Por Nildo Ouriques
Publicado originalmente no site Le Monde Diplomatique
Data 14 de Agosto de 2014
A vida
sustentada pelo antigo mito da estabilidade em que se apoiaram os governos
tucanos já não é mais possível e, de certa forma, tampouco o governo petista
pode manter o controle da situação apenas com o “princípio de transformação da
matéria mítica”, o crescimento
O Plano Real é o maior pacto de classe conquistado pela burguesia brasileira após abril de 1985. Fernando Henrique Cardoso lançou mão da antropologia estrutural de Lévi-Strauss para justificar sua adoção poucos dias antes de sua eleição para a Presidência da República ao assinalar o caráter simbólico, de extração mítica, da estabilização monetária. “A minha experiência de campanha é a seguinte: tudo aqui é simbólico. Você necessita criar um mito. E tem que contar a mesma história repetindo quem é bom e quem é mau. Tem que ter dois ‘Y’ e vai mudando na estrutura do mito, como Lévi-Strauss. É binário: o bem e o mal. Tem que contar durante toda a campanha de várias maneiras, o mesmo mito. Em nosso caso é a moeda. O que é o mal? A inflação. O que é o bem? A estabilização. Foi o que fizemos. A cada momento eu ataco outra vez o mito principal. Mito no sentido antropológico. Você tem que chegar à estrutura mais elementar e insistir nela. A cada três ou quatro programas eu volto ao assunto. O real é bom, a inflação é má. Quem está com a inflação são os maus, quem está com o real são os bons. Foi apenas isso.” (Veja, 27 set. 1994).
Enfim,
o mito da moeda forte deu a eleição a FHC. No entanto, ainda que exale certa
elegância, a lição estava incompleta. A antropologia estrutural de
Lévi-Strauss, o antropólogo francês, revela a estrutura binária do mito, mas
indica também, em outro texto, a importância da “morte dos mitos”, algo útil
para analisar a situação atual quando observamos sinais de exaustão social com
a estabilidade monetária.
No
contexto brasileiro, quando as dificuldades do Plano Real se revelaram no
segundo mandato de FHC e amplos setores sociais começaram a exigir o
crescimento econômico, ocorreu o “princípio de transformação da matéria mítica”,
ou seja, do mito da estabilidade nasceu o mito do crescimento econômico. Na
primeira fase – os dois mandatos de FHC –, a função do mito garantiu a
necessidade burguesa da estabilidade monetária. O ativismo sindical da época
inflacionária não somente desacreditava o mercado, como indicou o comportado
Keynes, mas, sobretudo, permitia que a luta dos trabalhadores para recuperar o
poder de compra corroído pela inflação alta impulsionasse níveis de consciência
crítica maior no sindicalismo brasileiro. No período presidencial de Lula,
quando a estabilidade já era “pão comido” e as novas gerações já não se iludiam
com o fantasma da volta da inflação – na realidade, estavam muito mais
interessadas na luta contra os baixos salários –, surgiu no final do primeiro mandato
(2003-2006) o mito do crescimento, ou seja, o princípio da transformação da
matéria mítica que consta na antropologia estrutural do professor francês que
se fez intelectual na colonização da USP.
Não
há, portanto, oposição entre a fase neoliberal do Plano Real (governo FHC) e a
emergência da fase desenvolvimentista (governos Lula e Dilma). Há, antes de
tudo, necessária continuidadeentre os dois governos, ainda que a fabricação da
opinião pública insista na oposição partidáriaentre petistas e tucanos, como
se, de fato, ambos não compartilhassem a mesma razão economia-política. Na
prática, tem razão Gilberto Vasconcellos ao afirmar a existência do
“petucanismo”, essa perversa forma de dominação burguesa que perpetua o
desenvolvimento do subdesenvolvimentono país, limitando o destino da nação à
condição de um anão no jogo de poder mundial, da mesma forma que realiza uma
inédita digestão moral da pobreza conveniente para as classes dominantes e, de
quebra, exibe a impotência da burguesia industrial comandada por São Paulo.
Não
há que se iludir sobre o fundamental, pois tanto a fase da estabilidade
econômica quanto o posterior “crescimento” outro destino não possuem senão a
manutenção do país na condição de um gigante com pés de barro. Ambas as fases –
a estabilidade e o crescimento – têm um custo demasiadamente elevado e
comprometem não somente o futuro das próximas gerações, mas impedem, de maneira
radical, a construção de um projeto nacional. Não deixa de ser expressão desse
pacto de classe a quase coincidência entre os economistas de todos os
candidatos com possibilidades eleitorais nas eleições que se aproximam. As
divergências entre eles estão reduzidas quase que exclusivamente a uma “crise
gerencial”, como se estivéssemos limitados a uma crise de competência na gestão
da mesma política.
