Por Carlos Nelson Coutinho - 1979.
A questão do vínculo entre socialismo
e democracia marcou sempre, desde o início, o processo de formação do
pensamento marxista; e, direta ou indiretamente, esteve na raiz das inúmeras
controvérsias que assinalaram e assinalam a história da evolução desse pensamento.
Não se deve esquecer que Marx, antes de
empreender a sua monumental crítica da economia política, já havia esboçado em
suas obras juvenis os pressupostos de uma crítica da política, de uma crítica
da democracia representativa burguesa; e que Engels chegou ao
fim da vida preocupado com as novas condições que a conquista do sufrágio
universal (da ampliação da democracia) colocava ao movimento operário
socialista. Por outro lado, a questão do valor universal da democracia está na
base não apenas das polêmicas entre “revisionistas” e "ortodoxos”, na
virada do século, mas reaparece igualmente entre os principais representantes
da esquerda marxista na época imediatamente subseqüente à Revolução de Outubro:
basta aqui recordar a polêmica entre Rosa Luxemburgo, por
um lado, e Lênin e Trotski, por outro,
acerca da conservação de certos institutos democráticos sob o governo
proletário que surgira daquela Revolução.
E, se hoje se generaliza
entre os marxistas ocidentais a rejeição do “modelo soviético” como modelo
universal de socialismo, isso resulta em grande parte de uma diversa concepção
do vínculo socialismo-democracia por parte desses marxistas. Concepção
que Enrico Berlinguer sintetizou
expressivamente no discurso que pronunciou em Moscou, em 1977, por ocasião do
60° aniversário da Revolução de Outubro:
“A
democracia é hoje não apenas o terreno no qual o adversário de classe é
obrigado a retroceder, mas é também o valor historicamente universal sobre o
qual fundar uma original sociedade socialista”.
Essa universalidade não
deve ser concebida apenas num sentido teórico; o valor da democracia não se
limita a áreas geográficas. Pois se há por sua vez algo de universal nas reflexões
teóricas na prática política do que é hoje chamado de eurocomunismo, esse algo
é precisamente o modo novo — um modo dialeticamente novo,
não uma novidade metafisicamente concebida como ruptura absoluta — de
conceber essa relação entre socialismo e democracia.
Uma prova dessa
universalidade são as acesas polêmicas que têm hoje lugar entre as forças
progressistas brasileiras, envolvendo o significado e o papel da luta pela
democracia em nosso País. Pode-se facilmente constatar nesse sentido, a
presença de diferentes e até mesmo contraditórias concepções de democracia
entre as correntes que se propõem representar os interesses populares e, em
particular, os das massas trabalhadoras. Trata-se de um fato normal e saudável,
contanto que não se perca de vista a necessidade imperiosa de acentuar — na
presente conjuntura — aquilo que une a todos os oposicionistas, ou seja, a luta
pela conquista de um regime de liberdades político-formais que ponha
definitivamente termo ao regime de exceção que, malgrado a fase de transição
que se esboça, ainda domina em nosso País.
Não creio que nenhuma
formação popular responsável ponha hoje em dúvida a importância dessa unidade
em tomo da luta pelas liberdades democráticas tais como essas são definidas,
entre outros, no atual programa do MDB. Todavia, há correntes e personalidades
que revelam ter da democracia uma visão estreita, instrumental, puramente
tática; segundo tal visão, a democracia política — embora útil à luta das
massas populares por sua organização e em defesa dos seus interesses
econômico-corporativos — não seria mais, em última instância e por sua própria natureza, do
que uma nova forma de dominação da burguesia, ou, mais concretamente, no caso
brasileiro, dos monopólios nacionais e internacionais.
Essa visão estreita se
baseia, antes de mais nada, numa errada concepção da teoria marxista do Estado,
numa falsa e mecânica identificação entre democracia política e dominação
burguesa. Mas implica, em segundo lugar, ainda que por vezes implicitamente,
uma concepção equivocada das tarefas que se colocam atualmente ao conjunto das
forças populares brasileiras: essas tarefas não podem ser identificadas com a
luta imediata pelo socialismo, mas sim com um combate árduo e provavelmente
longo pela criação dos pressupostos políticos,
econômicos e ideológicos que tomarão possível o estabelecimento e a
consolidação do socialismo em nosso País.
Nosso objetivo, no presente
artigo, é esboçar sumariamente — muito mais levantando questões do que propondo
respostas sistemáticas — os tópicos essenciais dessas duas ordens de questões.
Em primeiro lugar, tentaremos indicar como o vínculo socialismo-democracia é
parte integrante do patrimônio categorial do marxismo; e, em segundo,
mostraremos como a renovação
democrática do conjunto da vida nacional — enquanto elemento
indispensável para a criação dos pressupostos do socialismo — não pode ser
encarada apenas como objetivo tático imediato, mas aparece como o conteúdo
estratégico da etapa atual da revolução brasileira.
