dedicou-se a fabricar uma elite indígena que
servisse de intermediária na dominação colonialista. Para tanto,
“selecionaram-se adolescentes, marcaram-lhes na fronte, com ferro em brasa, os
princípios da cultura ocidental, introduziram-lhes na boca mordaças
sonoras, grandes palavras pastosas que se
colavam nos dentes. Depois de uma breve passagem pela metrópole, esses jovens
regressavam ao seu país falsificados” (Sartre, 1961, s/n). Não seria exagero
imaginar a contribuição do arcaboiço teórico antropológico na tarefa de fazer
com que os intelectuais nativos “amassem” a verdade da dominação, que “nas
colônias aparecia nua”, mas nas “metrópoles” faziam questão de vesti-la
(Sartre, 1961, s/n).
Seja qual for a posição a se escolher neste debate, o certo é que a antropologia emergiu e se estabeleceu como a ciência destinada a construir um saber sobre “outros homens”. Apesar de sua natureza fortemente empírica, que preza pela interação face-a-face e pela copresença entre pesquisador e pesquisados durante o trabalho de campo, a antropologia moderna foi marcada por uma série de estratégias de alienação teórica imperialista, mais óbvias em sua fase evolucionista, mas igualmente observáveis em suas vertentes funcionalista, culturalista e estruturalista.
O
envolvimento do colonialismo no desenvolvimento teórico da antropologia
“Se
não tivesse existido o colonialismo, talvez não houvesse sequer etnologia.
Seguindo as pisadas do colonizador, os etnólogos descobriram os valores
negligenciáveis para aqueles, mas essenciais para eles. Encontramo-nos, pois,
perante esta situação quase inverossímil: devemos o facto de existirmos a
aquele que foi o destruidor de tudo aquilo que nós damos valor” (Rui
Mateus Pereira, “Conhecer para dominar”, 2005)
Talvez a mais expressa e contundente colocação
elucidativa do envolvimento do colonialismo nos ditames antropológicos –
espécie de um certo “óbvio” no que se refere ao que eu chamo de “o pecado
epistemológico original da disciplina” – é da autoria do Coronel Sir Mathew
Nattan, militar britânico e administrador colonial, quem disse: “com as nações
ocorre o mesmo que com os indivíduos: Tout savoir, tout pardonner” (citado
em Kuper, 1978, p. 125). Traduzida ao português, esta frase significa “saber
tudo, perdoar tudo” e foi pronunciada numa comissão expositiva sob a égide da
British Association em 1914, com objectivo de promover a importância da
pesquisa antropológica na África do Sul. Sir Mathew, na sua
apresentação, enfatizava que se os estudos antropológicos fossem colocados na
agenda política, “prestariam assistência na solução dos onipresentes problemas
coloniais”: “sempre achei e penso ter dito algumas vezes, que quanto mais
encararmos o nativo da África do Sul como um problema científico, menos
sentiremos que ele representa um perigo social”, terminava com guisa apelativa
o Coronel Mathew (citado em Kuper, 1978, p. 125). Em 1921, Sir Richard
Temple, outro administrador colonial britânico, deu a um de seus apelos em prol
de uma escola de Antropologia Aplicada o título “Tout savoir, tout pardonner, tout gagner”,
acrescentando à frase uma conclusão política mais explícita (Kuper, 1978, p.
125).
Infelizmente, alguns defensores pretensiosos da
disciplina antropológica, como Kuper (em seu texto dedicado à questão,
“Antropologia e colonialismo”), mesmo diante de evidências nítidas, caem no
ridículo contraditório, tentando convencer-nos de que nem o governo nem o
público aceitaram a proposta dos administradores e, por via disso, a
Antropologia como ciência manteve-se periférica na filosofia colonial, tanto
nas tarefas práticas como na teorização.
Fantástica é a tese de doutoramento de Rui Mateus
Pereira (2005), ao abordar este assunto de uma forma abrangente, respeitando
toda conveniência histórica, isto é, começando da génese. Para este pensador,
na época dos “descobrimentos”
figuram as imagens tutelares do navegador e do missionário – mentores da
expansão do Império e da Fé. Nos ícones do colonialismo do século XIX para o
século XX, poderiam ser representados as figuras do administrador e, na sua
peugada, o antropólogo. Não se trata de uma imagem forçada. (Pereira, 2005, p
78).
