Crítica ao direito e ao status quo no metal pesado: sonoridade combativa no thrash metal


Jéssica Helena Borges Fraga[1]

A sonoridade agressiva do metal pesado incomoda os ouvidos mais sensíveis à cadência dos riffs e às letras contestadoras. O caráter subversivo do metal decorre do movimento de contracultura e em seu núcleo abarca críticas contundentes ao moralismo, principalmente o vinculado às religiões predominantes, ao status quo e à sociabilidade capitalista. Vertentes do metal como o thrash metal e o death metal combatem o conservadorismo e preceitos norteadores da ideologia dominante tais como: educação acrítica, exploração da mão de obra e cultura repressiva, que são difundidos pela mídia hegemônica.

Músicas, álbuns inteiros (incluindo arte de capa, encarte, composições) e performances nos shows são instrumentos potentes de crítica social e demonstração de descontentamento com as mazelas decorrentes do Estado capitalista. O uso de letras, videoclipes, discursos em shows e arte das bandas como denúncia das injustiças, das desigualdades, do moralismo religioso e de governos de direita vinculados ao imperialismo, é, naturalmente, um dos fatores que contribui para a estigmatização do movimento underground, considerando que a realidade exposta na arte metálica incomoda setores conservadores.

Desde os primórdios na década de 1970, o heavy metal tem contestado as condições de vida das camadas populares. O caráter operário do metal, como bem aborda Marc Brito na matéria que explora o tema[2], é importante para compreender não apenas a história desse marco, mas o desenvolvimento do gênero ao longo dos anos. A banda Black Sabbath, pioneira no estilo musical, teve em sua composição um dos maiores guitarristas do metal, Tony Iommi, que perdeu as pontas de dois dedos em um acidente de trabalho na fábrica metalúrgica aos 17 anos de idade, fato simbólico que evidencia a exploração dos trabalhadores.

A banda Iron Maiden – especialmente na primeira década de sua formação, quando a sonoridade e as composições eram bastante influenciadas pelo movimento punk – sofreu censura e foi alvo de campanhas de cunho fundamentalista em que conservadores religiosos queimaram cópias do disco The Number of the Beast sob a alegação de obra demoníaca[3]. Vale lembrar que a banda também se opunha ao governo em que Margareth Tatcher foi 1ª ministra e manifestou criticamente sua objeção através da arte da capa do EP Sanctuary[4], em que Tatcher aparece assassinada pelo Eddie, mascote da banda.

A censura sempre rondou o movimento underground, motivo robusto que eleva o peso das letras que confrontam os aparelhos repressivos do Estado e a influência religiosa na sociedade. O thrash e o death metal combinam o blast beats (bateria metranca) e os riffs velozes com vocais potentes que vociferam letras antiopressão e levam às reflexões críticas de relevo. Bandas como Metallica, Nuclear Assault, Obituary, Kreator[5], Sodom[6], Death e Sepultura foram algumas das pioneiras em eleger como tema central dos álbuns críticas contundentes ao sistema e ao status quo.

A banda Kreator lançou em 2001 o brutal Violent Revolution[7], disco que ataca as vísceras das injustiças oriundas do modo de produção capitalista. Faixas como Slave MachinerySystem Decay, Ghetto War Violent Revolution aprofundam a crítica à natureza tanatológica do capitalismo, denunciando a acumulação do capital e a miséria imposta ao proletariado.

Os álbuns ...And Justice For All e Ride the Lightning da banda Metallica trazem críticas incisivas ao Direito e à pena de morte, em específico pela cadeira elétrica. As capas dos álbuns também refletem o conteúdo crítico, como pode ser observado no ...And Justice For All que tem uma arte da Themis com dólares saindo pelas balanças e na capa do Ride the Lightning a cadeira elétrica que possui ondas de choques que remetem à pena de morte. O disco Master of Puppets também traz críticas sociais importantes como a faixa-título, que aborda as consequências do uso de entorpecentes, e a Welcome Home (Sanitarium), que abarca a crítica às políticas manicomiais.

