Arte e moralidade: uma sinfonia amarga

More Gauguin: Where Do We Come From? What Are We? Where Are We Going?, 1898.


Nota introdutória – Wesley Sousa

A questão da arte e moral não é nova na filosofia. desde os gregos antigos, com a poesia homérica, por exemplo, a eticidade tem seu ponto de inflexão na produção artística de um povo.

As relações entre: o materialismo filosófico e o realismo estético, pois, ultrapassa a questão do juízo moral. A moralidade é produto de um tempo, de certos acordos intersubjetivos, articulados entre o ser individual e o social, que age comunitariamente, “respeitando regras” (institucionais ou não). A obra de arte ganha sua relativa autonomia porque ela pode elevar o grau de conhecimento estético de uma sociedade (aestetics hominem).

Dessa maneira, o particular da arte é produzido e imposta ao pensamento pela essência da realidade objetiva e, por isso, a obra de arte precisa ser entendida como a mediação necessária entre a singularidade e a universalidade, como mediação entre o produtor e seu objeto. O seu produtor, porém, coloca na arte aquilo que capta do cotidiano; o cotidiano reificado e alienado se volta para si enquanto ente-espécie. Sua “moral” está adstrita à maneira com que a vida social “protocola” o percurso da potência ao ato. A moralidade, portanto, premente de esfera distinta da arte, não se desloca quando expressamos a admiração de um autor como Balzac – um reacionário político – da mesma maneira que lemos Monteiro Lobato (embora esse último foi um racista)?

O texto a seguir foi publicado em um site especializado em divulgação de filosofia nos EUA. É um texto instigante, partindo da relação da conduta moral pessoal e a vida artística da pessoa. A autora parte de uma cisão entre o sujeito moral e o objeto de sua criação. Essa “cisão” entre o público e o privado, típica da sociedade burguesa, em que os melindres da vida privada reinam a hipocrisia, a vileza e o calhordismo, foi retratada na referida obra de Balzac. 

Ao desvelar os costumes e a moral nascente da sociedade burguesa, o autor tido como reacionário politicamente, pôde trazer à luz o modo, através do qual, a vida privada das pessoas giram em torno das falsas aparências, na perfeita imoralidade que, na obra de arte, se revela. No espectro do realismo balzaquiano só foi possível a partir da constatação de que a posição do autor na obra tem sua relativa autonomia, e que, inversamente, o é autor tem certa autonomia a sua obra.

 

Por Jessica Logue – professora de Filosofia na University of Portland, Oregon (EUA)

Traduzido por Wesley Sousa (UFSJ)

Publicado no site Philosophy Now.

 

Por vários anos tenho interessado na questão: “pode o trabalho de uma pessoa ser compensada por uma vida?”. Incialmente, o que tinha em mente era pensar na ideia que há uma linha entre o público e vida pessoal de alguém, que essas duas vidas podem ser separadas, e que, de alguma maneira, você poderia pesá-las uma contra a outra, em particular, a ética. Então, por exemplo, as realizações artísticas de um talentoso escritor ou pintor poderia compensar o fato de ele ser uma pessoa terrível?

Pareceu uma importante questão, mas difícil de ser respondida. Embora seja verdade que todos fazer escolhas erradas, quando essas escolhas ruins são feitas por figuras públicas, avaliar uma resposta apropriada por parte de um público que os admira parece útil. Ainda que alguns possam assumir ser fáceis separar mudanças éticas do resto da vida de uma pessoa e, portanto, ainda apoiam seus projetos ou sucessos, ainda que seja uma má pessoa, eu não estou certa disso. Para aproximar o campo em jogo, discuto com exemplos que têm a ver com arte e entretenimento, embora existam também em muitas outras áreas.

No seu livro “Sorte Moral”, do filósofo inglês Bernard Williams, levantou questões desse tipo na discussão sobre artista Paul Gauguin (1848-1903). Gauguin abandonou a esposa e os filhos para ir pintar no Taiti. Williams enquadrou-a em termos no título “Sorte Moral” – a noção de que às vezes os resultados éticos são devidos aos fatores além do nosso controle. Até certo ponto, Williams está certo sobre a ‘sorte moral’ de Gauguin: se ele não tivesse conseguido fazer uma arte renomada, nós julgaríamos sua mudança de vida suas escolhas de vida com mais serenidade – se é que lembramos dela.