Kuper (1978) no capítulo “Antropologia e
Colonialismo” cita uma anedota contada por Lévi-Strauss em “The Scope of
Anthropology” (1967), o qual, por sua vez, toma como referência uma descrição
de Johan Galtung em “Scientific Colonialism”, publicada na revista Transition também
1967. Em Março de 1957, Kwame Nkrumah mandou colocar na antecâmara do seu
gabinete presidencial em Acra, após a independência do Ghana, um enorme quadro
no qual se encontrava figurado o seu combate contra o colonialismo,
representado nos grilhões da escravatura que ele quebrava impetuosamente. Num
dos cantos desse agitado panorama, três pequenas figuras, três homens brancos,
fugiam espavoridos: um deles era o “capitalista” e carregava uma pasta; um
segundo era o missionário com a Bíblia na mão; o terceiro levava um livro
intitulado African Political Systems. Esse último seria o
antropólogo.
A outra mancha que persegue a antropologia clássica
(para muitos, a verdadeira ciência antropológica), tem a ver com os seguintes
conceitos: o “homem prático” e o “antropólogo académico”. Rui Pereira (2005) a
descreve da seguinte maneira: a nova prática do ofício antropológico elaborada
por Malinowski, sistematizada depois da observação participante que ele tinha
com sucesso aplicado ao estudo dos trobriandeses, “exigiu certa rutura com os
valores ocidentais, isto é, o chamado “despaisamento” do antropólogo”,
movimento que situaria a antropologia num lugar privilegiado para “ultrapassar
o “handicap” do
administrador”, garantindo, ao mesmo tempo, a sua neutralidade científica
(Pereira, 2005, p. 107). A despeito das promessas acarreadas por tal rutura, o
certo é que, na prática, este pensamento não passou de uma utopia. Rui Pereira
(2005) prossegue na sua descrição do dilema colocado entre o “antropólogo
acadêmico” e o “homem prático” da administração colonial:
A ideia inicial de Lugard [3] e
seus seguidores, de colocar funcionários sensibilizados e instruídos para os
propósitos da Antropologia, mas cujo desempenho profissional de modo algum os
distinguia do mais comum dos administradores, manteve-se operante até finais da
década de 20, mas depois dos motins de Aba (Nigéria) [4],
em 1930, a situação viria a modificar-se. Os antropólogos de governo ou
administradores antropólogos foram sendo progressivamente substituídos por
antropólogos «profissionais» ou académicos, de forma que no espaço de quatro
anos foram apresentados ao governo da Nigéria para cima de 200 relatórios sobre
as mais diversas instituições sociais e culturais da região, todos subscritos
por antropólogos (Pereira, 2005, p. 108)
O mesmo autor argumenta que “a crescente emancipação
da Antropologia no campo das ciências sociais, bem como a sua progressiva afirmação
no domínio dos interesses práticos da administração colonial”, originou alguns
atritos entre o administrador e os antropólogos (Pereira, 2005, p. 109). Duas
trocas de acusações clássicas entre os administradores e antropólogos que valem
a pena salientar, para atiçar o debate, envolvem Fitzherbert Ruxton,
ex-governador provincial no sul da Nigéria, e o pai da antropologia clássica,
Malinowski. Fitzherbert Ruxton, vendo ameaçado o seu pão pelos discursos
academicistas dos antropólogos funcionalistas escreveu: “como o campo de
trabalho dos antropólogos puros[5] é
o ontem, então o dos antropólogos aplicados deverá ser o hoje, de preferência o
‘amanhã’” (citado em Pereira, 2005, p. 109). Neste pensamento, Ruxton não só
tentava tirar o “fantasma” do antropólogo do seu encalce, como também demandava
uma firme distinção entre o escopo de interesse do “practical man” (termo usado por
Malinowski para se referir aos administradores coloniais) e aquele do
antropólogo acadêmico.
