“A minha virtude repousa sobre princípios determinados e
fixos. Saberei ter uma vida irrepreensível, mas, deixe-me viver” (BALZAC, A
mulher de trinta anos [La Femme de trente ans]).
por Wesley Sousa (UFSJ)
Um
romance inacabado?
Inicialmente,
devo remeter aqui, sem parecer originalíssimo ou inovador, que, em língua
portuguesa, até os dias que me sento para escrever este ensaio, não há nenhum
estudo particular a essa obra de Honoré de Balzac (1799-1850). No entanto, lembramos
haver um sem-número de estudos que de algum modo relacionam-se ao nome do
escritor e a sua vasta produção. Em outras palavras, a exposição pretendida
parte de uma argumentação que permeie aspectos do pequeno livro, recentrando
sua grandeza não apenas estilística (embora fragmentada, é verdade), mas pelo
modo que a composição do escritor nela adquire, em seu gérmen, narrações
da vida social – as cenas privadas. Doravante, ao centrar nos elementos
que sobressaltam ao ideal de análise literária e do modo como as personagens
ali representam, em seus modos típicos e nas dinâmicas das ações, as
características de uma sociedade de época e as movimentações de classes sociais
expostas.
De
saída, convém relembrar que o adjetivo “balzaquiana” é um desígnio vinculado
ao romance do autor selecionado. Em outros termos, um termo atribuído às
mulheres que atingem certa maturidade – seja de idade, seja psicológica. Ao
contrário do que se possa parecer, essa substantivação, olhada de imediato,
parece-nos pejorativa; entretanto, a observação que se faz na leitura, de modo
atento, torna-se esse termo, por assim dizer, elogioso. O romance é
articulado na parte da “Cenas da vida privada”, referente a coleção imensa de
“A Comédia Humana” – sua obra completa contendo cerca de 85 romances. A obra é
composta também por seis partes (vale mencionar, escritas em momentos difusos
em jornais locais), sendo concluída em 1842 com uma nota específica: “Mesma
história”. Observamos que o livro começa em 1813 e termina em 1844, segundo o
autor deixa a entender ao longo da narrativa. No contexto de diversas mudanças
históricas, as cenas sociopolíticas fornecem ao enredo a dinâmica própria, sem
que o autor precisasse “criar” um cenário. Os cenários, por sua vez, aclimatam
o enlevo da trama, em que as personagens se encaixem nela como peças moventes
das ações. Não como partícipes, mas como atuantes.
Basta-nos
um olhar atento a personagem Julie, que é o eixo pelo qual a história se
desenrola. A não-linearidade do enredo não é o central da composição da obra
literária. Pelo contrário. Aos leitores e leitoras, porém, o enredo é bem
conhecido: ainda adolescente, apaixonada por Arthur d’Aglemont – um coronel do
exército napoleônico –, Julie contraria a vontade do pai e decide se casar.[1] Rapidamente, o casal tem
uma filha, mas percebe Julie que sua filha foi apenas concessão genitora que
lhe compete, sentindo-se presa a uma vida conjugal apenas aparente e à
maternidade. A filha Hélène, a mais velha, ama o pai, e não tem o amor da mãe.
A menina percebe a indiferença, uma indiferença que, na trama, repõe a infelicidade
da personagem, adiante num quase monólogo com o Padre (representante do
oficialato do Antigo Regime), se mostra crítica: a maternidade é exclusiva
às mulheres.
Podemos
caracterizar de modo breve, como sugerem Corrêa, Hess e Rosa, que a “literatura
é sempre mais rica do que a reprodução pura e simples da realidade”; segundo os
autores, um grande escritor explicita “elementos da vida social [que] são
inseridos no texto literário pelo trabalho do escritor, que reduz as
contradições sociais à estrutura do romance, do conto ou do poema, para, assim,
ampliar e tornar visível o que está diluído na vida social” (CORRÊA; HESS;
ROSA, 2019, p. 23). Esse ponto de partida fornece o “caráter realista da
criação literária”. Assim, o pressuposto dos autores é de que realismo não
seria um modelo de literatura ou das artes, mas uma atitude criativa,
um enlace artístico, que une a criação e o criador da obra; este será, pois, ao
que se compele neste ensaio em tela, o realismo que se vê em Balzac.