1. Algumas questões de principio sobre o vínculo entre
socialismo e democracia política
Quando, em polêmica
com Kautsky, Lênin afirmou
que não existia "democracia pura”, que a democracia era sempre ou burguesa
ou proletária, de não punha em discussão o que Berlinguer chama
hoje de valor universal da democracia política. O que Lênin tinha em
vista, contra o formalismo oportunista de Kautsky, não era
negar a validade do substantivo democracia,
mas lembrar que — no plano do conteúdo concreto — ele aparece sempre
adjetivado. Em outras palavras: fiel ao ensinamento de Marx e Engels, Lênin afirmava
não poder existir — salvo em breves períodos de transição — regime estatal sem
conteúdo de classe determinado, sem que uma classe fundamental no modo de
produção determinante exerça através desse regime (não importa por meio de
quantas mediações) sua dominação sobre o conjunto da sociedade.
Tendo sempre combatido,
desde sua juventude, as interpretações redutoras e economicistas do
marxismo, Lênin não podia
negar a autonomia relativa das superestruturas no seio da totalidade social; a
acentuação lenineana do papel da subjetividade humana na práxis, do papel
da política, em
oposição às interpretações economicistas (objetivistas) dominantes no marxismo
da II Internacional, tem
sua base teórica nessa visão dialética da autonomia relativa das
superestruturas. Portanto, se quisermos ser fiéis ao método de Lênin(1), temos de
chegar à seguinte conclusão: é verdade que o conjunto das liberdades
democráticas em sua forma moderna (o princípio da soberania e da representação
popular, o reconhecimento legal do pluralismo etc.) tem sua gênese histórica nas
revoluções burguesas, ou mais precisamente, nos amplos movimentos populares que
terminaram (mais ou menos involuntariamente) por abrir o espaço político
necessário à consolidação e reprodução da economia capitalista; mas é
igualmente verdade que, para o mate- rialismo histórico, não existe identidade
mecânica entre gênese e validade, Lênin certamente
conhecia a observação de Marx segundo a
qual a arte de Homero não perde
sua validade universal — e inclusive sua função de modelo — com o
desaparecimento da sociedade grega primitiva que constitui sua necessária
gênese histórica.
Se, como acreditamos, a
observação de Marx tem alcance
metodológico geral (malgrado as concretizações que devem ser feitas em cada
esfera concreta do ser social), podemos extrair dela uma conclusão acerca da
questão da democracia: nem objetivamente, com o desaparecimento da sociedade
burguesa que lhes serviu de gênese, nem subjetivamente, para as forças
empenhadas nesse desaparecimento, perdem seu valor universal inúmeras das
objetivações ou formas de relacionamento social que compõem o arcabouço institucional
da democracia política.
E não se trata apenas de
constatar o óbvio: o valor que continuam a ter para as forças do progresso, nas
sociedades capitalistas de hoje a conservação e a plena realização desses
institutos democráticos, conservação e realização que são asseguradas em grande
parte — e muitas vezes em oposição aos interesses burgueses atuais — pela luta
do movimento operário organizado. É preciso ir além dessa constatação e afirmar
claramente que, tanto na fase de transição quanto no socialismo plenamente
realizado, continuarão a existir interesses e opiniões divergentes sobre
inúmeras questões concretas; e isso porque — ao contrário do que afirma a
concepção stalinista — o processo de extinção das classes faz certamente com
que a sociedade tenda à
unidade, mas não significa de modo algum a sua completa homogeneização. E, dado
que mesmo essa unidade tendencial é uma unidade na diversidade, é fundamental
que tais interesses divergentes encontrem uma forma de representação política
adequada.
A pluralidade de sujeitos
políticos, a autonomia dos movimentos do massa (da sociedade civil) em relação
ao Estado, a liberdade de organização, a legitimação da hegemonia através da
obtenção do consenso majoritário: todas essas conquistas democráticas, portanto,
continuam a ter pleno valor numa sociedade socialista. (E não é preciso
recorrer a Gramsci ou aos
teóricos atuais do eurocomunismo para afirmar isso: Lênin foi um dos
primeiros a reconhecer esse valor quando se opôs à transformação dos sindicatos
em “correias de transmissão” do Estado socialista, na famosa polêmica que
travou com Trótski em
1921). Estamos diante de formas de relacionamento social sem as quais não se
cumpre o que Marx e Engels exigiam
do socialismo:
“que
o livre desenvolvimento de cada um fosse a condição necessária para o livre
desenvolvimento de todos”.
Portanto, para aqueles que,
em nome dos interesses histórico-universais dos trabalhadores, lutam pelo
socialismo, a democracia política não é um simples princípio tático: é um valor
estratégico permanente, na medida em que é condição tanto para a conquista
quanto para a consolidação e aprofundamento dessa nova sociedade.
