Istanbul Panorama Taken from the Beyazit Tower (1854), James
Robertson.
Por
Nick Evans
publicado
no site britânico rs21 (Revolutionary Socialism).
Data
21 de fevereiro de 2021.
Traduzido
por Wesley Sousa (UFSJ).
O
título original foi levemente alterado.
Nota inicial – por Henrique
Leão Coelho (Doutorando-UFMG)
Convictamente, carece repontar
de modo fulgurante algo basilar: não há qualquer filosofia da história na
teoria marxiana. Dessa feita, não há história como túnel luminoso e previamente
construído por onde passam os homens e mulheres, em que as formas de sociedade
configuram apenas capítulos de um todo destinado a um fim. Ademais, não há uma
teoria da história em Marx no sentido de um esquema prontificado e acabado da
processualidade das formas de ser, assertiva distante de significar que não há
uma concepção de história em Marx. Nesse sentido, se em algum momento pode-se
falar de uma inadequação entre o desenvolvimento das forças produtivas sociais
e a forma social (relação de produção específica) em que elas se desenvolvem,
não se trata de um esquema estanque que explica todas as mutações das
sociabilidades, mas de um caráter possível do desenvolvimento das sociedades
concretas.
Assim, da mesma maneira, a contradição de classes não é um elemento inexpurgável do ser social, mas um aspecto inerente às configurações societárias onde trabalho alienado e propriedade privada se determinam reciprocamente, cabendo apreender a especificidade histórica de cada sociedade de classe, por excelência. Não é perdulário definir que “Nesse sentido, o que identifica um dado modo de produção e, por isso mesmo, o diferencia dos demais é um tipo específico da articulação social que deve ser reproduzida para sobrevivência da comunidade, uma dada relação de produção” (MACHADO, 2018, p. 170). Nessa linha: “Ora, foi somente quando os grandes proprietários ingleses expulsaram os servos de suas terras, tornando-os livres das relações de dependência pessoal e dos laços diretos com os meios de produção, que o capital entrou em cena pela primeira vez na história humana. Uma vez expropriados de todos os meios e garantias de sobrevivência, os antigos trabalhadores diretos se converteram em massas destinadas ao mercado de trabalho ou à mendicância e ao roubo. (MACHADO, 2018, p. 141)
Nesse ensejo, o livro de Jairus
Banaji traz à tona e revira a volumosa pesquisa sobre a gênese do capitalismo.
Não é adendo prescindível que a tônica marxiana passou longe de uma codificação
estanque ou logicista. Marx, por certo, o que caracteriza abundantemente a
riqueza de sua obra, não foi um autor epistemologista, isto é, que se arrimou
em armações discursivas a priori, arquitetações mentais a priori,
ofertas de modelo a priori. É nesse ensejo que muitas descobertas - mais
ou menos consistentes - ainda devem vir à lume
Nick
Evans analisa o novo livro de Jairus Banaji, que sugere repensarmos uma crítica
radical da história do capitalismo
O novo e curto livro de Jairus
Banaji argumenta que a maioria dos historiadores marxistas entenderam a história
do capitalismo de forma errada. Eles teriam sido, afirma ele, “formalistas”:
tentaram forçar a evidência histórica em categorias e periodizações. Como
consequência, tiveram falhas em ver como o capital mercantil dominava os
processos de produção em grande parte da Eurásia por vários séculos antes, e
depois, idem junto com a ascensão do capital industrial. Banaji argumenta sobre
a ideia de que o capitalismo começou com os trabalhadores assalariados “livres”
no campo inglês (como os “marxistas políticos” têm argumentado) ou nas fabricas
ingleses é paroquial e enganosa.
Banaji está desenvolvendo uma
linha de análise provocadora, elementos que ele vem trazendo desde a década de
70 [1]. Inconfortavelmente, para os defensores da existência dessas formulações,
eles podem apoiá-los com os domínios de uma gama de literatura em várias
línguas moderna e medieval. Frustrantemente, para os simpáticos a esses
argumentos, Banaji deixa o leitor com o desafio de extrair as implicações
históricas e políticas de exemplos e comentários críticos espalhados em seu
texto.
