Por
Wesley Sousa – graduando em Filosofia pela UFSJ
“(...) a crítica não é uma paixão do cérebro, mas o cérebro da
paixão. Não é o bisturi anatômico, mas uma arma. Seu objeto é o adversário, que
não se procura refutar, mas destruí-lo” – Karl Marx.
Crítica da filosofia do direito de Hegel, 1843.
O
destino do Brasil se configurou em uma incurável patologia que se engendrou ao
longo de décadas. O “heroísmo” cambaleante das agitações pretensas, noutra via,
não é o significante de uma “massa crítica” em ação; o que significa, em
verdade, é sua falência. Seu conteúdo esvaziou. A opacidade do discurso
“antibolsonarista”, até aqui, apenas serviu para oferecer o medo da verborragia
do “fascismo”. A resignação crítica vigora como suspiro derradeiro de uma morte
premente. Durante décadas, corre-se do lado oposto da crítica para não “fazer o
jogo da direita”. Enquanto ela, sempre atabalhoada e cínica, mas sabendo o que jogar,
tomou para si a tarefa “crítica” que a esquerda deixou-lhe escapar: não ter
medo em dizer seu próprio nome.
A
crise de uma pretensa forma progressista de mundo se revelou quando colocava
toda sua capacidade de mobilização a reboque de uma política que parecia impor
mudanças seguras, lentas e graduais (anos 70-80). Ao final, tudo o que nossa
esquerda conseguiu, no final, foi o despreparo, não apenas para o golpe,
como na “redemocratização” nacional. Assim, sem capacidade alguma de reação
efetiva diante dos retrocessos que se seguiriam no pós-golpe. É nesse
diagnóstico que o filósofo Vladimir Safatle (USP) retoma, talvez sem saber, a
tese do filósofo José Chasin (1937 – 1998) sobre a “morte da esquerda”[1].
A
legitimação última do capitalismo nunca foi a “representatividade política” da
burguesia e seus agentes em face ao Estado, mas, a capacidade produtiva
engendrada pelas relações sociais em que o capital exerce o domínio social. Só
assim, por último, legitimou-se nas próprias relações como “eternas e
necessárias”, como escreveu Marx em “A Miséria da Filosofia”.
Um dos
grandes intérpretes do Brasil, como é o caso de Celso Furtado, foi explícito no
seu pequeno livro, publicado ainda na década de 70, intitulado “O mito do
desenvolvimento econômico”, ao afirmar que o subdesenvolvimento é produto do
capitalismo, e não um “contraste” interno dele. Furtado não era um
“marxista”, nem pretendeu sê-lo. Foi um pesquisador sério e crítico.
Com
isso, a luta pela construção de uma sociedade pautada na supressão do
capitalismo, hoje, se tornou um sonho distante para a resignante
esquerda; livre dos interesses do capital e do Estado, agora restou navegar nas
sujas águas de um moinho capenga. A crítica que outrora era ponto de chegada,
não é mais que um composto amargo e subjetivo da postura militante. A
resignação não é o subjacente à crítica, mas a primeira demonstra a inépcia
da segunda.
Por
outro lado, há aqueles que recusa a crítica. Essa recusa, entretanto, já
pressupõe o cinismo distorcido, que, efetivamente, valida a justificação
dessa falência. O erro da anticrítica, consistirá, sobretudo, em pensar
que suas ideias estariam num grau de plausibilidade maior do que outras. Foi
exatamente o que sociólogo burguês Karl Mannheim, por exemplo, pensava que certos
grupos intelectuais poder-se-iam estar “desvinculados da luta de classes”, ou
seja, em alguma medida, não se vinculariam, no findar das contas, a uma ou
outra classe – ou em conflitos imediatos.
Um
caso interessante é de outro pensador burguês, Max Weber: o resultado da
pesquisa científica seria resultado de sua cultura, de seus valores, embora o
“pesquisador” tentasse se manter livre dos juízos de valores (cf. “Ética
Protestante e o espírito do capitalismo”). Enquanto o também sociólogo burguês,
Émile Durkheim, noutra via, pensava que o meio social seria como um “organismo
vivo”, em que a desigualdade social se explicaria “naturalmente” (cf. “Da
divisão social do trabalho”). Assim, poderia se inferir que a pergunta metodológica
de Durkheim o levou a tal resposta.
Então,
por outro lado, é claro que de maneira alguma estamos “desvinculados” às
formações de classe, ideologias, etc. que existem e operam na sociedade; da
mesma forma, a crítica incorpora tanto valores quanto posições, sejam elas
críticas seja elas não. Tal é a forma que a sociedade não é um “organismo vivo”
de modo que pensava Durkheim, em que tudo se justificaria em seu funcionamento.