Isso não significa,
decerto, que a democracia socialista, mesmo do ponto de vista
político-institucional (ou seja, mesmo deixando de lado as profundas transformações
econômicas e sociais — gradativa abolição da propriedade privada dos meios de
produção — que ela implica para sua completa realização), possa ser vista como
uma simples continuação da democracia liberal tal como essa foi concebida pelos
teóricos do século XVIII (Locke, Montesquieu, etc.),
ou mesmo tal como aparece na prática dos mais avançados países capitalistas de
hoje. A concepção segundo a qual a velha maquina estatal deve ser destruída
para que se possa implantar a nova sociedade — uma metáfora que é muitas vezes
entendida em sentido demasiadamente literal — quer indicar precisamente que a
democracia política no socialismo pressupõe a criação (e/ou a mudança de
função) de novos institutos políticos que não existem, ou existem apenas
embrionariamente, na democracia liberal clássica. E, do mesmo modo como as
forças produtivas materiais necessárias à criação da nova formação
econômico-social já começam a se desenvolver no seio da velha sociedade
capitalista, assim também esses elementos da nova democracia já se esboçam —
freqüentemente em oposição aos interesses burgueses e aos pressupostos teóricos
e práticos do liberalismo clássico — no seio dos regimes políticos
contemporâneos dominados pela burguesia. Refiro-me aos mecanismos de
representação direta das massas populares (partidos, sindicatos, associações
profissionais, comitês de empresa e de bairro, etc.), mecanismos através dos
quais essas massas populares — e em particular a classe operária — se organizam
de baixo para cima e constituem aquilo que poderíamos chamar de sujeitos
políticos coletivos.
Não seria difícil mostrar
como a formação desses sujeitos políticos coletivos — não previstos pela
atomista teoria liberal clássica — corresponde aos processos de socialização da
produção que se acentuam no capitalismo e, em particular, no capitalismo
monopolista de Estado. Portanto, é a própria reprodução capitalista enquanto
fenômeno social global que impõe essa crescente socialização da política, ou
seja, a ampliação do número de pessoas e de grupos empenhados politicamente na
defesa dos seus interesses específicos. A essa socialização objetiva da
participação política deve corresponder, em medida cada vez maior, uma
socialização dos meios e dos processos de governar o conjunto da vida social,
Nesse sentido, o socialismo não consiste apenas na socialização dos meios de
produção, uma socialização tornada possível pela prévia socialização do
trabalho realizada sob o impulso da própria acumulação capitalista; ele
consiste também — ou
deve consistir numa progressiva socialização dos meios de
governar, uma socialização também aqui tomada possível pela crescente
participação das massas na vida política, através dos sujeitos políticos
coletivos que as vicissitudes da reprodução capitalista — sobretudo na fase
monopolista — impõem às várias classes e camadas sociais prejudicadas pela
dinâmica privatista dessa reprodução(3).
Em outras palavras: o
socialismo não elimina apenas a apropriação privada dos frutos do trabalho
coletivo; elimina também — ou
deve eliminar — a apropriação privada dos mecanismos de
dominação e de direção da sociedade como um todo. A superação da alienação
econômica é condição necessária mas não suficiente para a realização do
humanismo socialista: essa realização implica também a superação da alienação
política. (Uma necessidade de que Lênin era também
consciente: basta lembrar a sua concepção da cozinheira que dirige o Estado.) A
superação da alienação política pressupõe o fim do “isolamento” do Estado, sua
progressiva reabsorção pela sociedade que o produziu e da qual ele se alienou;
ora, isso só se tomará possível através de uma crescente articulação entre os
organismos populares de democracia direta e os mecanismos “tradicionais” de
representação indireta (partidos, parlamentos, etc.). Essa articulação fará com
que esses últimos adquiram uma nova função — ampliando o seu grau de
representatividade — na medida em que se tomarem o local de uma síntese política dos
vários sujeitos políticos coletivos. E essa síntese é imprescindível se não se
quer que esses sujeitos coletivos sejam coagulados ao nível da defesa
corporativista de interesses puramente grupais e particularistas, reproduzindo
assim a atomização da sociedade civil que serve objetivamente à dominação
burguesa.
A idéia dessa articulação
entre democracia representativa e democracia direta já faz parte do patrimônio
teórico do marxismo. Assim, já na década de vinte, o austromarxista Max Adler
observava que a ausência de mecanismos de representação política geral podia
converter a democracia consiliar (dos conselhos operários de base) numa
representação puramente corporativista, incapaz de operar como ponto de partida
para uma direção hegemônica unitária do conjunto da sociedade; por isso, ele
propunha uma integração entre o parlamento e os conselhos operários, o que o
colocava numa posição intermediária entre o bolchevismo originário e a
social-democracia de inspiração kautskyana(4). Uma
preocupação similar, ainda que sem referência direta a Max Adler, reaparece nas
reflexões contemporâneas do comunista italiano Pietro Ingrao, também ele
preocupado em fundar uma “terceira via” entre o modelo soviético atual e a
capitulação objetiva da social-democracia de hoje a uma “gestão honesta do
capitalismo”(2). É nossa
convicção que a democracia de massas (a expressão é de Ingrao) que deve servir
de superestrutura à transição para, e à construção de, uma sociedade socialista
tem de surgir dessa articulação entre as formas de representação tradicionais e
os organismos de democracia direta; essa articulação, como dissemos, deve
promover a síntese dos vários sujeitos políticos empenhados na transformação
social uma síntese que — respeitada a autonomia e o pluralismo dos movimentos
de base — seja a portadora da hegemonia dos trabalhadores sobre o governo da
sociedade como um todo. O que se propõe, em outras palavras é a constituição do
“autogoverno dos produtores associados”, a que se referiam Marx e Lênin.