Dominação mercantil
O argumento central é que os
capitalistas controlaram toda a produção do mercado global por mais tempo que
Marx e, posteriormente, os marxistas tinha apreciado. Marx minimizou
explicitamente o controle mercantil sobre a produção: no livro III de O
Capital, ele argumenta que o período que a dominação do capital mercantil
era “sinônimo de não-sujeição da produção de capital”. [2] Marx teria descrito
um processo de “subordinação do capital comercial ao capital industrial”, no
qual os capitalistas industriais assumiram o comando de todo o processo e
circulação [3].
Banaji mostra que Marx
“telescopou esse processo massivamente” (p. 28). De fato, Banaji argumenta, a
dominação do capital industrial sobre o capital comercial não foi estabelecida
durante a vida de Marx, mas no final da última década do final do século XIX. Friedrich
Engels, diferente de Marx, viveu para ver o que outros historiadores teriam se
referido a chamada “segunda revolução industrial”, quando “petróleo, ação,
químicos, não têxteis, se tornaram típicos da indústria em larga escala”. Nesse
ínterim, “um mundo completamente novo se emergiu, definido por um senso muito
mais nítido de nacionalidade, maior agressão política no mundo e o senso de
viver em nova velocidade” (p. 127).
Esses elementos foram o que a
próxima geração de marxistas, revolucionários como Rosa Luxemburgo, Vladimir
Lenin e Nikolai Bukharin, analisaram, as características do imperialismo,
levando ao cataclismo da Primeira Guerra Mundial. “Imperialismo”, pontua Banaji,
citando o historiador Eric Hobsbawm, “foi um novo termo concebido para
descrever um novo fenômeno” e substituiu “a ordem cosmopolita que o comércio
britânico manteve ao longo do século XIX” (p. 122). O objetivo de Banaji, com
esse livro, é delinear a longa fase do ‘capitalismo comercial’. Nesse
processo, ele revela padrões de controle sobre o trabalho e trajetórias da
acumulação de capital que eram muito mais complexos que são sugeridos na
literatura existente na “transição para o capitalismo”.
Como então o período do
capitalismo comercial deve ser caracterizado? Acima de tudo, não deve ser
caracterizado pela “não-sujeição da produção ao capital”
[destaques da tradução]. O capítulo cinco é o capítulo crítico para este
argumento. Na “forma clássica” do “sistema de lançamento”, os trabalhadores
possuíam seus instrumentos de trabalho, eram fornecidos com matérias-primas por
capitalistas mercadores e eram pagos à peça pelo produto acabado. Os locais de
trabalho estavam dispersos, mas - muito mais do que Marx havia reconhecido – os
comerciantes, no entanto, “controlavam, gerenciavam e coordenavam a própria
produção” (p. 86). Os comerciantes dominavam a produção por meio de seu
monopólio sobre a matéria-prima (às vezes mantido por meio de uma luta de
classes feroz com os artesãos) e sua “capacidade de organizar o processo de
produção geral” (p. 88).
No capítulo dois,
Banaji descreve as infraestruturas que permitiram ao capital mercante exercer
esse controle: colônias comerciais, mercados de atacado e letras de câmbio. No
capítulo cinco, Banaji mostrou como os comerciantes usaram seu conhecimento do
mercado para combinar processos de trabalho bastante diferentes, alguns nas
próprias instalações dos empregadores, muitos outros em ambientes domésticos
amplamente dispersos. Apenas o primeiro seria qualificado como a “subsunção
real do trabalho ao capital” nos termos de Marx, mas Banaji enfatiza a
combinação de diferentes formas de exploração do trabalho sob o capitalismo
comercial [destaques da tradução]. Uma diferença fundamental, entre Banaji
e muitos outros marxistas, é sua insistência em que os modos de produção não
podem ser reduzidos a modos de exploração: o capitalismo não é sinônimo de
trabalho assalariado, mas sempre dependeu de combinações de trabalho livre e
não livre [destaques da tradução].