Porém, à luz do movimento #metoo especialmente, acho minha questão premente, e não acho que no seu centro a questão seja de sorte moral. Existem muitos exemplos de mal comportamento, até mesmo no mundo da arte. Por exemplo, quando comecei a me interessar por essa questão, fiquei desapontada ao ler que o caso extraconjugal de Dr. Seuss pode ter levado ao suicídio de sua primeira esposa. Lendo sobre Charles Dickens e descobrindo que foi um péssimo marido e pai, também me desapontou. O incesto de Byron; o tratamento abominável de Picasso com as mulheres em sua vida; a lista sombria continua e continua. Um chocante número de pessoas más tem sido produzido na arte, e isso não é um fenômeno que parece ser indo embora. Então, por alguns anos venho considerando agora para responder essa situação.

Originalmente, a postura tomada foi o utilitarismo: se a vida de um artista individual ocupado com todo parece ter aumentada a soma total da felicidade humana (ou prazer, talvez), então às vezes nós podemos ignorar certas escolhas pessoais. Essa ideia parece funcionar em alguns casos. Talvez esse trabalho no caso do Dr. Seuss (nome real Theodor Seuss Geisel). Às vezes as contribuições literárias de Seuss prevaleceria sobre suas escolhas pessoais.

Ainda, com o tempo, essa aproximação utilitarista não me agradou bem. Primeiramente, como pode mesmo mensurarmos se nossas escolhas pessoais, pessoal e profissionalmente, promove o bem maior? Não parece haver uma melhor forma objetiva de acessar escolhas e seus impactos. Mesmo se tivesse, parece insensível e estupido ignorar o dano que Seuss fez na escolha com sua esposa. Portanto, mesmo que houvesse alguma maneira de provar que suas ações realmente promoveram o bem maior para a população do mundo com um todo, parece que tais cálculos fez excluir um comportamento antiético em direção à pessoa individual.  

Repensando a questão, percebi que existem provavelmente maneiras mais fáceis de lidar com isso, e que em vez disso, a virtude ética pode produzir um resultado melhor, ou ao menos, um resultado que para mim seja melhor. E assim, é talvez a melhor forma de responder essa questão.

A virtude ética é fundada sobre o cultivo de virtudes, na esperança de produzir pensamentos e comportamentos virtuosos. Uma prática de ser paciente, por exemplo, na esperança que isso seja vantajoso no desenvolvimento da característica paciente. Virtudes éticas muitas vezes envolvem uma “moral exemplar”, que é um termo extravagante para um modelo de comportamento. Morais exemplares são importantes porque elas apresentam como é um comportamento ético para a vida.

Isso é também nos permite que a dissociação ética na escolha pessoal de grandes artistas. Por exemplo, nos permite contornar a questão da moralidade dizendo que alguns artistas simplesmente não pretendem ser exemplos morais e não deve ser julgada como tal. Talvez, essa postura me permita ainda ler romances de Norman Mailer, ainda que ele tenha quase matado sua esposa.

Mas essa questão ainda não pode ser suficiente. Às vezes o problema por mim aberta na questão ainda persista. Afinal, no fim, não é moralidade do artista que nós admiramos. Nós admiramos apenas seu talento artístico. Entretanto, na admiração do talento, eu ainda não tenho certeza que devemos fechar os olhos aos seus crimes. Nossas próprias ações como compradores de artes muitas vezes têm consequências também, como facilitadores de maus comportamentos dos artistas.