E quando falamos de hegemonia, colocamos
também um ponto de discriminação entre o liberalismo e a democracia, ou,
noutras palavras, entre a concepção burguesa e a concepção marxista da
democracia(5). A teoria
liberal clássica parte do reconhecimento de uma pluralidade de sujeitos
individuais autônomos e supõe — sobre a base de uma idealização dos mecanismos
reguladores do mercado capitalista — que os interesses plurais de tais m,jeitos
serão automaticamente harmonizados e coordenados: a mítica “mão Invisível”
de Adam Smith se
encarregaria de fazer com que a máxima explicitação dos interesses egoístas
individuais desembocasse num aumento do bem-estar geral. Como tal teoria se
apoiava numa falsidade de base ao pressupor uma inexistente igualdade real (e não apenas
formal) dos sujeitos econômicos, ou seja, ao abstrair-se do fato de que uns são
donos dos meios de produção e outros apenas de sua força de trabalho — o
modo prático pelo
qual se dava aquela “harmonização” era a subtração do poder executivo de
qualquer controle público, mesmo através do parlamento burguês. (Uma tendência
que só iria se acentuar na época do capital monopolista, quando o
desaparecimento da taxa média única de lucro aguça as contradições
intercapitalistas entre setores monopolistas e não monopolistas; e quando a
classe operária começa a ganhar uma representação parlamentar própria.) O poder
executivo passa assim a ser encarnado por um grupo de burocratas que se subtrai
ao controle público e, com isso, transforma o Estado num corpo separado e posto
“acima” da sociedade(6). Não é aqui
o local para insistir sobre o caráter aparente — ainda que se trate de uma
“aparência necessaria” (Marx) — dessa
separação e desse isolamento do Estado: o que a burocracia ligada ao Executivo
faz, na realidade, é “harmonizar” os interesses do capital em seu conjunto,
pondo-se acima das “paixões” individuais dos capitalistas singulares, e operar
ao mesmo tempo no sentido de que tais interesses se imponham “automaticamente”
sobre o conjunto da sociedade.
Nada disso impede, contudo,
que na teoria liberal
moderna (que foi inteiramente assimilada pela hodierna social-democracia) se
continue a afirmar que democracia é sinônimo de pluralismo e que a defesa da
hegemonia de uma classe ou conjunto de classes é, por sua própria natureza,
sinônimo de totalitarismo e de despotismo. A teoria socialista deve criticar a
mistificação que se oculta por trás dessa formulação liberal: deve colocar claramente a questão da
hegemonia como questão central de todo poder de Estado. Se a
burguesia disfarça sua dominação por meio do “isolamento” e da “neutralidade da
burocracia estatal, as classes populares devem pôr abertamente sua candidatura
a hegemonia, ao mesmo tempo em que lutam para superar a dominação efetiva de
uma restrita oligarquia monopolista sobre o conjunto da sociedade. Mas, se
socialismo é também sinônimo de apropriação coletiva dos mecanismos de poder, a
hegemonia dos trabalhadores não pode (e não deve) se fazer por intermédio de uma
nova burocracia que governe “de cima para baixo”; a libertação do proletariado,
como disse Marx, é obra do
próprio proletariado; e deve se fazer mediante a criação de uma democracia de
massas que inverta essa tendência à burocratização e à alienação do poder.
Nessa democracia de massas, a dialética do pluralismo — a autonomia dos
sujeitos políticos coletivos — não anula, antes impõe, a busca constante da
unidade política, a ser construída de baixo para cima, através da obtenção do
consenso majoritário; e essa unidade democraticamente conquistada será o
veículo de expressão da hegemonia dos trabalhadores.
A democracia socialista é,
assim, uma democracia pluralista de massas; mas uma democracia organizada, na
qual a hegemonia deve caber ao conjunto dos trabalhadores representados através
da pluralidade dos seus organismos (partidos, sindicatos, comitês de empresa,
comunidades de base, etc.)
