Na data de hoje (27 de julho), faleceu o filósofo José Arthur Giannotti aos 91 anos. Para uma breve homenagem, o excerto abaixo pertence ao texto Considerações sobre O capital, um dos capítulos do livro Nós que amávamos tanto O capital: leituras de Marx no Brasil (Boitempo, 2017). A obra reúne falas de diversos pesquisadores sobre a obra de Karl Marx, feitas durante um debate dentro do evento Marx: a criação destruidora, ocorrido em 2013.
No texto, José Arthur Giannotti faz um breve apanhado sobre as intenções do autor por trás de O capital, trabalha sua relação com as ideias de Hegel e mostra como o texto virou um clássico. O texto foi publicado originalmente no site Suplemento Pernambuco.
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É sempre importante falar para um público jovem, às vezes
não tão jovem, principalmente para retomar uma questão que nos tem preocupado há
anos: por que, e como, ler Marx? O
capital é um livro fascinante. Quem o tiver nas mãos vai se
espantar ao ler capítulos como “Maquinaria e grande indústria” [nota 1] e “A assim
chamada acumulação primitiva” [nota
2], textos que fazem reconstruções históricas monumentais. Ao
passar para o terceiro livro [nota
3], lerá sobre as fórmulas trinitárias do capital – as quais,
no fundo, descrevem como se explicita o processo de alienação das mercadorias –
e verá como o capital financeiro se desliga da formação da riqueza social em
geral: o próprio capital se aliena como uma força pairando sobre os homens.
No entanto, outros capítulos são muito estranhos,
complicados, formais, a começar pelo primeiro [nota 4], que trata do
valor. Vou ter que retomá-lo para lhes expor algumas de minhas ideias. É
preciso não se esquecer de que O
capital é um livro inacabado, concluído por Engels, autor
muito ligado à vulgata de lógica hegeliana, em particular à sua noção de
história. Esta começaria com a quebra do comunismo primitivo, no qual não
haveria a propriedade privada dos meios de produção, e em seguida instalariam,
não se sabe como, diversos modos de produção e diversas formas de luta de
classe. Formar-se-ia então o modo de produção capitalista, a cuja crise estamos
assistindo. A luta de classes seria, por conseguinte, levada a seu limite,
configurando uma contradição perfeita entre capital e trabalho, que, uma vez
superada, criaria uma sociedade sem classes, fim de nossa pré-história e porta
de entrada para a história da liberdade. Obviamente esse é apenas seu
esqueleto, mas está sempre no horizonte de Engels.
Encontramos, pois, alguns capítulos mais históricos e
outros mais conceituais. Todo mundo sabe que, para Hegel, o conceito é potência
substancial, que vem a
ser segundo tese, antítese e síntese. Tomemos o gênero dos
galináceos divididos entre galinhas e galos, que geram pintinhos, para
completar a espécie. A síntese de um conceito da natureza, entretanto, não
cobre sua diferença com o espírito. No nível da representação religiosa, o
conceito pode ser apresentado como Pai, Filho e Espírito Santo.
Por que menciono isso? Porque a aplicação do conceito
hegeliano no primeiro capítulo levanta uma questão séria, posto que não podemos
saber até que ponto seria possível aplicar a lógica hegeliana sem virar
hegeliano, isto é, sem pensar que a realidade seja discurso do próprio Espírito
Absoluto. Para que uma contradição se resolva em algo superior e lance novo
movimento, isso só pode se dar do ponto de vista do Espírito Absoluto, ou seja,
quando do próprio discurso se faz a totalidade do ser – do logos. Num nível
discursivo qualquer, se chegarmos a uma contradição, ela bloqueia o pensamento.
Por quê? Porque dada uma contradição é possível deduzir a como não a, em suma, é possível
deduzir o que se quiser.
Como aceitar um conceito de contradição que tenha em si
mesmo o poder de se renovar, sem aprofundar seu lado discursivo? Ainda na linha
do hegelianismo, Marx vai distinguir, de um lado, uma história categorial, a
construção da estrutura formal de um modo de produção; de outro, sua história
do vir a ser,
a implantação desse modo. Do ponto de vista categorial, Marx esperava que o
desdobramento da contradição entre capital e seu fundamento material, a força
de trabalho, haveria de terminar na contradição entre capital total e trabalho
total. O terceiro livro esboça essa contradição, mas não encontra fundamento
histórico e político para se aprimorar numa tensão total. Essa não é uma das
razões pelas quais o livro fica inacabado? Além do mais, ao escrever O capital, Marx ainda
enfrenta um problema muito sério: ele não quis apenas escrever um livro
teórico; basta ler a última tese a respeito de Feuerbach [nota 5] para
perceber que a intenção de Marx ainda era transformar o mundo.
