Uma definição de capitalismo

 O texto abaixo é de autoria de E. K. Hunt e Mark Lautzenheizer, extraído do livro “História do pensamento econômico: uma perspectiva crítica”, traduzido da terceira edição do inglês e publicado em português pela editora Campus/Elsevier, em 2013. O trecho na paginação do livro é um subcapítulo da Introdução (“Uma definição de capitalismo”, p. 1-5, in. p. 1-17).

 

A afirmação de que as tentativas de compreender o capitalismo começaram com Adam Smith é, naturalmente, muito simplista. O capitalismo como sistema econômico, político e social dominante surgiu muito lentamente, em um período de vários séculos, primeiro na Europa Ocidental e, depois, em grande parte do mundo.  À medida que surgiam, as pessoas buscavam compreendê-lo.

Para resumir as tentativas de compreender o capitalismo, é necessário, primeiro, defini-lo e, então, rever resumidamente as principais características históricas de seu aparecimento. Deve-se afirmar desde já que não há consenso geral entre economistas e historiadores econômicos quanto ao que sejam as características essenciais do capitalismo. D e fato, alguns economistas sequer acreditam que seja útil definir sistemas econômicos diferentes; eles acreditam em uma continuidade histórica, na qual os mesmos princípios gerais são suficientes para compreender todos os ordenamentos econômicos. Entretanto, a maioria dos economistas concordaria que o capitalismo é um sistema econômico que funciona de modo bem diverso dos sistemas econômicos anteriores e dos sistemas econômicos não capitalistas. Este livro é baseado numa abordagem metodológica que define um sistema econômico segundo o modo de produção no qual se baseia. O modo de produção, por sua vez, é definido pelas forças produtivas e pelas relações sociais de produção.

As forças produtivas constituem o que comumente se chamaria tecnologia produtiva de uma sociedade. Essa tecnologia consiste no estado atual do conhecimento técnico ou produtivo, nas especializações, técnicas organizacionais etc., bem como nas ferramentas, implementos, máquinas e prédios usados na produção. Dentro de qualquer conjunto de forças produtivas, deve-se incorrer em determinados custos necessários à manutenção da existência do sistema. Outros recursos, as matérias-primas, devem ser continuamente extraídos da natureza. Maquinaria, ferramentas e outros implementos de produção desgastam-se com o uso e devem ser substituídos. Mais importante ainda é que os seres humanos, que fazem o esforço necessário para assegurar a disponibilidade das matérias-primas e para transformá-las em produtos acabados, devem ter uma quantidade mínima de alimentos, roupas, moradia e outros bens necessários à vida em sociedade.

Os modos de produção que não satisfizeram a essas necessidades mínimas de produção contínua desapareceram. Muitos modos históricos de produção conseguiram atender a essas necessidades mínimas durante certo tempo, mas, devido à mudança das circunstâncias, tornaram-se incapazes de continuar a fazê-lo e, consequentemente, se extinguiram. A maioria dos modos de produção que continuaram a existir por muito tempo, de fato, tem produzido não apenas o suficiente para atender às necessidades mínimas, mas também um excesso, ou excedente social, além dos custos necessários. O excedente social é definido como aquela parte da produção material da sociedade que sobra, após serem deduzidos os custos materiais necessários para a produção.

O desenvolvimento histórico das forças produtivas tem resultado em uma capacidade sempre crescente de as sociedades produzirem excedentes sociais cada vez maiores. Dentro dessa evolução histórica, cada sociedade tem sido dividida, de modo geral, em dois grupos separados. A maioria das pessoas, em cada sociedade, trabalha exaustivamente para produzir o necessário para sustentar e perpetuar o modo de produção, bem como o excedente social, enquanto uma pequena minoria se apropria desse excedente e o controla. Neste livro, as classes sociais são diferenciadas entre si em função desse fato; as relações sociais de produção são definidas como relações entre essas duas classes. Um modo de produção é, portanto, o conjunto social da tecnologia de produção (as forças produtivas) e os arranjos sociais através dos quais uma classe une suas forças produtivas para produzir todos os bens, inclusive o excedente, e a outra dele se apropria (as relações sociais de produção).

No contexto desse conjunto geral de definições, podemos definir capitalismo como o modo particular de produção com o qual os pensadores estudados neste livro têm se preocupado. O capitalismo é caracterizado por quatro conjuntos de arranjos institucionais e comportamentais: produção de mercadorias, orientada para o mercado; propriedade privada dos meios de produção; um grande segmento da população que não pode existir, a não ser que venda sua força de trabalho no mercado; e comportamento individualista, aquisitivo, maximizador, da maioria dos indivíduos dentro do sistema econômico. Cada uma dessas características será discutida brevemente.

No capitalismo, o valor dos produtos do trabalho humano é dado por duas razões distintas. Primeiro tais produtos têm características físicas particulares, em virtude das quais se tornam utilizáveis e satisfazem às necessidades humanas.