A banda mineira Sepultura chocou a sociedade cristã e conservadora com o conceito antirreligioso e altamente explícito nos primeiros álbuns. O EP Bestial Devastation e o álbum Morbid Visions têm capas consideradas blasfemas para os religiosos. No primeiro, a banda apresenta a música AntiChrist, uma clara oposição aos preceitos cristãos, e que, posteriormente, foi alterada para Anticop, uma forte crítica ao militarismo. Além do combate ao moralismo e ao conservadorismo, a banda ataca a falta de investimento destinado à juventude, que reflete na dificuldade de prosseguir os estudos e de inserção no mercado de trabalho, sendo, portanto, marginalizada. A música Inner Self do álbum Beneath the Remains explora a estigmatização e subalternização dos jovens em uma crítica ao capitalismo. Ao longo de sua trajetória, que passou por incontáveis alterações, a banda Sepultura sempre conduziu temáticas de relevo como a letalidade estatal, o encarceramento em massa, o massacre contra os povos originários, o massacre do Carandiru, a violência policial e o ecocídio.

Atualmente no país, diversas bandas de thrash/death metal escancaram o descontentamento com a sociabilidade capitalista e com a repressão do Estado burguês, fato que torna comum encontrar álbuns, zines e artes de divulgação com o selo antifascista, anticapitalista e pró-movimentos populares. A banda Vingador, de Macaé-RJ, tem músicas explícitas anticapitalistas e revolucionárias, como a faixa Morrendo de Paz[8]. A música Mumia[9], do álbum Renegado, denuncia a injustiça cometida contra o ex-Pantera Negra, ativista e jornalista Mumia Abu-Jamal, preso político nos Estados Unidos desde 1981. Nesse disco a banda apresenta músicas em português, incluindo Hospital Colônia, uma crítica pungente aos manicômios, Sementes da Resistência e O Retorno de Lenin. Alguns membros da banda se reivindicam marxistas, fato que pode ser observado nas letras com engajamento revolucionário da banda.  

Em Minas Gerais, a banda Cracked Skull se destaca com um álbum conceitual intitulado Social Disruption[10], em que faixas potentes como Rise Up Revolution, Dark 1964, Terrorism e Time of Ignorance incendeiam a cena mineira com hinos de ódio ao Estado capitalista e aos que ecoam discursos reacionários. Neste sentido, a banda brasiliense Violator executa um autêntico thrash metal que intensificou a crítica ao governo Bolsonaro com discursos-manifestos em shows contra a extrema-direita; as denúncias em redes sociais, letras e artes estampando camisas; bandeiras e cartazes de divulgação. Inclusive, a banda teve uma turnê intitulada Disobey The False Messiah, uma cristalina resposta às tentativas de censura que a banda sofreu por se manifestar contra o atual Presidente da República.

O universo do thrash e do death metal engloba múltiplas manifestações que podem ser observadas na estética e nas temáticas majoritariamente presentes nas composições. O uso de coletes jeans com diversos patches de bandas, o jeans surrado, cabelos longos, braceletes, piercings e tatuagens, reflete o desprezo ao padrão estético imposto pela sociedade burguesa. O jeans remete aos operários, tendo em vista sua origem e finalidade primeva. As particularidades da sonoridade, da estética e da inconformação com as mazelas suportadas pelas camadas populares resultam em uma manifestação musical marcante.

Tal fato incomoda não apenas os ouvidos conservadores, mas também autoridades e instituições do Estado burguês que se utilizam de hermenêuticas jurídicas para justificar a censura de expressões culturais que ameacem a perpetuação do modo de produção capitalista. O Estado, legitimado pelo Direito burguês, tende a perseguir e reprimir – com o intuito de desmobilizar a execução de festivais culturais, enfraquecer o viés ideológico das bandas e do público, estigmatizar e marginalizar eventos undergrounds – culminando em episódios graves de censura e ameaça como o que ocorreu em Belém do Pará no ano de 2019.

Em 2019, o evento Facada Fest sofreu uma ofensiva encabeçada pelo então Ministro da Justiça Sérgio Moro que autorizou a abertura de um inquérito para investigar o evento e seus organizadores. Sob a égide do discurso moralista, conservador e punitivista, a violação à liberdade de expressão foi endossada por deputados e segmentos reacionários em uma campanha em favor da moral e dos bons costumes, imputando aos organizadores do Facada Fest crimes de injúria contra a honra do Presidente da República e apologia ao crime. O Ministério Público Federal (MPF) ofereceu denúncia contra os organizadores do evento paraense e o processo tramita na 4ª Vara Criminal do Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF-1)[11].