Esse livro, que deveria preparar a Revolução contra o
capital, inspirou vários movimentos sociais, em especial a Revolução Russa de
outubro de 1917 [nota
6]. A partir dela, em particular a partir do momento em que ela
se fecha com a Terceira Internacional, marxismo e hegelianismo se transformaram
numa vulgata. Foi então que os textos de Marx passaram a ser lidos do ponto de
vista de uma teoria do conhecimento – além do mais, vulgar – e que se criou uma
zona obscura na inteligência do século XX. Lembro-me de grandes físicos que
tomavam Engels ao pé da letra, aceitando sem mais uma dialética da natureza
como um fato natural. De outro lado, houve uma disputa enorme entre os
filósofos, como se houvesse duas formas de pensamento: um determinado pela
lógica formal; outro, pela lógica dialética. Uma curiosidade: o grande
historiador Caio Prado Jr., ao escrever sua teoria do conhecimento [nota 7], um dos
livros mais desastrados já escritos na história do Brasil, num certo momento
começa a brigar com o teorema de Gödel [nota
8]. Teorema este muito importante para a lógica formal, que
mostra precisamente os limites do formalismo. É como se partíssemos contra o
teorema de Pitágoras.
Com a disseminação da vulgata marxista, houve um racha na
cabeça dos intelectuais que militavam na esquerda, o qual, de um lado, deu
origem a teorias de história ou sociologia de bom nível e, de outro, sustentou
uma teoria do conhecimento que era das mais pobres possíveis.
Eu mesmo li, nos primeiros anos da faculdade, um livro
absolutamente extraordinário por sua burrice: uma obra de Henri Lefebvre sobre
lógica dialética e lógica formal [nota
9]. Como seria possível o discurso e o cérebro separarem os
lóbulos, um aceitando a contradição real, e o outro, não? A vulgata marxista
impediu que lêssemos Marx como um clássico, isto é, como um texto de um
filósofo que entra para o patrimônio da humanidade na medida em que suscita
leituras que mudam visões e abrem caminho para ações.
Já na passagem do século XIX para o XX, encontram-se
leituras de Marx muito diferentes. Na Alemanha, por exemplo, a leitura de Karl
Kautsky e de Rosa Luxemburgo já divergem. Na União Soviética, a leitura de
Lenin é diferente da de Nikolai Bukharin. Na Itália, Galvano Della Volpe e
Antonio Gramsci caminham em outras direções. Na França, Althusser rompe com
toda a tradição marxista. É interessante notar que essas diversas leituras,
cada uma a seu modo, se reportam a Hegel. Em particular os franceses, ao darem
preferência à Fenomenologia
do espírito [nota
10], e os italianos, que optam pela Ciência da lógica [nota 11], abrindo assim
caminhos divergentes para Marx.
A possibilidade de leituras múltiplas já é claramente
notada por quem se detém no primeiro capítulo de O capital [nota 12]. Do ponto de
vista da ciência econômica, esse capítulo repete basicamente a teoria do
valor-trabalho de Ricardo. Marx a cita, mas apresentando-a num jogo de reflexão
entre o valor de uso e os valores de troca, instituindo um valor e determinadas
contradições. No fim, um texto belíssimo mostra como funciona a alienação da
mercadoria, mas seu entendimento é muito difícil. Ao resenhar as teorias do
mais-valor, escritos que ficaram à margem do marxismo, Marx faz uma objeção a
Ricardo que, a meu ver, é de suma importância: Ricardo não entende que o valor
é uma substância. O que significa isso? Que o valor não pode ser percebido
simplesmente como uma relação, suponhamos, entre as horas de trabalho social e
os objetos produzidos, a produção deste objeto, desta garrafa e deste relógio e
outros mais. Essas relações são fundadas numa substância e fundantes dela, algo
historicamente criado, mas que conserva suas relações estruturais num
determinado espaço de tempo. Obviamente, Marx está recorrendo, aqui, à noção
hegeliana de substância. Essa base, esse fundamento, constitui-se pelo
movimento de um sujeito que se opõe a si mesmo, não simplesmente como uma
verdade de base, tal como Aristóteles a pensava, mas travando as relações
sociais.