Talvez então devemos ainda ser cautelosos em apoiar carreiras de artistas antiéticos, tanto financeira quanto em prestígios – aumentar sua fama. Talvez não devêssemos estar enchendo os bolsos dos artistas que cometam crimes domésticos ou que perpetuem discursos de ódio e crimes hediondos. Há um grande número de pessoas na mídia, na indústria do entretenimento e na política que simplesmente ignorei-os por serem acusadas de crime sexual (abuso, estupro, etc). Tracei minha própria linha moral, e essa linha envolve virar as costas para eles, mantendo meu cartão de pagamento longe deles. Mas essa linha definida é confusa e subjetiva. Ainda que eu tenha virado as costas para Bill Cosby, outros não fizeram.

Modelo de suicídio

Mantendo essas complexidades em mente, quero me voltar para um tipo diferente de caso: suicídio, como no meu exemplo o suicídio em 1994, de Kurt Cobain. Músico, compositor e vocalista da banda Nirvana.

O suicídio de Kurt ocorreu quando eu estava no colégio. Essa não foi apenas minha experiência memorável de um suicídio de uma figura pública, mas de um suicídio de alguém que eu era uma fã devota. Para mim, Nirvana foi a voz da minha geração. Eles eram os revolucionários que salvaram a música da era do spray de cabelo dos anos 80. Cobain cantou sobre coisas que importavam para mim. Sua música era artística, complicada e alta. Amava sua atitude contracultura, seu guarda-roupas que distorciam o gênero e seus covers de canções por bandas desconhecidas. Adorei quanto ofereceu como uma alternativa aos sufocantes valores e estilos suburbanos, a hipocrisia e o materialismo da comunidade que eu cresci. Ainda amo sua música ainda, mesmo depois de 20 anos passados.

Mas Cobain se matou, deixando sua filha crescer sem seu pai. Eu não posso imaginar as complicadas dificuldades que ela deve ter enfrentado ao crescer sem seu pai (perdi um dos meus pais após meu primeiro aniversário); mas eu posso entender porque na revista Rolling Stone ela preferia a música do Oasis ao Nirvana. Não deve ser fácil crescer ouvindo que seu falecido pai era a voz de uma geração.  

Meu marido e eu costumávamos falar sobre Cobain com frequência. Afinal de contas, perdemos o maior músico da nossa geração, um iconoclasta; e alguém com um potencial muito musical incrível. No meio de nossas reflexões, percebemos que muitas estrelas do rock, cuja música tínhamos gostado nos anos 90, já estavam agora mortas, por suicídio ou de overdose de drogas. Então nos perguntamos: qual deveria ser nossa resposta ao suicídio de Cobain, ou o suicídio de outro grande artista que amamos, de uma perspectiva moral? Devemos condená-los pela dor que causaram aos amigos e familiares que deixaram para trás?

Essa ideia moral é, indiscutivelmente, muito complexa, devido aos problemas mentais nela envolvidos. Certamente, temos uma crise de saúde mental global e ainda estamos começando a entender como ajudar aqueles que lutam – especialmente aqueles que estão sob os olhos públicos. Nós ainda não entendemos como lançar uma tábua de salvação para aqueles que estão no centro das atenções. Nem parecemos ter gerado respostas apropriadas aos responsáveis em face desses eventos trágicos. Em vez disso, queremos promover a fama e a perda, sem analisar a relação um com o outro – sem ver a morte ser relacionada com a fama. Não podemos usar nossas próprias dores para fingir que entendemos. Tampouco devemos empregar nossa dor de maneira que glorifique ainda mais a fama, ignorando os problemas daqueles que lutam contra isso.

Nesse sentido, me veio a sugestão que fiz sobre desviar nossas carteiras daqueles que não podemos apoiar mais de forma ética. Mas novamente, com os casos de suicídio, questão tornou-se mais complexa ainda. A glorificação da morte é um problema muito sensível aqui e como representamos suas vidas e mortes, deve ser tratada com muita atenção. Em que posição de ser uma fã requer mais de nós, moralmente falando? Além disso, como essas questões comparam às questões provocadas por fãs pelas falhas dos artistas que ainda estão vivos e trabalhando? Alguém pode se perguntar: por que estou disposto a ouvir Nirvana e não a assistir um dos filmes de Wood Allen? Ou, porque estou enojada com Picasso, mas admiro a disposição de Cobain da questão se estava vendendo ou não?