Nesse
contexto, por mais que rejeitemos essas concepções burguesas, a recusa da crítica
se enforca na corda bamba da derrota. A enunciação da “derrota” não é um valor
transcendental, mas permanece na imanência do sentido real da palavra: a
forma desanimadora da alma social de um tempo. É assim que o diagnóstico de
uma “vanguarda do atraso”, como escreveu o filósofo Paulo Arantes.
A
esquerda, no seu interim, ao permanecer na derrota, ratificando seu
preconceito em reconhecer que o formalismo liberal como corolário de seus
problemas. Ao pintar conjuntamente a “revolução” como inviável ou dependente de
uma “etapa” – como se a revolução fosse uma “escalada” da “dialética real” ou da
“correlação de forças” (sic) –, nossa esquerda, agora resignada, reconfigura
a si mesma como um mero perfume em merda; essa forma de se manipular, por
meio da forma social capitalista, recoloca os pressupostos contrários às suas
aspirações mundanas: dessa vez, agora, já obsoletas. Se a “revolução”
seria coisa do passado, mesmo que nossa realidade insista em dizer o
contrário para os sujeitos, então o que resta, todavia, é o abstrato
espaço da “luta por direitos”.
Relembro
aqui o filósofo iluminista Voltaire: foi um crítico da ignorância e da rudeza, fez
com que se voltasse sua crítica ferina ao servo contra seus pares em filosofia,
ou até mesmo a nobres do campo e reis glutões. No livro “Cândido, ou Otimismo”,
bem sabemos, há uma ridicularização ao pretenso universalismo do “melhor dos
mundos possíveis” de Leibniz. Não importa o que aconteça, esse mundo é o melhor
possível para se viver... apesar de tudo.
De
modo análogo, a crítica de Voltaire faz sentido no presente momento: ainda que fosse
um aristocrata, mas um aristocrata esclarecido, declarou guerra à ignorância e
ao cinismo; ele mesmo se manteve um ignorante acerca daquilo que mantinha os
homens em um calabouço espiritual, na esterilidade intelectual e no pauperismo
– o capitalismo. Não muito diferente da nossa atual falência crítica.
Por
isso, aqui podemos nos aproximar da “ironia real” expressada no drama
de nossa situação específica no caso nacional: a crítica faleceu porque
virou um predicado sem sujeito; pois, aquilo que dava sua dinâmica vital
enquanto potência, perdeu-se no ato da resignação. A ironia resulta da
subjetividade reconhecida entre um conteúdo aparente, inicialmente vazio[2].
O que resta não é somente a derrota, mas o vazio da crítica – uma
negatividade crônica numa sociedade, cujo seu fardo histórico lhe sobrou foi apenas
sua recusa de ver o estado de coisas.
É
preciso encarar a derrota em sua amplitude, porque apenas assim tenhamos as suas
reais dimensões. O eleitor brasileiro sabe que já perdeu; ele reconhece-se
à sua imagem e semelhança, no “projeto genocida”: a crítica dos críticos
está, então, falida. Nossa resignação pressuposta, marca a falência
enquanto alternativa concreta.
A
ex-presidente Dilma Rousseff acertou, quase sem querer, que “todo mundo vai
perder”. Só faltou um detalhe a acrescentar: já estávamos perdidos desde
muito antes! Perdemos não porque a chancela da derrota foi protocolada, mas
porque protocolamos a chancela da derrota. Não seria mais conveniente
fazer da potência crítica como forma de práxis ao invés de insistir na ação
de sua falência?
Doravante
a má fé na burocracia, no Estado, nos partidos de esquerda, etc. seriam o meio
de sobrevivência nos conflitos sociais postos e mediados, mas que hoje a
sobrevivência se tornou o entrave da mediação postulada. As fraseologias sem
conteúdo apresentam cada vez mais um horizonte inalcançável.
Portanto,
decretar a “falência da crítica” não me coloca na posição privilegiada de um “crítico”,
apenas mostra que a crítica precisa de uma posição desprivilegiada. Quem
sabe ela ficou lá em 1964, e agora, em “2022”, voltaria? Até lá, a crítica não será
ressuscitada, a menos que ela aguente a nova derrota.
A crítica sofre, enfim, sua derradeira falência: terceirizaram-na para um Brasil compostos por gestores da anunciada catástrofe, enquanto a “crítica” espera seu próximo avião da salvação.
[1]
SAFATLE, Vladimir. “Como a esquerda brasileira morreu”. < https://brasil.elpais.com/opiniao/2020-02-10/como-a-esquerda-brasileira-morreu.html
>
[2] TAUFER, Felipe. "Escolhas jamais serão fáceis". < https://zeroaesquerda.com.br/index.php/2021/04/27/escolhas-jamais-serao-faceis-felipe-taufer/ >.