Numa outra nota, sobre o mesmo conflito em torno do
protagonismo nas colônias envolvendo antropólogos e administradores, Mitchell,
comissário provincial no Tanganhica, escrevia o seguinte:
como salientou Malinowski, os
antropólogos têm-se preocupado essencialmente com o passado, ou pelo menos com
o efémero; e desenvolveram o seu próprio método de registar e discutir em especial
aquilo que é estranho e exótico nas sociedades primitivas Assim, se um
habitante das ilhas dos mares do sul se sentir obrigado, durante alguma ocasião
cerimonial, a comer a sua avó, o antropólogo é atraído pela investigação e
explicação do costume arcaico que o levou a cometer tal acto; o “practical
man”, por outro lado, tem tendência a dar mais atenção à avó (citado em
Pereira, 2005, p. 110).
Assim, apesar das diferenças que afastam o “pratical
man” do antropólogo acadêmico, fica evidente que há entre eles um objeto comum
de preocupação, qual seja, o nativo. Os comentários conflituosos entre uns e
outros deixam claro o envolvimento da antropologia no projeto colonial, o qual
incidiu no desenvolvimento da disciplina apesar da presunção científica que distinguiria
os antropólogos dos administradores, estes últimos mais contundentes e culpados
assumidos na empreitada de subjugar e administrar os povos não ocidentais. O
comprometimento da antropologia com o capitalismo imperialista que
desenvolveu-se no período histórico em análise é visível e audível, tanto
internamente aos domínios antropológicos, como também externamente (me refiro
às vozes de vários nacionalistas africanos que denunciavam veementemente a
aliança entre a antropologia e o colonialismo). Portanto, negar ou atenuar o
envolvimento colonial que está atrelado à trajetória da antropologia enquanto
uma área de conhecimento é, a meu ver, negar ou atenuar um certo “obvio”. Ao
fecharem os olhos a evidências tão abundantes, os antropólogos, em certo sentido,
descartam uma avaliação racional do processo de constituição da disciplina,
incorrendo no que a Dra. Sandra Manuel [6] comumente
chama de “má ciência”.
Os
defensores da imparcialidade teórica antropológica
“Se o governo e o público britânico não se deixaram
facilmente impressionar pelos possíveis usos da Antropologia aplicada – argumenta
Kuper – os governos coloniais tampouco se mostraram sensibilizados” (Kuper,
1978, p. 125). Ele prossegue:
No Oriente, a tradição era que
os administradores se beneficiassem do estudo de línguas e sistemas jurídicos
das sociedades por eles administradas, mas a pesquisa sociológica nunca foi
encorajada. Na India, por exemplo, a “etnologia” parece nunca ter significado
mais do que o desenvolvimento do censo para incluir alguns dados sociais e
culturais, assim como, em grau limitado, o estudo de povos tribais (Kuper,
1978, p. 125-126).
Já na África Oriental, “Seligman tinha sido
contratado para realizar pesquisas antropológicas em nome do governo do Sudão,
missão que ele transferiu mais tarde para Evans-Pritchard. Contudo, não há
nenhum efeito específico registrado que possa ter decorrido dessas pesquisas”
(Kuper, 1978, p. 126). Recorda Evans-Pritchard que o Professor Seligman,
“durante todos os anos que trabalhou no Sudão sobre problemas sudaneses,
nenhuma vez foi solicitado a proferir seu parecer e na única oportunidade em
que se prontificou a dá-lo, a respeito dos fazedores de chuva dos Montes Núbia,
não foi ouvido” (Evans-Pritchard, “Applied Anthropology”, Africa, 1946, p. 97 apud Kuper,
1978, p. 126). Rui Pereira (2005), por sua parte, argumenta o seguinte:
apesar dessa pretensa
“inutilidade” e de algumas bem-intencionadas profissões de fé, Raymond Firth,
em 1936, foi o primeiro a procurar afirmar – em vão – a autonomia da
Antropologia face à situação colonial”. Digo “em vão” porque a antropologia
colaborou, decididamente, de uma forma directa ou indireta, no projecto
colonial (Pereira, 2005, p. 62).
Portanto, a questão fundamental que a esse propósito
deve ser colocada não é a de saber se a Antropologia colaborou ou não, mas sim
o quanto e como.