Se o liberalismo afirma
teoricamente o pluralismo e mistifica/oculta a hegemonia, se o totalitarismo
absolutiza a dominação e reprime o pluralismo, a democracia de massas funda sua especificidade na
articulação do pluralismo com a hegemonia, na luta pela
unidade na diversidade dos sujeitos políticos coletivos autônomos(7). Por outro
lado, não se deve esquecer — se quisermos pensar a longo prazo — que a
apropriação social da política é, em última instancia, sinônimo de extinção do
Estado, ou seja, de extinção dos aparelhos de dominação enquanto aparelhos
apropriados individualmente e postos aparentemente “acima” da sociedade. É
nesse sentido que cabe entende, a lúcida observação de Gramsci, segundo a
qual a “sociedade regulada” (sem classes) é aquela na qual o Estado será
absorvido pelos organismos autogeri- dos da “sociedade civil”. Podemos concluir
esse rápido esboço afirmando que a relação da democracia socialista com a
democracia liberal é uma relação de superação dialética (Aufhebung): a
primeira elimina,
conserva e eleva
a nível superior as conquistas da segunda.
2. O caso brasileiro: a renovação democrática como
alternativa à “via prussiana”
O valor da democracia
política para as correntes de esquerda em nosso País ganha uma dimensão ainda
mais concreta — indo além do plano teórico abstrato geral que esboçamos acima —
se analisamos de perto as vicissitudes da história brasileira, se situamos dialeticamente
os problemas de hoje no amplo quadro histórico da formação nacional. Não me
refiro apenas ao fato de que o povo brasileiro está hoje colocado diante de uma
tarefa democrática urgente
e prioritária: a de derrotar o regime de exceção implantado em nosso País
depois de 64 e, com isso, construir um regime político que assegure as
liberdades fundamentais. A questão da democracia, inclusive em seus limites
puramente formal-liberais, é assim a questão decisiva da vida brasileira de
hoje. Mas o valor da democracia adquire para nós outra dimensão (e já aqui
superando dialeticamente, no sentido acima indicado, a democracia puramente
liberal) quando elevamos à consciência o fato de que o regime de exceção
vigente é “apenas” a expressão atual — uma expressão extrema e radicalizada —
de uma tendência dominante na história brasileira. Refiro-me ao caráter
elitista e autoritário que assinalou toda a evolução política, econômica e
cultural do Brasil, mesmo em seus breves períodos “democráticos”.
Como já foi assinalado
várias vezes, as transformações políticas e a modernização econômico-social no
Brasil foram sempre efetuadas no quadro de uma “via prussiana”, ou seja,
através da conciliação entre frações das classes dominantes, de medidas
aplicadas “de cima para baixo” com a conservação essencial das relações de
produção atrasadas (o latifúndio) e com a reprodução (ampliada) da dependência
ao capitalismo internacional; essas transformações “pelo alto” tiveram como
causa e efeito principais a permanente tentativa de marginalizar as massas
populares não só da vida social em geral, mas sobretudo do processo de formação
das grandes decisões políticas nacionais(8). Os exemplos
são inúmeros: quem proclamou nossa Independência política foi um príncipe
português, numa típica manobra pelo alto”; a classe dominante do Império foi a
mesma da época colonial; quem terminou capitalizando os resultados da
proclamação da República (também ela proclamada “pelo alto”) foi a velha
oligarquia agrária; a Revolução de 1930, apesar de tudo, não passou de uma
“rearrumação” do velho bloco de poder, que cooptou — e, desse modo, neutralizou
e subordinou — alguns setores mais radicais das camadas médias urbanas; a
burguesia industrial floresceu sob a proteção de um regime bonapartista, o
Estado Novo, que assegurou pela repressão e pela demagogia a neutralização da
classe operaria, ao mesmo tempo em que conservava quase intocado o poder do
latifúndio, etc. Mas essa modalidade de “via prussiana” (Lênin, Lukács) ou de
“revolução-restauração” (Gramsci) encontrou
seu ponto mais alto no atual regime militar, que criou as condições políticas
para a implantação em nosso País de uma modalidade dependente (e conciliada com
o latifúndio) de capitalismo monopolista de Estado, radicalizando ao extremo a
velha tendência a excluir tanto dos frutos do progresso quanto das decisões
políticas as grandes massas da população nacional.
Para o conjunto das forças
populares, coloca-se assim uma tarefa de amplo alcance: a luta para inverter
essa tendência elitista ou “prussiana" da política brasileira e para
eliminar suas conseqüências nas várias esferas do ser social brasileiro. (Não
se deve esquecer, antes de mais nada, que a “via prussiana” levou sempre à
construção das superestruturas adequadas à dominação de uma restrita oligarquia
— primeiro latifundiária, agora monopolista — sobre a esmagadora maioria da
população.) A luta pela eliminação dessa tendência confunde-se com uma
profunda renovação
democrática do conjunto da vida brasileira; essa renovação
aparece, portanto, não apenas como a alternativa histórica à “via prussiana”,
como o modo de realizar em condições novas as tarefas que a ausência de uma
revolução democrático-burguesa deixou abertas em nosso País, mas também — e
precisamente por isso — como o processo da criação dos pressupostos necessários
a um avanço do Brasil no rumo do socialismo.