O capital comercial e o Estado
Esta Breve História não
identifica um único ponto de origem para o “capitalismo comercial”, mas analisa
uma série de relações entre o poder do Estado e o capital mercantil a partir do
século XI. Banaji traça a aquisição armada de redes comerciais no Mediterrâneo
e no Mar Negro e depois no Oceano Índico por cidades-estados italianas, a
monarquia portuguesa, a República Holandesa e depois a Inglaterra. Essa
história começa no capítulo três com Bizâncio: Banaji argumenta que uma
breve aliança do século XI entre o estado bizantino e uma classe mercantil
indígena foi derrubada por uma reação aristocrática que levou ao privilégio dos
comerciantes italianos, que assim ganharam acesso maior aos comerciantes do
mundo fora da China (p. 29-33). No século XVI, a coroa portuguesa transpôs o “uso
habitual da força como parte aceitável da competição entre blocos substanciais
de capital' do Mediterrâneo para o Oceano Índico” (p. 41), ao tentar a
apropriação violenta das redes existentes da capital comercial muçulmana.
Assim, Banaji discute as
sucessivas fases subsequentes na história do “capitalismo comercial”, com o
surgimento de sociedades anônimas holandesas e inglesas apoiadas por seus
respectivos Estados no século XVII (p. 48) e, em seguida, o surgimento de casas
de comissões [bancos] e não monopólio, isto é, a empresa privada (p. 64). A
transição entre essas fases aconteceu em momentos diferentes. Já na década de
1670, o sistema de comissão operava no Atlântico britânico: os proprietários de
Barbados usavam letras de câmbio para comprar escravos e vendiam seu açúcar em
Londres (p. 26-7); enquanto a Companhia das Índias Orientais manteve seu
domínio comercial até mais de um século depois (p. 63-4). Um outro estágio
intermediário entre o capital comercial e industrial foi a ‘evolução das
agências em "agências gestoras” (p. 67). Ao longo do século XIX, longe da
“subordinação do capital comercial ao capital industrial”, Banaji mostra o
domínio das “agências gestoras” (‘empresas comerciais que ainda obtinham grande
parte de seu lucro com comissões’) em uma ampla gama de empresas industriais
empresas (p. 72).
Paralelamente ao seu relato de
sucessivos Estados europeus apoiando interesses comerciais, Banaki argumenta
que “o mundo Islâmico tinha suas próprias formas de capitalismo comercial” em
toda parte e antes mesmo de sua emergência no norte da Itália (p. 131). Em suas
páginas iniciais no apêndice, Banaji demonstra que os pensadores muçulmanos
[islâmicos] articularam uma política econômica do capitalismo comercial
(incluindo o conceito de ‘capital’ e da teoria do valor-trabalho)
muito antes de seus homólogos europeus [destaques da tradução]. A diferença
crucial era que embora os estados islâmicos “estivessem dispostos a encorajar o
comércio”, “nunca houve nenhuma contrapartida islâmica violenta da expansão
mercantilista do Ocidente” (p. 132-3).
Luta de classes
Os argumentos apresentados no
livro são um desafio para os seguidores de Robert Brenner. Brenner e os
“marxistas políticos” defendem que o capitalismo foi um desenlace específico da
luta de classes na região rural da Inglaterra que levou à expropriação de
muitos campesinos, que foram forçados a trabalharem como assalariados para
fazendeiros arrendatários. Para os marxistas políticos, segundo o autor, foi
apenas no contexto que os imperativos de mercados sistematicamente vieram a
dominar da produção. No entanto, Banaji apresenta a variedade de maneiras
que o capitalismo assumiu historicamente o controle sobre o trabalho (em outro
lugar ele se referiu a tese de “trajetórias de acumulação”), está longe de se
ser clara que a expropriação campesina seja a história central [destaques
da tradução] [4]. Como Banaji tem repetidamente expressado, isso é crucial para
uma estratégia anticapitalista na Índia pós-colonial [5].
Há pouco tratamento direto da
luta de classes no livro, mesmo que as pequenas discussões sejam
esclarecedoras: onde ele se baseia no trabalho de Tessie Liu, trabalho sobre a
indústria de linho na França do século XVIII e XIX (p. 88-9), ou analisando a
composição peculiar da composição da revolta de Coimpi 1378 (p. 91) [6]. Ainda,
o livro de Banaji mostra que o capital comercial muitas vezes vinculava
diversos locais de trabalho, com algumas partes do processo de produção
realizadas em locais de propriedade de outros capitalistas, outras
subcontratadas e outras “descartadas” (p. 91). A história da luta de classes nesses
diferentes locais de produção (incluindo contextos domésticos) podem ter lições
importantes para nossos tempos. Eles também podem corrigir histórias de gênero
e raciais da luta de classes que falham em não ver a diversidade e interconexão
de tais lutas no passado.