Portanto,
esse desenrolar, brevemente anunciado, longe de ser um “romance inacabado”,
como pode ser dito por aqueles ou aquelas que, ao lerem a obra, perceberem
certas “desconexões” (é certo que Balzac não revisou a obra antes de
publicá-la); ora, ela deve ser lida como uma passagem de vida, de um
ponto ao outro, da vida da mulher. Uma vida feminina, no caso, embora na cena do
século XIX na França, traz um diagnóstico histórico de momentos e de experiências.
Como sublinha o filósofo húngaro György Lukács, ao se referir a Ilusões
Perdidas do autor francês, assevera desta maneira: “Seu olhar penetra
camadas mais profundas, ele enfrenta os problemas mais profundos. Percebe que o
fim heroico da evolução burguesa na França é, ao mesmo tempo, o início da
evolução do capitalismo francês” (LUKÁCS, 1968, p. 103). Esse desenvolvimento,
ademais, se mostra na forma que as personagens encorparam os movimentos
históricos e nas cenas narradas: o velho e o novo formam a dialética do romance
num presente próprio. Neste caso, atentemos ao romance aqui trabalhado.
A
dialética do romance em Balzac – o casamento burguês
No
interessante estudo da professora de literatura comparada e literatura
francesa, Sandy Petrey (cf. PETREY, 1988), cuja pesquisa trata o realismo
balzaquiano (na obra literária de O Coronel Chabert) na França com os
escritos de Karl Marx (no livro O 18 de Brumário de Luís Bonaparte), a
autora defende a tese de que “Balzac e Marx estão em perfeita concordância com
a exata descrição da existência social requerer acordo de igual importância de
como o material pode se tornar sem sentido e como o significado pode ser
material” (PETREY, 1988, p. 461). Essa concordância, segundo penso, merece
destaque. Não apenas por Marx ser um admirador e leitor conhecido da literatura
de Balzac, mas principalmente, por meio da arte literária, onde os problemas e
dilemas de mundo podem ser trazidos como são, com certa autonomia, revela sua
grandeza com a universalidade dos problemas do ser humano em sociedade. As
cenas parisienses, na letra de Balzac, mais do que narrar a vida social, os
costumes, as mudanças políticas e econômicas da França, ele consegue, ainda
mais, captar a unidade universal da época em que viveu.
Na
verdade, Balzac era um tipo de conservador no aspecto político, como se sabe, entretanto,
ao estar atento ao mundo francês, as transformações e às dinâmicas que ali
observava e vivia, pode desvelar, por meio de sua crítica, a vida dos amores
“livres”, sob o casamento como forma de contrato jurídico e modelo familiar da
vida humana no tempo presente. Isso que lhe possibilitou a seguinte
problemática que envolve a personagem protagonista do romance: Julie era a momento-personagem
que se dirigia às mulheres que correm atrás das paixões na nova vida burguesa
“concedida”. Porém, com essa sensação de insaciedade, acabavam sofrendo as
consequências dos seus atos. Ele observa atentamente este tipo de pensamento
feminino.
No
entanto, a obra acabou, por assim dizer, o “traindo”. Em A mulher de trinta
anos é isso que está em jogo: a passagem de Julie à Hèléne aponta que a
infelicidade da mãe culminou numa culpa destinada à fuga de sua filha da realidade
encarcerada (o que se pode ver na quinta parte). Tal fuga, embora relacionada
ao princípio da escolha, não se descolou da vivência fortuita que Julie
carregou para si. A sua filha mais velha, em um desabafo ao pai, quando veio em
sua procura após fugir com um marinheiro:
Os
meus desejos são mesmos excedidos; todos os meus caprichos, satisfeitos. Enfim,
reino sob o mar, e sou obedecida como pode ser uma soberana. Ah! Feliz! Feliz
não é a palavra que possa exprimir minha ventura. Pertence-me a parte de todas
as mulheres! Sentir um amor, uma dedicação sem limites por aquele que se ama, e
encontrar no seu coração um infinito sentimento onde a alma duma mulher se
perde, e sempre! Diga-me, há ventura melhor? [...] A linguagem humana é
insuficiente para exprimir uma felicidade celeste (BALZAC, 1996, p. 130).