No tocante à violência policial, é imperioso trazer o episódio ocorrido em 2013, em que a banda Cannibal Corpse se apresentou no Circo Voador, no Rio de Janeiro, durante a turnê comemorativa dos 25 anos de Death Metal. Durante os shows de abertura das bandas Gangrena Gasosa e Forceps, a polícia militar atirou bombas de gás lacrimogênio no teto da casa de shows, o que comprometeu a apresentação pois afetou o público e os músicos, e um membro da equipe da Cannibal Corspe foi alvejado na perna, atingido por uma bala de borracha proveniente de um disparo da PM[12]. Ressalta-se que o uso desproporcional dos mecanismos de dispersão estava sendo utilizado contra a manifestação de junho de 2013 que coincidiu com a data do show. O fato revela a letalidade e violência estatal, expondo a brutalidade nas atuações contra as manifestações.

No ano de 2018, o Movimento Resistência Underground (MRU), em conjunto com o Red and Anarchist Black Metal (RABM), lançou o compilado Satan Smashes Fascism[13], uma coletânea que conta com a participação de 16 bandas nacionais de metal extremo antifascistas e que se posicionam contra o atual governo. A arte da capa, além das composições, são críticas explícitas ao conservadorismo, moralismo, autoritarismo e à onda reacionária crescente dentro do movimento de contracultura.

As injustiças, a miséria, a exploração e a subalternização do proletariado, decorrentes do capitalismo, executadas pelo Estado capitalista e resguardadas pelo Direito burguês, sempre estão presentes nas diversas nuances das vertentes do metal ora analisadas. Seja no cartaz de divulgação censurado e perseguido pelas instituições burguesas, seja na sonoridade agressiva, na bateria metranca – que se assemelha às rajadas de metralhadora – ou nas letras carregadas de fúria e revolta, o metal tem muito a nos dizer. Considerando a riqueza de abordagens e a vasta temática que passam despercebidas por muitos, os criminalistas brasileiros Paulo Silas Filho, Matheus Belló e Gabriel Teixeira Santos organizaram a obra coletiva Heavy Metal & Criminologia, que conta a com a participação de headbangers e pesquisadores do país inteiro examinando letras, álbuns, movimentos e vertentes do metal pela ótica criminológica. A obra abarca as criminologias radical, crítica, cultural.

Pelas criminologias crítica e radical, em que são utilizados o método marxiano, algumas abordagens analisam como o pensamento marxista, exercendo uma crítica ontológica, partindo da realidade, destrói discursos punitivistas e justificantes de uma suposta parcialidade do direito e que na verdade são contributos para a reprodução do modo de produção capitalista, como examina Matheus Belló.[14] A música Manifest, da banda Sepultura, é analisada pelos pesquisadores Gabriel Teixeira e Florestan do Prado, tendo em vista que versa sobre o massacre ocorrido em 1992 no Carandiru, em que o Estado capitalista cometeu mais um episódio de carnificina contra os estigmatizados pelo sistema[15]. A crítica à brutalidade policial e ao encarceramento em massa delineiam a sonoridade da música-manifesto, que expõe a hecatombe social agudizada pelo constante recrudescimento penal – inerente das sociedades capitalistas dependentes.

A crítica ao Direito, fundada em Pachukanis[16] e no antinormativismo[17] de Karl Marx, é explorada no exame da música Isolation, também da banda Sepultura. Na abordagem, à luz da composição, é realizada uma crítica à cultura do encarceramento, com base na obra Punição e Estrutura Social, de Georg Rusche e Otto Kirkchheimer, aprofundando na criminologia radical de Juarez Cirino dos Santos[18], em atenta observância ao estado do cárcere. Adiante, vislumbra-se no artigo a importância do thrash metal para dar voz às lutas contra a violência do estado burguês e o exame acerca do papel do direito.[19]

Violência e letalidade policial, encarceramento massivo, estigmatização e subalternização através do direito civil, trabalhista e penal, injustiças, guerra às drogas, massacres manicomiais e prisionais, pena de morte, suicídio, miséria, acumulação do capital, criminalização de movimentos populares, prisões políticas e censura, estão presentes nas composições como denúncia para o combate à devastação perpetrada pelo Estado capitalista. O presente artigo não visa esgotar – nem poderia – a temática, considerando a infinidade de bandas, artes, festivais, músicos e composições que relatam a realidade infernal vivenciada pelos proletários.