Uma direta conseqüência da
“via prussiana” foi gerar uma grande debilidade histórica da democracia no
Brasil. Essa debilidade não se expressa apenas no plano do pensamento social
(basta lembrar o caráter conciliador do nosso liberalismo), ela tem
conseqüências na própria estrutura do relacionamento do Estado com a sociedade
civil, já que ao caráter extremamente forte e autoritário do primeiro
corresponde a natureza amorma e atomizada da segunda. Essa debilidade
histórico-estrutural da democracia, aliada à presença de um regime
profundamente antidemocrático, faz com que o processo de renovação democrática
assuma como tarefa prioritária de hoje a construção e consolidação de
determinadas formas de relacionamento social que, num primeiro momento, não
deverão provavelmente ultrapassar os limites da democracia liberal. Em termos
de conteúdo, isso significa que as forças hegemônicas do novo regime liberal
continuarão a ser, durante um certo tempo, os monopólios nacionais e
internacionais, ainda que essa hegemonia seja exercida de modo menos absoluto e
despótico que sob o atual regime.
Mas isso não altera o valor
dessas conquistas liberal-democráticas para as forças populares. Em primeiro
lugar, a criação de um regime de liberdades formais representaria a superação
da atual modalidade concreta da “via prussiana”; e, em segundo, a consolidação
de um regime democrático aparece como um pressuposto que deverá ser reposto — conservado
e ao mesmo tempo aprofundado — em cada etapa da luta pela completa realização
dos objetivos finais das correntes socialistas. Em outras palavras: a conquista
de um regime de democracia política não é uma etapa no caminho do socialismo a
ser posteriormente abandonada em favor de tipos de dominação formalmente
não-democráticos. É, antes, a criação de uma base, de um patamar mínimo que
deve certamente ser aprofundado (tanto em sentido econômico-social quanto em
sentido político), mas também conservado ao
longo de lodo o processo. Aquilo que antes afirmamos em nível teórico vale
também para o caso brasileiro: a democracia de massas que os socialistas
brasileiros se propõem construir conserva e eleva a nível superior as
conquistas puramente liberais.
Em que consiste essa
“elevação a nível superior”? Antes de mais nada, em medidas que eliminem
gradualmente as bases econômico-sociais que não só tornaram possível a
emergência da “via prussiana” elitista e oligárquica, mas que contribuem para
reproduzi-la (de modo ampliado) permanentemente. Em poucas palavras (pois não é
aqui o local para sequer esboçar um plano econômico democrático detalhado, nem
sou competente para fazê-lo): trata-se de democratizar a economia nacional,
criando uma situação na qual os frutos do trabalho do povo brasileiro — que se torna
cada vez mais produtivo — revertam em favor da grande maioria da população.
Isso aparece como pressuposto indispensável para integrar na sociedade
nacional, na condição de sujeitos, enormes parcelas da população hoje reduzidas
a uma condição subumana, e, desse modo, destruir pela raiz os processos
marginalizadores que caracterizam a “via prussiana”. Concretamente, em nossos
dias, a democratização da economia requer a aplicação de um programa econômico
anti- monopolista, antilatifundiário e antiimperialista; um programa que
interessaria a amplas parcelas da população, desde a classe operaria e os
camponeses até as camadas médias assalariadas e a pequena e média burguesia
nacional.
E não se trata de um
programa de gabinete, a ser mais uma vez concebido e aplicado de “cima para
baixo”, por tecnocratas eventualmente generosos- a elaboração, aplicação e
controle de um programa de democratização da economia deve resultar de um amplo
debate que envolva todas as forças interessadas (partidos, sindicatos, associações
profissionais, etc.); só assim ele obterá o consenso majoritário à sua
aplicação conseqüente e, mais que isso, contribuirá — ao transformar as camadas
trabalhadoras em sujeitos ativos do governo da economia — para o processo geral
de renovação democrática do País.
Mas a “elevação a nível
superior” pressupõe igualmente um aprofundamento político da
democracia: a ampla incorporação organizada das
grandes massas na vida política nacional — a socialização crescente da política
— é o
único antídoto de eficácia duradoura contra o veneno da “via prussiana”. E essa
socialização da política já não é mais, em nosso País, um simples desejo
subjetivo. Embora duramente reprimida, a sociedade civil brasileira —
impulsionada indiretamente pelo processo de modernização conservadora e de
diferenciação social favorecido pela nossa última “revolução pelo alto” cresceu
e se tomou mais complexa nos últimos 15 anos. Multiplicaram-se sobretudo nos
últimos tempos, organismos de democracia direta, sujeitos políticos coletivos (comissões
de empresa, associações de moradores, comunidades religiosas de base, etc.); e,
além disso, ganharam autonomia e representatividade, na medida em que se
desligaram praticamente da tutela do Estado, antigos organismos de massa, como
alguns dos principais sindicatos do País, ou poderosos aparelhos privados de
hegemonia, como a OAB, a CNBB, etc. Isso abre a possibilidade concreta de
intensificar a luta pelo aprofundamento da democracia política no sentido de
uma democracia organizada de massas, que desloque cada vez mais “para baixo” o
eixo das grandes decisões hoje tomadas “pelo alto”.