Vejamos:
a novidade amorosa que a sociedade burguesa exposta por Balzac na “Comédia
Humana”, e em especial no romance aqui estudado, se refere a evidenciação das
novas relações conjugais em que o amor já faz parte da própria individuação e
da capacidade de escolha individual dos sujeitos. É característico que, em dado
momento – ou melhor, anos antes – a tia do esposo de Julie – a marquesa
Listomère – uma senhora que, encarnada nos modos do Antigo Regime, venha
a “consolar” a sobrinha de sua angústia pós-casamento. Aqui essa cena é muito
distinta com o desabafo de Hèlene ao pai. O general é simples e amoroso à
filha, que temeu perdê-la; Julie apenas é receptiva e permissível à senhora
marquesa. A narrativa de Balzac consiste em explicitar a personalidade
condescendente da velha tia do esposo à personagem Julie: “A tia não chorou,
porque a Revolução deixou poucas lágrimas nos olhos das mulheres da antiga
monarquia” (BALZAC, 1996, p. 34). Essa nova e perspicaz observação balzaquiana
põe em relevo a nova gramática amorosa, qual seja, a que Julie expressa.
Outro
ponto a ser notado é que, enquanto no âmbito político a Monarquia dos Bourbouns
regressava ao domínio institucional no país, Balzac notando esse “regresso” –
um regresso no sentido de retorno –, essa cena é própria da trama: “[...]
a pobre Julie sobre um profundo desgosto que muito devia influir na vida:
perdeu a marquesa de Listomère Landou”. Em outras palavras, a morte da velha
tia significava, objetivamente, “a pessoa a quem a idade dava o direito de
esclarecer Vitor, a única que, por conselhos sensatos, poder tomar mais
perfeito o acordo entre a mulher e o marido, essa pessoa morrer. [...] Não
tinha mais ninguém entre ela e o marido [...]” (Idem, p. 37). Com isso, as
novas normas morais, as intenções subjetivas dos afetos e das afeições agora
expostas em a “mediação” da velha tia, deixou enterrada junto a ela, os “velhos
costumes”; agora a angústia e a incerteza de um amor desencantado, por outro
lado, era patente.
Nesse
ponto, podemos demarcar o grande realismo balzaquiano na obra, que vai
atravessar, até o final, com uma velocidade intensa dessa nova dinâmica
social emergente ao redor de Julie. Em seu diálogo com o Padre, percebe sua
indiferença religiosa para as explicações e justificativas do “destino” que
escolheu; mais do que isso, entende-se aqui um contraste entre “laicidade da
relação matrimonial” oposta à exasperação cristã da união conjugal.
Vejamos
a questão que sobressalta aqui. Ela é a seguinte: Balzac não “reproduz” mecanicamente
o machismo de época de que um homem de “trinta anos” seria jovem (como é
o caso do seu cônjuge Vitor d’Aiglemont), e a mulher, por outro lado, com a
mesma idade seja velha. O que está em jogo seria então a tipologia
social das representações e dos papeis de gênero colocados ali? Se for isso,
essa será a subversão balzaquiana. Ao pensarmos a questão sendo as
formas matrimoniais, cujo patriarcalismo é o enlace objetivo da marca histórica
na base social, é possível ver que os papeis de gênero poderiam servir como
ponto de chegada na crítica, ou seja, a subsunção de duas pessoas num casamento
está ligada à maneira de como a sociedade promove a relação amorosa, sob prisma
da cisão entre o público e o privado.