Kuper (1978) ainda descreve mais um pouco as relações entre a administração
colonial e os antropólogos, sempre tratando de atenuar o papel dos últimos,
seja por sua “inutilidade” do ponto de vista governamental, seja por estarem
afastados de uma “Antropologia Social” idealizada e praticada a partir dos
centros metropolitanos:
Na Africa Meridional, Schapera
trabalhou durante muitos anos em estreita colaboração com o governo da
Bechuanalandia e, na União Sul Africana, o governo criou uma secção etnológica
do Departamento de Assuntos indígenas em 1925. O trabalho desse órgão, muito
ampliado subsequentemente, nunca foi além da rotina de realização de censos
etnológicos, pareceres sobre as pretensões de vários candidatos a chefias
tribais e, mais recentemente, a criação de formas pseudo tradicionais de
administração tribal. Os antropólogos do governo sul-africano foram
virtualmente imunes aos principais progressos da Antropologia Social e não
dispunham de qualquer teoria sociológica que apoiasse o governo sul-africano no
perverso trabalho de subordinação e exploração colonial (Kuper, 1978, p. 126).
Seja qual for a crítica externa ou interna, no
entender de Kuper:
nunca houve muita demanda de
Antropologia aplicada tanto por parte de Whitehall, o eminente administrador
colonial inglês, como por parte dos governos coloniais. Mesmo nos tempos do
C.S.S.R.C. (Colorado School Safety Resource Center) quando os membros da
comissão falavam esperançosamente sobre pesquisas relevantes, os antropólogos,
de um modo geral, mantinham-se em sua própria amena postura académica (Kuper,
1978, p. 140).
Kuper atenua qualquer relação direta entre
antropologia e colonialismo, atribuindo aos praticantes da primeira uma
indiferente e “amena postura acadêmica”. Assim, podemos concluir que a dimensão
colonial antropológica ou tem sido sistematicamente ignorada ou tem-se prestado
a leituras marcadas por uma ideologia particular, no marco da qual a história
das Ciências Sociais é alvo de um processo de “branqueamento”. Este último
consiste em ocultar a história colonial da disciplina para favorecer a defesa,
em grande parte das universidades e dos círculos académicos, de alguns
princípios do liberalismo ocidental (um liberalismo sem liberdade baseado na
dominação e na subjugação de grande parte do mundo). A produção de
conhecimento, no caso particular da antropologia, passa por uma triangulação
cautelosa que começa na censura do tema do envolvimento colonial da disciplina.
O que estou tentando apontar aqui é a “imparcialidade” cega e cansativa, muito
candente nos antropólogos “liberalóides”, que gostam de ocultar a intensidade
do envolvimento da antropologia com o poder colonial. O saldo dessa escolha é a
entrega de análises supostamente profundas, mas sem um pingo de razão crítica e
que perdem de vista uma série de nuanças do debate.
Para pensadores como Kuper e outros (geralmente
defensores fanáticos da antropologia), são muito válidas as lições de Thomas
Kuhn sobre o desconhecimento do seu próprio passado, provocado por uma
“cegueira histórica” que conduz a “uma distorção drástica da percepção que o
cientista possui do passado da sua disciplina” (Kuhn, 1970 , The
Structure of Scientific Revolutions, p. 167 apud Pereira,
2005, p. 19). Negar as relações entre a antropologia e a dominação colonial
como pretendem alguns pensadores é negar, explicitamente, o conhecimento
histórico; é negar as evidências e é, até um certo ponto, uma espécie de
suicídio intelectual. Contudo, é muito justo compreender essa relação dentro de
um quadro de perspetivas diferentes, mas complementares. Se encararmos a
antropologia como um plano académico/intelectual e o colonialismo como um plano
político, poderemos, a partir daí, tentar entender de que forma a antropologia
contribuiu, directa ou simbolicamente, de maneira explícita ou latente, à
empresa colonial.
De qualquer forma, é difícil negar a existência de
algum tipo de relação entre colonialismo e antropologia ao longo dos séculos
XIX e XX, nem que seja como ramas distintas de um mesmo processo o qual deverá
ser, ainda, conceitualizado por aqueles que têm interesse na questão. Só
poderemos ignorar a objetividade dessa relação, como argumentei, se resolvermos
abdicar de um horizonte racional para nossa prática de investigação.