Algumas implicações adicionais
As implicações estendem-se à
história do capital fóssil. Andreas Malm localizou as origens do aquecimento
global no início do século XIX na Inglaterra, argumentando que as lutas de
classes determinaram as mudanças de fabricantes de algodão da energia
hidráulica do carvão e o vapor. Malm reconheceu que o nexo “algodão-vapor não
foi responsável direto por nada parecido com o grosso consumo de carvão” e a
“história total do nascimento da economia fóssil” teria que levar em conta as
aplicações do vapor no transporte marítimo, nas ferrovias e nas produções de
ferro [7]. A Breve História do capitalismo comercial chama a atenção ao
ponto de crucial importância deste último aumento das “velocidades de
circulação” refletidas, como Marx notou, num investimento de capital cada vez
maior em “navegação, ferrovias, telégrafos, etc.” (p. 116). [8]. A Inglaterra
do século XIX pode seria ser o lugar certo para ver como as origens da
mercadoria – economia – dos combustíveis fósseis, mas Banaji relata e levanta a
questão se o “nexo algodão-vapor” foi realmente seu “coração pulsante”.
Finalmente, para os leitores
desse site, o aparecimento desse livro destaca mais uma vez duas de nossas
perdas recentes. Já em 1978, Colin Barker saudou a crítica de Banaji sobre a
redução do conceito de modo de produção (capitalismo) para o modelo de exploração
(trabalho assalariado); sentimos falta da resposta de Colin à mais recente
discussão da relação entre o capital comercial e o poder de estado (e
especificamente, estados competidores) [9]. Da mesma forma, a ênfase de Banaji
sobre o poder estatal levanta a questão de Neil Davidson sobre o papel das
revoluções burguesas na história do capitalismo [10]. Eles não aparecem
neste livro, que enfatiza o caráter cosmopolita do capitalismo comercial e as
“trajetórias da acumulação” em vez de “transições” nacionais para o capitalismo
[destaques da tradução]. Embora o sistema de exploração sob a qual nós
vivemos globalmente esteja cada vez mais interconectado do que nunca, isso
também é caracterizado pelo domínio de classe das competições burguesas
organizadas nos estados nacionais. Entendendo como isso aconteceu e como
isso pode acabar é mais urgente que nunca [destaques da tradução].
Notas do original
[1] E.g. Jairus Banaji, ‘Modes of production in a
materialist conception of history’ [1977], republished in Theory as History. Essays on Modes of
Production and Exploitation (Leiden, 2010), pp. 45–101.
[2] Karl Marx, Capital,
vol. 3, ch. 22, tr. D. Fernbach (London: Harmondsworth, 1981), p. 445.
[3] Marx, Capital,
vol. 3, ch. 22, p. 451.
[4] Jairus Banaji,
‘Trajectories of accumulation of “transitions” to capitalism’ [2008–9],
in: Theory as History,
pp. 347–8.
[5] See e.g. Jairus Banaji, ‘The ironies of Indian
Maoism’, International Socialism Journal,
128 (2010).
[6] See Tessie P. Liu, The Weaver’s Knot: The Contradictions of Class Struggle and
Family Solidarity in Western France, 1750–1914 (Ithaca, 1994).
[7] Andreas Malm, Fossil
Capital: The Rise of Steam Power and the Roots of Global Warming (London,
2016), p. 251.
[8] Citing Marx, Capital,
vol. 3, ch. 18, p. 426.
[9] Colin Barker, ‘A
note on the theory of capitalist states’, Capital
& Class, 4 (1978), 113 n. 3.
[10] Neil Davidson, How
Revolutionary Were the Bourgeois Revolutions? (Chicago, 2012).
Referência
Jairus Banaji, A Brief
History of Commercial Capitalism (Chicago, IL: Haymarket, 2020),
197pps.