A
privação pela qual dizemos aqui é a privação em que se efetiva via casamento, e
a família, a base essencial assentada numa sociedade em que a monogamia é o
elemento objetivo, o que independe da “crise” conjugal, seja nos adultérios,
seja nas “escolhas” afetivas no limiar do casamento. É interessante notar, e a
lembrança aqui se torna essencial, de Friedrich Engels, quando afirma em A
origem da família, da propriedade privada e do Estado:
A
indissolubilidade do matrimônio é consequência, em parte, das condições
econômicas que engendraram a monogamia e, em parte, uma tradição da época em
que, mal compreendida ainda, a vinculação dessas condições econômicas com a
monogamia foi exagerada pela religião. Atualmente, já está fendida por mil
lados. Se o matrimônio baseado no amor é o único moral, só pode ser moral o
matrimônio onde o amor existe (ENGELS, 2012, p. 107).
Pois
bem, o argumento de Engels aponta para dois problemas: o primeiro é a
historicidade pela qual a monogamia surge; o segundo é que o amor autentico é
antitético ao tipo de existência de um matrimônio onde o amor seja insignificante.
Voltando
ao romance. Ao observamos de perto o título do romance de Balzac marcará apenas
um ponto culminante da vida da mulher: sua maturidade. Aqui maturidade não é os
“trinta anos” fixos de Julie, refere-se à capacidade de experiências adquiridas,
de novos e melhores atributos que só a idade pode fornecer; e, com isso,
mulheres mais maduras apresentam-se mais interessantes do que as mais novas,
pelo fato destas serem mais suscetíveis às escolhas irrefletidas ou tomadas por
momentos de grande euforia. A obra ao trazer a vida de Julie desde nova até sua
maturidade marca esse aspecto de transitoriedade das ações, emoções, etc. que a
história é constituída.
Nas
mulheres novas da idade da marquesa, essa primeira dor é a mais marcante de
todas e é sempre causada pelo mesmo fato. A mulher, e principalmente a mulher
nova, tão grande pela alma como pela beleza, nunca deixa de se consagrar à vida
para a qual a natureza, o sentimento e a sociedade a impelem com violência.
[...] De resto, esses sentimentos nunca se confiam; para se consolar uma
mulher, é mister saber advinha-los; porque, sempre amarga e religiosamente
sentidos, permanecem na alma, como uma avalanche que, se precipitando sobre uma
encosta, esmaga o que encontra até achar um lugar (BALZAC, 1996, p. 64).
Segundo
o escritor, a mulher madura é vista com bons olhos, pois supera a ingenuidade
da mocidade feminina. A história de Julie não é somente a história de uma pequeno-burguesa
em ascensão (conhecida como “marquesa”), nem é uma narrativa frustrada de uma
mulher que se decepciona com um casamento “escolhido” por ela, que suas
lamúrias seriam, portanto, individualistas e mesquinhas. Na verdade, o que está
em jogo na obra de Balzac é que esses elementos serão efeitos, não suas causas
reais. Nesse meio tempo, no romance, quase sucumbe à paixão por outro homem, Lord Arthur
Grenville, mas a relação não prospera: o dever do casamento a impede de
concretizá-la. “Não me quero prostituir a meus olhos nem aos olhos do mundo;
se não serei mais ao sr. d’Aiglemont, nem de nenhum outro” (BALZAC, 1996, p.
52).
No seu
amante inicial, vê-se que a “conveniência” das relações extraconjugais, por
parte das mulheres, era apenas uma resposta imediata às traições dos homens
durante o casamento, e no romance, Balzac efetua este contraste, no final,
sintetizando os desfechos pelos quais a velha Julie não pode dar-se conta.
O
desgosto será tão mortal como poderia ser a terrível doença que me curou. Não
me julgo culpada. Não, os sentimentos que concebi por si são irresistíveis,
eternos, mas bem involuntários, e eu quero me conservar virtuosa. Contudo,
serei ao mesmo tempo fiel à minha consciência de esposa. Aos meus deveres de
mãe e aos votos do meu coração” (BALZAC, 1996, idem).
Com
isso, gradualmente a infelicidade de Julie se tornaria uma doença física: a
tristeza que a leva cair em profunda depressão. O decaimento físico de Julie é
um sinal de que as relações humanas estão descaracterizadas por sua natureza. O
amor, cujo qual seria um elo entre dois indivíduos em sua gênese de sentimento
puramente humano, se torna um sentimento frívolo e banal.