Vociferar contra as injustiças chanceladas pelo ordenamento jurídico e pelas instituições que garantem a perpetuação da sociabilidade capitalista, é uma atribuição audaz – e necessária – do thrash e do death metal. Que o metal continue expondo a realidade aos que se recusam a enxergar as atrocidades, e que a indignação com o cenário brutal suportado pela classe trabalhadora possibilite sua organização rumo ao horizonte revolucionário. Diante do exposto, é chegado o momento de reconhecer a potência do metal como coadjuvante robusto na luta contra o capitalismo e lutar para que as letras, exteriorizações de descontentamento e as provocações não sejam, jamais, caladas, e que todas as mentes inconformadas e todos aqueles apaixonados pelo thrash e death metal possam bradar juntos, reverberando contra as injustiças.


[1] Jornalista, bacharela em Direito, especialista em Direito Processual Civil, pós-graduanda em Filosofia. E-mail: j.helena.fraga@gmail.com. Endereço do currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/5208151735424434. Id Orcid: https://orcid.org/0000-0002-2799-4530.

[2] BRITO, Marc. A origem operária do Heavy Metal. Jornal A Verdade. 2020. Disponível em: https://averdade.org.br/2020/02/a-origem-operaria-do-heavy-metal/. Acesso: 18 jun. 2021.

[3]The Number of The Beast - 39 anos de ascensão da apocalíptica religião da besta. Iron Maiden Brasil. 2021. Disponível em: http://www.ironmaidenbrasil.com.br/2021/03/the-number-of-beast-39-anos-de-ascensao.html. Acesso em: 12 jun. 2021.

[4] IRON MAIDEN. Sanctuary. EMI. 1980.

[5] Kreator tem faixas de conteúdo crítico ao caráter tanatológico do capitalismo. O álbum Violent Revolution é uma crítica feroz às injustiças, à exploração das camadas populares e uma ode ao sentimento revolucionário.

[6] A banda Sodom possui o álbum conceitual M-16 que consiste em uma crítica ao imperialismo e à guerra no Vietnã, como observa-se na arte da capa do disco e em faixas como: M-16; Napalm in the Morning. Em 1997, a banda lançou a música Fuck the Police, que explora a crítica ao militarismo, leis injustas e violência policial.

[7] KREATOR. Violent Revolution. Steamhammer. 2001.

[8] VINGADOR. Morrendo de Paz. Dark Side. Estúdio D.Q.G. 2012.

[9] VINGADOR. Mumia. Renegado. 2021.

[10] CRACKED SKULL. Social Disruption. Estúdio Engenho. 2017.

[11] SANTOS, Rafa. Organizadores do Facada Fest entram com HC contra denúncia do MPF. Conjur. 2021. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2021-mar-29/organizadores-facada-fest-entram-hc-denuncia-mpf. Acesso em: 12 jun. 2021.

[12] MIRANDA, Igor. Cannibal Corpse: Alex Webster relembra show no Rio em 2013 com protestos e bombas. Whiplash. 2021. Disponível em: https://whiplash.net/materias/news_732/330064-cannibalcorpse.html. Acesso em: 12 jun. 2021.

[13] SATAN SMASHES FASCISM. Movimento Resistência Underground & Red and Anarchist Black Metal. MCK Multimídia. 2018.

[14] BELLÓ, Matheus. Detonar: a criminologia crítica e o ataque ao discurso penal oficial. Heavy Metal & Criminologia. Londrina: Thoth. 2020.

[15] PRADO, Florestan Rodrigo do. SANTOS, Gabriel Teixeira. “Manifest” (o) pela existência de uma criminologia cultural. Heavy Metal & Criminologia. Londrina: Thoth. 2020.

[16] PACHUKANIS, Evguiény B. Teoria Geral do Direito e Marxismo. São Paulo: Boitempo. 2017.

[17] MARX, Karl. Crítica ao Programa de Gotha. São Paulo: Boitempo. 2012, p. 08 e 32ss. 

[18] SANTOS, Juarez Cirino dos. A Criminologia Radical. Rio de Janeiro: Forense. 1981.

[19] FRAGA, Jéssica Helena Borges. Isolation: cultura do encarceramento e prisão como tortura. Heavy Metal & Criminologia. Londrina: Thoth. 2020.

Wesley Sousa

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