Considerações
finais
Conforme argumenta Álvares (2018) em “Para uma
crítica da razão antropológica”: “a antropologia moderna, assim como a
conhecemos, só se originou como uma necessidade de uma forma de manifestação do
modo de produção capitalista”, neste caso, na sua etapa de expansão
imperialista (Álvares, 2018, p. 107). A sua produção teórica, analítica e
concetual foi desenhada com vistas a responder demandas políticas concretas,
isto é, aquelas necessidades colocadas pelo desenvolvimento do colonialismo.
Sob influência de tais necessidades, não é de estranhar que antropólogos e
administradores divirjam sobre o que fazer em relação a elas, como
encaminhá-las ou como reagir diante dos problemas que emergem da situação
colonial – a animosidade entre as partes, nestes casos, é uma decorrência
natural. O respaldo evidente deste casamento conflituoso encontra-se, contudo,
explicitamente enunciado pelo “pai” da antropologia, Malinowski, quando pontua
o seguinte:
o antropólogo que não esteja
pronto a reconhecer os trágicos erros cometidos em certas épocas com a melhor
das intenções ou sob a pressão de uma imperiosa necessidade, nada mais é do que
um antiquário mascarado de académico vivendo num paraíso ilusório, (…)
Investigação, para ser útil, deverá ser inspirada pela objetividade e pela
coragem, (…) deveremos nós, contudo, misturar a política com a ciência? Num
certo sentido, decididamente sim (Malinowski, 1970, p. 21)
Álvares (2018) expõe, também, a caracterização feita
por Leclerc (1973) da função que a cultura chamada “primitiva” adquiria para a
razão antropológica: para Leclerc, a racionalidade da cultura tida como
“primitiva” “dissolvia-se na prática racionalizante da Antropologia, a qual se
situava no interior da concepção positivista da ciência como único tipo de
saber” (Leclerc, 1973 apud Álvares, 2018). Sob o
ponto de vista científico, as “culturas” dos “outros”, enquanto racionalidades
particulares, eram compreendidas pela análise concetual antropológica. Nesse
sentido, o uso de categorias como “selvagem”, “bárbaro”, “primitivo”, “nativo”,
que por um certo período serviram de mote para a análise de outras
“racionalidades”, é um indício contundente da influência do colonialismo no
desenvolvimento da disciplina antropológica e sua “razão”.
Sobre termos como “selvagem” e “bárbaro”, utilizados
por Taylor e Morgan, vale a pena relembrar as críticas que Manuel Viegas
Guerreiro, etnólogo, faz a Oliveira Martins, um ilustre evolucionista português
do seculo XVII que pensava que “o selvagem era com efeito uma criança; sente
vivamente e reflete pouco ou nada… Vê sem discernir, ouve sem coordenar, palpa
sem definir… Incapaz de espanto, desconhece a curiosidade. Nada há que o
surpreenda, e pergunta por perguntar como criança sem refletir. Seu pensamento
é inconsciente, como inconsciente é a sua imaginação…”. Manuel Viegas denunciou,
em “Temas de Antropologia em Oliveira Martins” (1986), o modo como “o progresso
científico das culturas europeias gerou (…) uma profunda convicção de
superioridade, um desmedido etnocentrismo, que veio a concretizar-se nas mais
abomináveis formas de racismo” (Guerreiro, 1986, p. 51)
A conclusão é forte, porém necessária. Precisamos
dizer que o rei está sem roupa, ou pelo menos esteve sem roupa no passado. A
Antropologia foi amplamente influenciada pelo
imperialismo colonial, regime de dominação que se apresentou como “o mais
brutal e perverso para as sociedades que ela mesma investigou em sua origem”
como disciplina (Álvares, 2018, p. 113). A Antropologia é filha do colonialismo,
portanto cabe a ela a ousadia de se (re)inventar como ciência e reinventar a
humanidade como afirma Juvenal Arduni (2002).