Nesse
contexto, não haverá jamais – ao contrário da ideologia que rola entre os
economistas como se fosse conhecimento científico – a possibilidade de uma
combinação ótima entre as metas de inflação de um lado e a taxa de juros e de
câmbio de outro, condição necessária para abrir a senda do crescimento. Há
grave regressão intelectual na ciência econômica, pois os economistas se
especializaram em explicar como o mundo deveria ser, e não as razões pelas
quais ele é como é. Em consequência, atuam como ideólogos e destinam seu tempo
e “teorias” ao ocultamento sistemático da realidade. Assim, ignoram as razões
que levaram as distintas frações do capital ao desprezo das condições
favoráveis existentes entre 2004 e 2008 para inaugurar a desejada fase de
crescimento sustentado. Afinal, por que as travas do crescimento não foram
removidas se as condições internas e externas eram então favoráveis?
Ao
contrário do perigoso consenso estabelecido entre os economistas, opino que o
mega-endividamento estatal, a superexploração da força de trabalho e a severa
regressão industrial são obstáculos insuperáveis para uma nova fase de expansão
produtiva.
O
Plano Real, o pacto de classe que paralisa o Brasil, sustenta-se sobre três
pilares. O primeiro deles – tanto na fase da estabilização (FHC) quanto na do
suposto crescimento (Lula/Dilma) – é o gigantismo do endividamento estatal
(interno e externo). Em junho de 1994, a dívida interna não superava R$ 64
bilhões e FHC concluiu seu segundo governo com R$ 700 bilhões. Lula não ficou
atrás: após oito anos, a dívida interna alcançou R$ 1,5 trilhão e Dilma
tampouco vacilou em superar os R$ 3 trilhões. Na mesma direção, o endividamento
privado externo voltou a crescer e contribui de maneira direta para manter o
automatismo da dívida segundo o qual quanto mais o país “paga”, mais a dívida
cresce!
A
consequência necessária dessa opção é que em nenhum ano o Estado brasileiro
destinou menos de 44% do orçamento para o pagamento dos juros e dividendos da
dívida. O superendividamento estatal trouxe duas consequências nefastas: por um
lado, inibiu severamente a taxa de investimento estatal, variável indispensável
para impulsionar o investimento privado que a política desenvolvimentista
requer e, por outro, naturalizou o princípio neoliberal de austeridade fiscal,
permitindo somente em termos marginais programas sociais consistentes e a
melhoria da infraestrutura que os neoliberais exigem. É fácil observar a
incapacidade do Estado brasileiro – prisioneiro do automatismo da dívida – e a
impotência dos governantes diante do quadro. Quando explodiram as jornadas de
junho, as propostas para melhoria do transporte público exigidas por milhões de
pessoas não foram mais do que cosméticas, como podemos agora comprovar. Os
empresários reclamam da elevada carga tributária como se esta não fosse, de
fato, um princípio do endividamento estatal programado em junho de 1994, quando
o Banco Central elevou a taxa de juros aos incríveis 49,9%. Em oposição, eles
preferem afirmar que a dívida é resultado de um Estado ineficiente e
perdulário, “tese” sem qualquer sustento.
O
segundo pilar do Plano Real é a superexploração dos trabalhadores, agora
devidamente ocultada pela ideologia da emergência da “nova classe média” e as
“teorias” do “precariado”, entre outras. A Secretaria de Assuntos Estratégicos
da Presidência da República divulgou há poucas semanas a metodologia que
terminou por criar uma poderosa classe média em nosso país. Agora, a classe
média alta está definida pela renda per capita entre R$ 741 e R$ 1.019! Não é um
luxo?
Antes
da novidade, o quadro já era gravíssimo, pois no Brasil pelo menos 76% da
população economicamente ativa recebe até três salários mínimos. A economia
política inglesa ensina desde os tempos de Adam Smith (1776) a importância do
salário mínimo necessário– aqui no Brasil calculado pelo Dieese –, que alcançou
em junho o valor de R$ 2.979,25, razão pela qual mais de 80% da PEA não atinge
sequer as condições mínimas de reprodução da força de trabalho. Contudo, não
estamos de mãos abanando. No lugar da antiga lição da economia política
inglesa, o governo – e a oposição tucana também! – lançou mão da caridade
cristã na forma de política social. A política social criada no governo FHC e
turbinada por Lula mais tarde destina migalhas da riqueza social aos pobres e
simula a impressão de que os governos petistas são mais sensíveis do que os
tucanos. Ninguém ignora o desprezo aos pobres e a violência contra os sindicatos
durante o governo de FHC, mas não se pode tampouco desprezar o fato de que a
riqueza pública cresceu de maneira expressiva na última década, razão pela qual
as migalhas foram um pouco maiores nos governos petistas. No limite, a política
social serve na prática de ideologia para a solução da “questão social” no
estreito marco de um país dependente, onde, supostamente, já não seria mais um
“caso de política” (Washington Luís) e poderia – na versão oficial – ser
resolvida sem tocar na propriedade privada e/ou no poder político. Sem dúvida,
o melhor dos mundos possíveis para a classe dominante! À classe média – e seus
porta-vozes na TV que execram a política social petista e denunciam seu suposto
caráter “populista” – fica garantida a paz social, pois os pobres já não são
detentores de uma razão iracunda indispensável para a sobrevivência política e
social e combustível necessário para o protesto social, mas se limitam à
simulação de uma “cidadania” – necessariamente passageira e limitada – do
consumo, sem custo maior para o Estado. Eis a razão pela qual, para dar apenas
um exemplo, o principal programa do governo – o Minha Casa, Minha Vida – é tão
modesto, incapaz de enfrentar ou sequer diminuir o déficit habitacional de 13
milhões que o país acumula.