O diagnóstico
da psicologia humana das personagens como elemento de ação delas, em que a
trama parece tomar caminhos próprios, conforme Lukács expõe em O Romance
Histórico, pode ser colocado da seguinte maneira: ao fazer um paralelo
comparativo de Balzac com Walter Scott, argumenta o autor húngaro que Balzac
vai muito além do escritor inglês, pois o escritor francês é quem “desenvolveu
da maneira mais consciente o impulso que Walter Scott deu ao romance, criando
assim um tipo superior e até então inédito de romance realista” (LUKÁCS, 2011,
p 106). O impulso consciente, para Lukács, é a capacidade de que o
escritor teve de desvelar a psicologia das personagens, de tal modo que elas se
autonomizariam na trama e, assim, o escritor seria um narrador atento aos
desenvolvimentos imanentes, sem imputar resultados ou desfechos previamente
estabelecidos para coadunar eventualmente com a ideação anterior do autor.
Esse é
um exemplo típico que se encontra na trama. Seu desenrolar adota um sentido
mais histórico do que lógico, quando percebemos que no seu decorrer, as
transformações francesas no cenário político são trazidas à baila como
indissociáveis das movimentações internas das personagens. A dialética interna
do romance de Balzac é especialmente não se tratar de um romance amoroso de
folhetim, porém é de expor o destino social da mulher e da instituição
do casamento no mundo burguês apenas como responsabilidade: suas frivolidades,
hipocrisias, como apêndices de uma instituição necessária e “perene” do
capitalismo.
Um
romance “amoral”?
Atentemos
a alguns pontos. Menciono três. 1) É possível partir de um pressuposto que o
romance de Balzac seja uma obra que coloca a figura feminina, censurada à
época, sob um prisma de compreensão, sem quaisquer julgamentos morais? 2) Também
podemos entender o romance, cujo enredo seria a compreensão dialética entre o amor
e casamento na sociedade burguesa, na figura de madura Julie, passando por
Hèléne e a jovem Moïna?[2] 3) O casamento, nesse
aspecto, pode ser considerado uma degradação moral?
Para
esboçar-nos algumas saídas às perguntas acima, precisemos alguns pontos de
ajustes. Para isso, centralizo a um ponto de cada vez e ao final oferecer,
digamos, não uma conclusão, mas direcionamentos que, assim sendo,
auxilie-nos a ver se o romance de Balzac seria um romance amoral. No
primeiro ponto, destaco que a imoralidade do romance se expressa quando,
no decorrer da trama, as frustrações dos romances extraconjugais de Julie nunca
são colocadas como empecilhos de felicidade, mas a infelicidade é que se torna
inviável às tentativas amorosas suas. Em segundo ponto, seu marido nunca se põe
contra as vontades da esposa, o que, por si só, longe de ser algum critério,
passa ser notado que ele não tem poder moral para mudar as condições existentes
de Julie. O general passa o romance inteiro como coadjuvante da trama. Seu
papel secundário dará sustentação para a infeliz concatenação do final do
romance: as perdas dos filhos e filhas, a esposa que se vê fustigada pela vida
que leva; sua vida de burocrata do Estado e, ao fim, um amor fraterno à filha
mais velha como alívio sentimental que lhe deu algum motivo para agir enquanto
protagonista de sua vida.
Por
outro lado, a marquesa Julie, aos 30 anos, “ápice poético da vida das
mulheres”, teve a oportunidade de conhecer o diplomata Charles de Vendesesse; e
ao se entregar intensamente a essa nova paixão, o romance caminha para
acontecimento e circunstâncias que pouco a pouco desenharão um destino trágico
da vida burguesa: a reificação das relações humanas. A reificação
é aqui um fenômeno em que a materialidade da vida é determinante para o modo de
viver, em que as pessoas não se relacionam como entidades próprias, mas por coisas,
e as coisas são, na trama de Balzac, um destino confinado na degradação da
autenticidade vital e sentimental das personagens. Nisso, o casamento
burguês desempenhará o papel de reificação do amor como escolha sentimental
consciente dos seres humanos. Na questão, a mais interessante aqui
destacar, por fim, a seguinte passagem:
A
marquesa viu certamente um presságio do céu no respeito que o destino parecia
ter pela filha preferida, e apenas umas fracas recordações dos filhos que a
morte lhe arrebatara ao sabor dos seus caprichos, e que conservava no fundo de
sua alma, como se esses túmulos erigidos num campo de batalha, que quase
desaparecem sob as flores do campo (BALAC, 1996, p. 139).