Ampliar a organização e a
articulação desses vários sujeitos políticos coletivos de base e ao mesmo
tempo, lutar por sua unificação (respeitadas sua autonomia e diversidade) num
poderoso bloco democrático e popular não é apenas condição para extirpar
definitivamente os elementos ditatoriais que deverão permanecer ao longo do
período de transição que se anuncia: é também um passo decisivo no sentido de
criar os pressupostos para o aprofundamento e generalização do processo de
renovação democrática e consequentemente, para o êxito do programa
antimonopolista de democratização da economia no rumo do socialismo. Esse bloco
unitário dos organismos do democracia de base já é hoje — e deverá se tomar
cada vez mais — um poderoso instrumento de pressão e controle sobre a ação dos
mecanismos de representação indireta, como os parlamentos.
A necessidade de que o
processo de renovação democrática proceda de “baixo para cima”, consolidando e
ampliando suas conquistas através de uma crescente incorporação de novos
sujeitos políticos, impõe às forças populares — enquanto método de sua batalha
política — a opção por aquilo que Gramsci chamou
de “guerra de posição”. A progressiva conquista de posições firmes no seio da
sociedade civil é a base não só para novos avanços, que gradativamente tomarão
realista a questão da conquista democrática do poder de Estado pelas classes
trabalhadoras, mas é sobretudo o meio de evitar precipitações que levem a
recuos desastrosos. Nesse sentido, as forças realmente populares devem estar
permanentemente alertas contra as tentações do “golpismo”, o qual — mesmo quando
se apresenta sob vestes falsamente “progressistas” — não faz senão repetir os
procedimentos elitistas que caracterizam a “via prussiana”. Qualquer tentativa
de impor modificações radicais por meio da ação de minorias (militares ou não)
levará as forças populares a grandes desastres políticos; além disso,
significará o truncamento do processo de renovação democrática, um processo que
— nunca e demais insistir — só será efetivo e realmente popular quando crescer
“de baixo para cima” e quando representar a incorporação de amplas maiorias ao
cenário político. O “golpismo de esquerda” — que infelizmente marcou boa parte
do pensamento e da ação política das correntes populares no Brasil é apenas uma
resposta equivocada e igualmente “prussiana” aos processos de direção “pelo
alto” de que sempre se valeram as forças conservadoras e reacionárias em nosso
País. Quanto mais se tome efetiva e socialização da política, tanto menos será
possível invocar a justificação relativa de processos desse tipo.
A luta pela renovação democrática
— precisamente por recorrer a “guerra de posição” como método e por afastar
resolutamente qualquer tentação “golpista” ou “militarista” — implica em conceber a unidade como valor
estratégico. Já nos referimos ao fato de que o necessário
pluralismo dos sujeitos coletivos de base degenera em formas de corporativismo
quando não se verifica um processo de unificação política, através da mediação
dos organismos representativos de âmbito nacional; por outro lado, a democracia
de massas — enquanto democracia real — pressupõe que a conquista a hegemonia se
faça através da obtenção do consenso majoritário
das correntes políticas e das classes e camadas sociais(9). (Talvez não
seja inútil lembrar que maioria implica minoria, cujos direitos — na medida em
que sua ação oposicionista não viole a legalidade constitucional
democraticamente fundada — terão de ser respeitados.) Mas essa afirmação do
valor estratégico da unidade ganha um traço concreto específico quando referido
ao Brasil: a tarefa da renovação democrática implica a crescente socialização
da política, a incorporação permanente e anti-“prussiana” de novos sujeitos
individuais e coletivos ao processo de transformação da realidade. Como a
autonomia e a diversidade desses sujeitos deverão ser respeitadas, a batalha
pela unidade — uma unidade na diversidade — torna-se não apenas um objetivo
tático imediato na luta pelo fim do atual regime, mas também um objetivo estratégico
no longo caminho para “elevar a nível superior” a democracia.
Embora no quadro de uma
busca permanente da máxima unidade possível é certo que se alterarão — em
função das tarefas concretas — a natureza e a amplitude das alianças visadas
pelas forças populares. De modo esquemático poderíamos dizer que as tarefas da
renovação democrática desdobram- se em dois planos principais. Em primeiro
lugar, lógica e cronologicamente trata-se de primeiro conquistar e depois
consolidar um regime de liberdades fundamentais, para o que se toma necessária
uma unidade com todas as forças interessadas nessa conquista e na permanência
das regras do jogo a serem implantadas por uma Assembléia Constituinte dotada
de legitimidade.
E, em segundo, trata-se de
construir as alianças necessárias para aprofundar a democracia no sentido de
uma democracia organizada de massas, com crescente participação popular; e a
busca da unidade, nesse nível, terá como meta a conquista do consenso
necessário para empreender medidas de caráter antimonopolista e
antiimperialista e, numa etapa posterior, para a construção em nosso País de
uma sociedade socialista fundada na democracia política.