Por
isso, ao contrário do que diz a propaganda petista, os tucanos jamais revogarão
os programas sociais dos últimos governos porque aqueles são parte de uma
estratégia de dominação que interessa a ambos. Nenhum candidato da oposição
eliminará os programas sociais e tampouco há sinais de que estamos diante da
emergência de uma direita fascista capaz de atacar os pobres.
O
terceiro pilar do Plano Real é o reforço do país numa posição adversa na
divisão internacional do trabalho, ou seja, como mero exportador de produtos
agrícolas e minerais. Esse processo aparece sob a forma de uma denúncia
genérica contra a “desindustrialização”, cuja solução poderia ser – como
indicam os tucanos – a redução ainda mais radical dos custos industriais via
abertura industrial mais profunda destinada a importar peças, máquinas e
equipamentos de países como a China. O governo descarta o nacionalismo
econômico (política industrial) na pretensão de que com renúncia fiscal
destinada a manter o consumo de geladeiras ou carros fosse possível constituir
um projeto nacional e manter o pacto entre o capital transnacional e as frações
perdedoras do agonizante capital nacional.
Contudo,
contraditoriamente, há vida na agonia. A taxa de câmbio que denunciam
sobrevalorizada é a mesma que permite aos industriais lucros extraordinários e,
obviamente, dólar abundante e barato para importação de máquinas e equipamentos
que aumentam a produtividade do trabalho e condenam o processo de
industrialização que simulam defender. Os comerciantes não ficam atrás e se
lançam no Sudeste Asiático na compra de todo tipo de mercadorias com as quais
inundam o mercado interno, “segurando” a pressão inflacionária e aprofundando a
desnacionalização.
A
experiência histórica demonstra que não pode existir mercado interno forte sem
nacionalismo econômico. Ademais, a manutenção da superexploração da força de
trabalho e a acelerada desnacionalização da produção de máquinas e equipamentos
fecham o cerco contra as ilusões desenvolvimentistas segundo a qual o mercado interno
seria capaz de sustentar a expansão de taxas de crescimento superiores às
modestíssimas exibidas no governo da presidente Dilma. O fim da reforma agrária
em nome da expansão da fronteira agrícola destinada à produção para exportação
elimina qualquer esperança num projeto nacional de desenvolvimento. Contudo, é
indispensável para manter o pacto entre latifundiários e transnacionais, além
de contemplar capitais industriais e comerciais nacionais.
Os
sinais de esgotamento do pacto chamado Plano Real são claros. O crescimento não
chegou, causando inocultável constrangimento aos desenvolvimentistas; além
disso, mesmo a modestíssima pressão inflacionária permite aos neoliberais o
clima necessário para retomar a iniciativa política exigindo mais “reformas” na
direção de eliminar direitos sociais considerados excessivos num país
dependente e a afirmação da velha ortodoxia neoliberal. No limite, todos os
candidatos à sucessão presidencial tramam em silêncio um novo ajuste que será
considerado tão inevitável quanto necessário para o futuro da nação após as
eleições. As greves voltaram nos últimos dois anos e o humor dos trabalhadores
com a promessa de estabilidade e/ou crescimento não é o mesmo de outros tempos.
A vida sustentada pelo antigo mito da estabilidade em que se apoiaram os
governos tucanos já não é mais possível e, de certa forma, tampouco o governo
petista pode manter o controle da situação apenas com o “princípio de
transformação da matéria mítica”, o crescimento. No mundo em crise, não pode
haver dúvida a respeito: somente quando os trabalhadores superarem a condição
cativa em que ainda se encontram poderão inaugurar um novo tempo em que
construirão seu futuro com a energia criadora de suas próprias mãos, governados
exclusivamente pela consciência crítica de seus próprios interesses.