Quando uma mercadoria é avaliada por seu uso na satisfação das nossas necessidades, diz-se que tem valor-de-uso. Todo produto do trabalho humano, em todas as sociedades, tem valor de uso. No capitalismo, os produtos têm valor porque podem ser vendidos no mercado, em troca de dinheiro. Esse dinheiro é desejado porque pode ser trocado por produtos que têm um valor de uso desejado. Na medida em que os produtos têm valor, porque podem ser trocados por moeda, diz-se que eles têm valor de troca. O s produtos do trabalho humano têm valor de troca somente nos modos de produção caracterizados pela produção de mercadorias. Para que a produção de mercadorias exista, é preciso que a sociedade tenha um mercado muito desenvolvido, no qual os produtos possam ser livremente comprados ou vendidos em troca de moeda. Existe produção de mercadorias quando os produtos são fabricados pelos produtores sem qualquer interesse pessoal imediato em seu valor de uso, mas, sim, em seu valor de troca. A produção de mercadorias não é um meio direto de satisfação de necessidades. É um meio de adquirir moeda pela troca de produtos por moeda, que, por sua vez, pode ser utilizada na compra dos produtos desejados por seu valor de uso. Sob tais condições, os produtos do trabalho humano são mercadorias, e a sociedade é caracterizada como voltada para a produção de mercadorias.

Na produção de mercadorias, a atividade produtiva de uma pessoa não tem qualquer ligação direta com seu consumo; ambos devem ser mediados pela troca e pelo mercado. Além disso, uma pessoa não tem qualquer ligação direta com as pessoas que produzem as mercadorias que consomem. Tal relação social também é mediada pelo mercado. A produção de mercadorias implica um alto grau de especialização produtiva, em que cada produtor isolado cria somente uma ou poucas mercadorias, dependendo, assim, de que outros indivíduos, com quem ele não tem qualquer relação pessoal direta, comprem suas mercadorias no mercado.

Uma vez que ele tenha trocado suas mercadorias por dinheiro, novamente dependerá de que pessoas com as quais ele não tem relação pessoal direta ofereçam, no mercado, aquelas mercadorias que ele tem de comprar para satisfazer às suas necessidades pessoais.

Nesse tipo de economia, existem inter-relações e dependências econômicas extremamente complexas e que não envolvem interação e associação pessoal direta. O indivíduo interage somente com a instituição social impessoal do mercado, no qual o indivíduo troca mercadorias por moeda e moeda por mercadorias. Consequentemente, o que, em realidade, é um conjunto de complexas relações econômicas e sociais entre pessoas é, para cada indivíduo, apenas uma série de relações impessoais entre coisas – isto é, mercadorias. Cada indivíduo depende das forças impessoais do mercado, de compra e venda, ou demanda e oferta, para a satisfação de suas necessidades.

A segunda característica definidora do capitalismo é a propriedade privada dos meios de produção. Isso significa que a sociedade dá a certas pessoas o direito de determinar como matérias-primas, ferramentas, maquinaria e prédios destinados à produção podem ser usados. Tal direito necessariamente implica que outros indivíduos sejam excluídos do grupo daqueles que têm algo a dizer sobre como esses meios de produção podem ser usados. A s primeiras defesas da propriedade privada falavam em termos de cada produtor individual possuir – e, portanto, controlar – os meios de sua própria produção. No entanto, muito cedo na evolução do capitalismo, as coisas se desenvolveram de modo diferente. De fato, a terceira característica definidora do capitalismo é que muitos produtores não são proprietários dos meios necessários para a execução de sua atividade produtiva. A propriedade se concentra nas mãos de um pequeno segmento da sociedade – os capitalistas. Um capitalista proprietário não precisava representar qualquer papel direto no processo produtivo, de modo a controlá-lo; a propriedade lhe dava esse controle. E essa propriedade foi o que permitiu ao capitalista apropriar-se do excedente social. Assim, a propriedade dos meios de produção é a característica do capitalismo que confere à classe capitalista o poder pelo qual controla o excedente social, estabelecendo-se, a partir daí, como classe social dominante.

Essa dominação, é claro, implica a terceira característica definidora de capitalismo – a existência de uma numerosa classe trabalhadora, que não tem qualquer controle sobre os meios necessários para a execução de suas atividades produtivas. N o capitalismo, a maioria dos trabalhadores não possui as matérias-primas nem os implementos com os quais produz mercadorias. Isso quer dizer que as mercadorias que os trabalhadores produzem não lhes pertencem, mas sim, aos capitalistas proprietários dos meios de produção. O trabalhador típico entra no mercado possuindo ou controlando somente uma coisa – sua capacidade de trabalho, isto é, a sua força de trabalho. Para se dedicar à atividade produtiva, tem de vender sua força de trabalho a um capitalista. Em troca, recebe um salário e produz mercadorias que pertencem ao capitalista. Desse modo, ao contrário de qualquer outro modo de produção anterior, o capitalismo faz da força produtiva humana uma mercadoria em si mesma – a força de trabalho – e gera um conjunto de condições pelas quais a maioria das pessoas não pode viver, a não ser que sejam capazes de vender a mercadoria de que é proprietárias – a força de trabalho – a um capitalista, em troca de um salário. Com esse salário, podem comprar dos capitalistas somente uma fração das mercadorias que eles mesmos produziram. O restante das mercadorias que produziram constitui o excedente social e é retido e controlado pelos capitalistas.