Para
finalizar a breve argumentação, há uma questão, embora igualmente no livro não
seja a central – o título –, mas é onde o circuito de movimentos estão em
volta: Balzac, com essa obra ficou conhecido por eternizar a expressão “mulher
balzaquiana”. Foi na maturidade – na época, aos 30 anos – que Julie, Hélène ou
Moïne revelaram o que são de fato. Essas revelações, entre os desejos
consolidados, anseios e as paixões vividas, não sendo posturas puramente
morais, mas condicionantes. Fica claro que Balzac não moraliza
seu romance, mas percebe que as moralidades são uma espécie de jogo de forças,
pelas quais as personagens recomponham suas características, ainda que elas sejam
tonificadas pela frieza dos atos. Assim, a “mulher de trinta anos” é aquela em que
as escolhas amorosas e as uniões conjugais ultrapassariam às normas sociais das
relações imperfeitas e instituídas.[3] Portanto, se a um crítico literário
importa o que está em jogo na tessitura social romanesca, então será cabível
dizer que um estudo materialista do romance considerará os elementos
proeminentes nas investigações literárias, seja elas quais forem. O debate
sobre teoria literária e arte no marxismo ainda não é imenso, mas é certo que
os esforços são contínuos.
Referências
BALZAC, Honoré. A mulher de
trinta anos. Tradução Marques Rebelo. 5° edição. Ediouro, 1996.
CORRÊA, Ana Laura dos Reis;
HESS, Bernard Herman; ROSA, Daniele dos Santos (orgs.). Caderno de
literatura: um percurso de formação em literatura na educação do campo. 1°
edição. São Paulo: Expressão Popular, 2019.
EAGLETON, Terry. Marxism and critical
literary. (With a new preface by
the author) London e New York: Routledge, 2003.
ENGELS, Friedrich. A origem
da família, da propriedade privada e do Estado. Tradução Leandro Konder. 3°
edição. São Paulo: Expressão Popular, 2012.
LUKÁCS, György. “Balzac: Les
Illusions Perdues”. In: Ensaios sobre literatura. Organização e
apresentação Leandro Konder. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968 p.
101-121.
LUKÁCS, György. O Romance
histórico. 1° edição. Tradução Rubens Enderle. Apresentação Arlenice Silva.
São Paulo: Boitempo, 2011.
PETREY, Sandy. “The Reality of Representation: Between Marx and Balzac”. Critical Inquiry, v. 14, n. 3, 1988, p. 448-468.
[1] Em
uma das passagens que mostra os diálogos tensos entre o velho pai e a filha:
“Pois bem, minha filha, escuta-me. As moças sonham muitas vezes com uns seres
nobres e encantadores, criaturas perfeitamente ideais, e assim forjam umas
quiméricas fantasias acerca dos homens, dos sentimentos e do mundo; depois,
elas atribuem inocentemente a um caráter as perfeições com que sonharam, e nele
confiam; elas amam no homem de sua escolha esse ente imaginário; porém, mais
tarde, quando já não podem fugir à desgraça, a aparência enganadora que elas
embelezaram, o seu primeiro ídolo, enfim, muda-se num esqueleto odioso”
(BALZAC, 1996, p. 21).
[2] “A
situação desta mãe compreender-se-á explicando a da filha” (BALZAC, 1996, p.
143).
[3] Convém advertir também o duplo aspecto da produção artística/literária aqui entendida: “Podemos ver a literatura como um texto, mas podemos também ver como uma atividade social, uma forma de produção social e econômica que existe ao lado de outras formas interrelacionadas com elas (EAGLETON, 2003, p. 56).