Claramente eu não seria fã de Cobain se ele fosse um estuprador ou um pedófilo; eu não teria estomago para ouvir sua música. Isso me levou a concluir que moralmente me oponho mais ao estupro, assassinato e pedofilia, do que ao suicídio. penso que isso tem a ver com o ato de Cobain como amplamente motivado por dor e isolamento. Suicídio é costuma ser resultado de uma doença mental, portanto, os efeitos psicológicos e mentais sobre entes queridos possam ser tão devastadores como os de outras pessoas imorais; não devemos pensar nisso no mesmo nível de horror moral que o abuso sexual e outros males.

Por sua vez, essa reflexão me causou a retornar ao movimento #metoo e reconsiderar como abandonei os filmes de Wood Allen, entre outros. Talvez qualquer inconsistência aparente de minha parte seja devida a uma distinção entre os vivos e os mortos. Allen está vivo e pode enfrentar o público para a condenação de seus atos e ações, enquanto Cobain, não.

Também é mais fácil perdoar alguém por uma transgressão enquanto ela é vista em uma situação difícil. É muito mais fácil perdoar aqueles que não se desculpar por suas escolhas pessoais – e então muitos daqueles expostos no movimento #metoo não aparecem arrependidos pelo que fizeram.

Conclusões provisórias

Agora acho que tentar pesar as escolhas profissionais dos artistas e as escolhas pessoais é eticamente enganoso. Isso mostra uma força adicional à ética das virtudes. Quando um estudante que foi pego plagiando gritou em meu escritório “todo mundo vai penar que sou um trapaceiro pelo resto da minha vida!”, assegurei a ele que uma ação não nos define por uma vida. Tinha pensado na ética das virtudes naquele momento. Nem sempre nós vivemos de acordo com nossos ideais de virtude. Isso faz parte da condição humana; e, portanto, pesar e medir escolhas umas contra as outras é um cálculo ingênuo e um potencial mal-entendido sobre a bondade de uma vida.

Eu não estou dizendo que nossas escolhas são atomísticas e podem facilmente ser desconsideradas, nem que não haja maneiras de ver (e às vezes avaliar) o todo. O que estou dizendo é que não existe nenhum livro de ética sobre boas ou más maneiras do Papai Noel e que qualquer tentativa de fazer uma pode ser desesperadamente enganosa. Por exemplo, essa lista pode ignorar o crescimento ético de uma pessoa. Ou pode dar uma ou mais importância aos impactos de certos comportamentos e escolhas.

Em alguns casos, essa lista será também uma tentativa de limpar a lousa de uma determinada mancha. Esse ideal em si é ingênuo. Embora um momento de trapaça não defina toda uma vida de um estudante, também não deveria ser removida de seu registro. Certamente, essa má escolha isola algo que ele pode superar: mas fingir que podemos apagá-las de sua história é, entre outras coisas, ignorar as mesmas mudanças positivas que ele possa ter feito.

Então, o trabalho de uma vida compensa uma vida? A pergunta não é simplesmente sim ou não. Infidelidade, incesto, racismo, sexismo, agressão sexual, abandono, etc são importantes. Elas são ações imorais e uma grande arte não compensa o que de que aconteceram. Existem pessoas que sofreram por conta dessas ações. Gostar da arte feita por aqueles que cometeram essas ações não apaga suas vítimas ou atos.

Então, importa o que o artista fez ou não fez? Suas falhas morais? Sim! Essas coisas interessam, moralmente falando. Embora eu pense ser possível apreciar a arte feita por cretinos morais, isso é apenas porque a arte e a ética não são a mesma coisa. E porque elas não são a mesma coisa, não podem ser medidos na mesma maneira. Mas penso que prestamos um desserviço ao elevar um grande artista ao status de heroísmo quando sua vida não é. Sua transgressão é importante no contexto moral, portanto, apoiar a arte de pessoas que você considera moralmente repreensível é difícil de justificar, especialmente quando o dinheiro entra na equação. Devemos ser cautelosos com o que gostamos e não ter medo de se perguntar se sua própria fama é digna de nosso gosto.

Wesley Sousa

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