A quarta e última característica definidora de capitalismo é a de que a maioria das pessoas é motivada por um comportamento individualista, aquisitivo e maximizador. Isso é necessário para o funcionamento adequado do capitalismo. Primeiro, para assegurar uma oferta adequada ao trabalho e facilitar o rígido controle dos trabalhadores, é necessário que produzam mercadorias cujo valor exceda em muito o valor das mercadorias que consomem. Nos primórdios do capitalismo, isso foi conseguido de dois modos. Primeiro, os trabalhadores recebiam salários tão baixos que, com suas famílias, viviam nos limites da mais extrema insegurança e pobreza materiais. O único modo claro de reduzir a insegurança e a pobreza era trabalhar mais horas e mais intensamente, para obter um salário mais adequado e evitar ser forçado a juntar-se ao grande exército de trabalhadores desempregados, que tem sido um fenômeno social sempre presente no sistema capitalista.

À medida que o capitalismo foi evoluindo, a produtividade dos trabalhadores foi crescendo. Eles buscavam organizar-se coletivamente em sindicatos e associações de trabalhadores, para lutar por melhores salários. Por volta do final do século passado e início do século XX, após diversos avanços e inúmeros retrocessos, essa luta começou a surtir algum efeito. Desde então, o poder de compra do salário do trabalhador vem crescendo lenta e firmemente. Em lugar da privação física generalizada, o capitalismo tem sido obrigado a recorrer cada vez mais a novos tipos motivação, para manter a massa dos trabalhadores produzindo o excedente social. Um novo ethos social, às vezes chamado consumismo, tornou-se dominante. Caracteriza-se pela crença de que mais renda, por si só, sempre significa mais felicidade.

Os mores sociais do capitalismo têm levado as pessoas a acreditar que praticamente toda necessidade ou infelicidade subjetiva pode ser eliminada comprando-se mais mercadorias. O mundo competitivo e economicamente inseguro no qual se movem os trabalhadores cria sentimentos subjetivos de ansiedade, solidão e alienação. A maioria dos trabalhadores vê como causa desses sentimentos sua própria incapacidade de comprar mercadorias suficientes para fazê-los felizes. Contudo, à medida que recebem salários maiores e compram mais mercadorias, verificam que o sentimento geral de insatisfação e ansiedade continua. Assim, os trabalhadores tendem a concluir que o problema é que o aumento dos salários é insuficiente. Como não identificam a verdadeira origem de seus problemas, caem em um círculo vicioso asfixiante, no qual quanto mais se tem, mais necessidade se sente; quanto mais rápido se corre, mais devagar se parece andar; quanto mais arduamente se trabalha, maior parece ser a necessidade de trabalhar cada vez mais arduamente.

Em segundo lugar, os capitalistas também são induzidos a um comportamento combativo e aquisitivo. A razão mais imediata disso é o fato de que o capitalismo sempre foi caracterizado pela luta competitiva entre capitalistas por fatias maiores do excedente social. Nessa luta sem fim, o poder de cada capitalista depende do volume de capital que ele controla. Se os concorrentes de um capitalista adquire capital – e com isso, tamanho e poder econômico – mais rapidamente que ele, maior a probabilidade de ele ter de enfrentar a própria extinção. Assim, sua existência como capitalista depende de sua habilidade em acumular capital pelo menos no mesmo ritmo que os concorrentes. Daí o capitalismo ter sido sempre caracterizado pelo esforço frenético dos capitalistas em obter mais lucro e converter seus lucros em mais capital.

O consumismo entre capitalistas têm sido importante também para o funcionamento adequado do capitalismo. No processo de produção, os capitalistas se apropriam do excedente produzido, a mais-valia, sob a forma de mercadorias. Para que essa mais-valia seja convertida em lucro monetário, essas mercadorias devem ser vendidas no mercado. Pode-se esperar, de modo geral, que os trabalhadores gastem todo o salário em mercadorias, mas seus salários podem comprar só parte das mercadorias produzidas (caso contrário, não haveria qualquer excedente social). Os capitalistas comprarão muitas mercadorias como investimento a acrescentar à sua acumulação de capital. Entretanto, essas duas fontes de demanda jamais foram suficientes para gerar o gasto necessário para os capitalistas, como classe, para venderem todas as suas mercadorias. Portanto, para haver uma procura monetária suficiente para os capitalistas venderem todas as suas mercadorias, é preciso uma terceira fonte de demanda: os gastos crescentes de consumo dos próprios capitalistas.

Quando tal procura não se concretiza, o capitalismo sofre depressões; quando as mercadorias não podem ser vendidas, os trabalhadores são despedidos, os lucros caem, gerando uma crise econômica geral. O capitalismo, através de sua história, tem sofrido crescentes crises dessa espécie. Uma grande preocupação da maioria dos pensadores econômicos discutida neste livro tem sido compreender a natureza e as causas dessas crises e descobrir remédios para eliminá-las ou, ao menos, aliviar seus efeitos.

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