Notas de rodapé:
(1) E não apenas a seu método, mas a
muitas de suas afirmações literais, Num artigo intitulado Sobre o Dualismo do Poder, escrito
em 1917, Lênin observa:
“Para conquistar o poder, os operários conscientes devem obter a maioria; até o momento em que não
haja violência contra as massas, não há outro modo de chegar ao poder, Não
somos blanquistas, não visamos à tomada do poder por parte de uma minoria” (Lênin, Opere Complete. Trad.
italiana, Roma, 1958, vol. 24, p. 31). (retornar ao texto)
(2) A idéia da “socialização da política”
é um dos pontos fortes da reflexão marxista contemporânea na Itália; basta
pensar em autores como Umberto Cerroni, Luciano Gruppi e, sobretudo, Pietro
Ingrao, Mas já Lênin observava
em 1917: “Se todos os
homens participarem efetivamente na gestão do Estado, o capitalismo não mais
poderá se manter, E o desenvolvimento do capitalismo cria os pressupostos necessários
para que ‘todos’ possam efetivamente
participar da gestão do Estado” (Lênin, Stato e Rivoluzione. Trad,
italiana, Roma, 1963, p, 87). (retornar ao texto)
(3) Max Adler, Conselhos Operários e Revolução. Trad,
portuguesa, Coimbra, s.d., passim. (retornar ao texto)
(4) Cf, Pietro Ingrao, Masse e Potere. Roma,
1977, passim;
e Crisi e Terza via. Roma,
1978, em particular pp, 31-46. (retornar ao texto)
(5) Talvez não seja justo dizer
“marxista”, Pois já Rousseau, no Contrato Social, ao
distinguir entre a “vontade de todos” e a “vontade geral”, indicava o momento
da hegemonia como elemento integrante essencial da democracia. (retornar ao texto)
(6) É interessante constatar que
em Hegel — um
filósofo da sociedade burguesa pós- revolucionária — essa burocracia já assume
explicitamente funções de controle da “sociedade civil”, de “harmonização” dos
interesses econômicos particularistas, o que seria impensável no liberalismo
clássico da época pré-revolucionária. (retornar ao texto)
(7) Não é casual, portanto, que a
filosofia adequada ao liberalismo seja o empirismo positivista (de Locke a Popper); aquela
própria ao totalitarismo seja o irracionalismo organicista, que afirma uma
totalidade sem determinações (basta lembrar a análise de Lukács sobre o
movimento que vai do último Schelling a Hitler, em A Destruição da Razão); enquanto
a dialética — que afirma uma totalidade concreta, uma “síntese de múltiplas
determinações” (Marx) — aparece como
a base filosófica da democracia, desde a dialética idealista de Rousseau até
aquela materialista de Gramsci ou Lukács. (retornar ao texto)
(8) Entre os autores que analisaram
aspectos da história brasileira valendo-se do conceito de “via prussiana”,
pode-se citar: Carlos Nelson Coutinho, “O Significado de Lima Barreto na
Literatura Brasileira”, In: vários
autores, Realismo e
Anti-Realismo na Literatura Brasileira, Rio de Janeiro, 1974,
pp, 3 e ss.; e “Notas sobre a ‘questão Cultural' no Brasil”, In: Escrita/Ensaio, n.°
1, 1977, pp, 6-15; J, Chasin, 0
Integralismo de Plínio Salgado. São Paulo, 1978, pp, 621 e
ss.; e Luiz Werneck Vianna, Sindicalismo
e liberalismo no Brasil, Rio de Janeiro, 1976, em particular
pp, 128 e ss. (retornar ao texto)
(9) Em seu livro de entrevistas
recentemente publicado, Fernando Henrique Cardoso afirma: “Quem busca consenso
é regime autoritário, Democracia, não, Democracia é o reconhecimento da
legitimidade do conflito, a busca da negociação e a procura de acordo, sempre
provisório, em função da correlação de forças” (F, H, Cardoso, Democracia para Mudar, Rio
de Janeiro, 1978, p, 22), A negação do valor do consenso é conseqüência
necessária da negação da hegemonia; como vimos antes, para o pensamento liberal
(assimilado pela social-democracia contemporânea), democracia é sinônimo de
pluralismo — de “reconhecimento da legitimidade do conflito” — enquanto a busca
do consenso (ou da hegemonia) seria sinônimo de totalitarismo, Não é casual,
portanto, que F, H, Cardoso também afirme o seguinte {op. cit, p, 35): “O
democratismo radical do Rousseau inspirou
historicamente momentos políticos que poderiam ser qualificados como de
‘democracias totalitárias’ ”, Estamos diante de um bom exemplo da diferença
entre liberalismo e democracia, entre afirmação abstrata do pluralismo
(reconhecimento empírico de uma situação de fato) e afirmação concreta da
articulação pluralismo-hegemonia (concepção dinâmico-dialética do movimento
social), Porém em vários outros .pontos de sua reflexão, F, H, Cardoso supera os
limites do liberalismo. (retornar ao texto)