Diante da abordagem feita até aqui, posso sugerir que
a razão antropológica[7] está
constituída sobre um campo de ambiguidades linear e paralelo em relação ao
imperialismo, mantendo com o colonialismo o que poderíamos chamar de “casamento
em regime de comunhão de bens”. Este fato depõe contra as declaradas pretensões
antropológicas de constituir-se enquanto um campo científico que preza ser
independente do colonialismo. Ora, vemos que a antropologia como campo de
conhecimento foi incapaz de definir o seu objeto, tendo essa tarefa sido
desempenhada pelo próprio movimento histórico de surgimento e desenvolvimento
do imperialismo, conforme sugeriu Álvares (2018). E essa fragilidade a prior na
definição própria de seu objeto provocou, em consequência, “uma relação
absolutamente desigual entre teoria, método e técnicas de pesquisa”, na qual a
etnografia que é tida pela tradição antropológica como um “método” “adquiriu
uma importância maior do que a própria antropologia em si, provocando, a partir
da transição da primeira metade do século XIX para a segunda metade do Século
XX, uma inflexão epistemológica no seio do pensamento antropológico” (Álvares,
2018, p. 113). A inflexão em direção à centralidade da etnografia como prática
definidora do campo antropológico foi inaugurada por Malinowski e foi, também,
como apresentei, um dos elementos distintivos que possibilitaram aos
antropólogos se afastarem – ao menos idealmente – das responsabilidades do
“pratical man”. Como argumentou Pereira (2005), foi a ênfase malinowskiana na
etnografia que situou a antropologia num lugar privilegiado para “ultrapassar o “handicap” do
administrador”, garantindo, ao mesmo tempo, uma aparente neutralidade
científica em relação aos regimes coloniais.
Já Álvares (2018) concluiu o seguinte:
A definição desse campo de
conhecimento através de um procedimento de pesquisa em detrimento de suas
outras determinações produziu a aparência de que a Antropologia pode ser
concebida como uma ciência autônoma, sendo que, mesmo no interior de suas
características, e historicamente, essa independência não se sustenta. Como ela
foi historicamente constituída, e como ela se apresenta por sua razão, a
Antropologia ignorou sua própria história e se afastou de sua vida material,
manifestando-se, paradoxalmente, sob a forma de uma ciência capaz de se
sustentar como um ente exterior à realidade efetiva. (Álvares, 2018, p. 113)
Como procurei mostrar ao longo do texto, a “realidade
efetiva” presente na história da disciplina e da qual ela tenta se desacoplar
nada mais é que o seu envolvimento com o processo colonial. O “casamento em
regime de comunhão de bens” entre a empreitada colonial e o saber
antropológico, ainda que permeado por brigas, discussões e eventuais
infidelidades, de fato, existiu. O giro antropológico em direção à sua
concepção como “ciência autônoma” (definida através de um procedimento de
pesquisa: a etnografia malinowskiana) só foi – e continua sendo – possível sob
a base da negação ou da relativização das evidências de tal envolvimento.
Notas
[1] Mestrando
em Antropologia Social pela UEM-Moçambique, graduado em Ensino de História e
Geografia pela UP-Moçambique.
[2] A
figura de Xiconhoca era usada nas caricaturas revolucionárias no
Socialismo-Leninista, orientação política que o Moçambique pós colonial seguiu.
Xiconhoca simbolizava o inimigo interno, a presença de minoria branca que dava
continuidade à agenda colonial, seja na forma material, política, ideológica ou
cultural.
[3] Frederik
J. D. Lugard foi o primeiro Alto-comissário do protetorado britânico no Norte
da Nigéria.
[4] Motim
da Aba ou Guerra das mulheres, foi uma insurreição que ocorreu na Nigéria
britânica. Foi a primeira revolta anticolonial estrategicamente executada e
organizada pelas mulheres para corrigir questões sociais, políticas e problemas
econômicos.
[5] O
antropólogo puro é a referência aos evolucionistas que, no entender de Ruxton,
eram os mais razoáveis entre os praticantes da antropologia.
[6] Professora
Universitária, afeta na Faculdade de Letras e Ciências Sociais no Departamento
de Antropologia e Arqueologia na Universidade Eduardo Mondlane.
[7] A
razão antropológica é um conceito cunhado pelo pesquisador brasileiro Lucas
Parreira Álvares (2018), na Revista Práxis Comunal.
Bibliografia
ÁLVARES, Lucas P. “Para uma crítica da razão
antropológica [parte i]”, Revista Práxis Comunal, Belo Horizonte, v.1, n.1, p.
88-117 jan./dez. 2018.
ARDUNI, Juvenal. Antropologia: Ousar para reiventar a
Humanidade. Ed. Paulus: Porto Alegre, 2002.
ASAD, Talal. “Introdução à Anthropology and the Colonial Encounter”.
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