Marx teve muito cuidado em escrever esse primeiro
capítulo – se não me engano foram cinco versões –, e ainda assim nunca ficou de
fato satisfeito com ele. Isso porque já aqui Marx rompe com a ciência da
economia política. Escreve uma crítica a ela que ultrapassa o nível do puro
conhecimento científico. Trata-se de mostrar a criação de uma substância, o
valor, trampolim para se instalar uma relação capitalista que vise tomar um
valor para criar um mais-valor. E assim se desenharia no horizonte o alvo a ser
modificado para que conseguíssemos nossa liberdade.
Por ironia da história, logo depois da publicação do
primeiro volume de O
capital, em 1867, William Stanley Jevons e Marie-Ésprit-Léon
Walras, em 1871 e 1874, publicam os fundamentos da teoria marginalista do
valor, cuja base é o valor de uso, algo que parecia impossível para Marx. Novos
instrumentos matemáticos, as curvas de preferência, por exemplo, permitem
calcular quanto eu estaria disposto a trocar, dentre os meus bens, numa
situação-limite – por exemplo, com sede e perdido no deserto. Para a nova
ciência – e usamos aqui a palavra numa acepção muito larga – econômica, a
oposição entre valor de uso e valor de troca deixa de ser fundante. Desse novo
ponto de vista, Marx aparece apenas como um precursor que trabalha com um
paradigma antigo.
Enquanto perdurou o projeto político de criar produtos
sem passar pelo mercado, pela turbulência do ajuste entre oferta e demanda, era
ainda possível imaginar uma teoria econômica crítica se contrapondo às
correntes científicas. Isso, me parece, tornou-se impossível depois do
desaparecimento da União Soviética e das mudanças ocorridas na economia
chinesa. E a própria ciência econômica se mostrou muito mais diversificada e
múltipla, muito longe do paradigma das ciências naturais. Muito mais uma
ciência para tapar buracos do que para inventar um futuro.
O capital se torna, então, um livro clássico. Não podemos lê-lo sem que nos diga coisas que concernem ao nosso cotidiano, à maneira pela qual a mercadoria se torna um fetiche, como o capital cria riqueza e miséria, como o capital financeiro se torna independente e percorre o mundo, como se sucedem crises como esta em que estamos metidos hoje. Seu classicismo nos coloca diante da tarefa de transformar o mundo e de tomar uma posição política com relação a suas teses, mas refletindo e reconhecendo suas ambiguidades.
NOTAS
[nota 1] Karl
Marx, “Maquinaria e grande indústria”, em O capital: crítica da economia política, Livro
I: O processo de produção
do capital (São Paulo, Boitempo, 2013), p. 445-574.
[nota 2] Idem,
“A assim chamada acumulação primitiva”, em O capital, Livro I, cit., p. 785-833.
[nota 3] Idem, O capital: crítica da economia política,
Livro III: O processo
global da produção capitalista (São Paulo, Boitempo, 2017).
[nota 4] Idem,
“A mercadoria”, em O
capital, Livro I, cit., p. 113-58.
[nota 5] Idem,
“Ad Feuerbach”, em Karl Marx e Friedrich Engels, A ideologia alemã (São
Paulo, Boitempo, 2007), p. 533-5.
[nota 6] Nota
da editora/do editor da obra: A segunda etapa da revolução de 1917. Na
primeira, em fevereiro do mesmo ano, houve a derrubada do governo czarista e
sua substituição por um governo provisório apoiado por partidos socialistas
moderados. Na de outubro, esse governo foi substituído por um do Partido
Bolchevique, dando início ao regime socialista soviético.
[nota 7] Caio
Prado Jr., Dialética do
conhecimento (São Paulo, Brasiliense, 1955).
[nota 8] Nota
da editora/do editor da obra: Os “teoremas da incompletude de Gödel” são
teoremas de lógica matemática que identificam limitações em quase todos os
sistemas axiomáticos, ou seja, aqueles baseados em premissas consideradas
verdadeiras e fundamentadas por demonstração. Foram provados em 1931 por seu
criador, Kurt Gödel (1906-1978).
[nota 9] Henri
Lefebvre, Lógica formal,
lógica dialética (São Paulo, Civilização Brasileira, 1975).
[nota 12] Karl
Marx, “A mercadoria”, cit.