Notas sobre religião e ontologia marxiana



Por Frederico Lambertucci - mestrando em Serviço Social pela UFAL


Existe uma incompatibilidade absoluta das posições filosóficas e teóricas do materialismo marxiano com a religião. Isto é, não tenhamos medo em dizer que o marxismo é ateu. O que não significa necessariamente que exista qualquer impossibilidade de se fazer política no mesmo campo a depender da situação. A questão é que a concepção materialista de Marx é uma concepção da totalidade do cosmos. Envolve todo o desenvolvimento do ser e não por acaso Marx considera que a substância do ser é a própria historicidade. 

Essa posição necessariamente requer que aceitemos um desenvolvimento causal. E a matéria em sua forma inorgânica é a primeira forma da matéria, ela em movimento produz novas relações internas e vai se diferenciando em um processo sem consciência atuante - ausência mesmo naquele primeiro momento em que terminados os 6 dias, Deus descansou.

Já nessa primeira esfera de ser, independentemente da discussão sobre seu início, vemos uma total incompatibilidade da ontologia marxiana com a religião, aqui Deus e materialismo já são inconciliáveis. O surgimento da vida, também em termos ontológicos, ou o salto ontológico como diria Lukács, significa a superação [Aufhebung] de uma esfera da matéria que ao relacionar de modo específico – ainda que produto causal também – seus elementos internos do nascimento a uma nova totalidade com uma nova qualidade. 

Esse processo é absolutamente causal e só pode existir porque aquela nova essência nascente se impõe durante todo o processo dando a direção de desenvolvimentos aquela nova esfera do ser e apontando para o desenvolvimento dos seus complexos internos. De outro lado, o próprio ser social, que tem seu fundamento no ato do trabalho, desdobra-se a partir de uma essência constituída neste ato e vai para além dele no seu evolver. O ser social como um ser em que a teleologia se faz presente, tem como médium de sua reprodução a consciência, e só por isso pode imaginar que o desenvolvimento de toda matéria, de todo o ser é causado justamente por aquilo que é único desse ser e só existe na singularidade, isto é, a própria teleologia, por causa desse fato ontológico, repetimos, a consciência é o médium fundamental da reprodução objetiva dessa esfera de ser. Aqui novamente parece óbvio que do ponto de vista filosófico, a ontologia marxiana é incompatível com qualquer religião. Se o médium da reprodução social é a consciência, nem por isso o ser social exiba na totalidade um caráter teleológico.

Como todas as teleologias e o produto destas interagem na história de modo causal, a história depende do que os homens fazem sem, contudo, ser determinada teleologicamente pelos atos humanos. A história em sua totalidade também tem um caráter causal. Isso é importante porque nas academias ainda vigora a falsidade e a ignorância segundo a qual Marx teria uma filosofia teleológica tal qual Hegel. Na realidade, é, de forma engraçada – Clio e suas ironias – e que justamente pelo caráter causal de desenvolvimento do ser social é que a religião é uma possibilidade. 

Como entre a objetividade e a subjetividade não existe identidade, a objetividade continua externa a consciência, mesmo que essa consciência tenha conhecimento acerca da objetividade, isso significa que o desenvolvimento da objetividade pode se opor aos indivíduos, até mesmo como força externa e alheia – se me permitem a piada, é alienação que chama. 

A religião sempre teve na alienação um seu fundamento, justamente pela realidade objetiva com que os indivíduos se confrontam não ser conhecida e aparecer como subjugadora - caso nas sociedades primitivas daquele tipo de alienação que deriva do baixo desenvolvimento das forças produtivas e que é superado por esse próprio desenvolvimento quando a sociedade se complexifica. Mas além desse, a propriedade privada fundamenta o segundo tipo de alienação, aquele que deriva justamente do trabalho ser alienado, se realizar para outrem e o seu produto tornar-se a imagem e o objeto da própria dominação externa.  Aqui os indivíduos parecem não ter o controle de suas vidas e nem produzir seu próprio mundo, parece que sofrem o mundo antes que são ativos produtores dele. Um poder alheio se lhes opõe e os domina. 

A explicação de mundo que deriva desse estado é justamente a religião, a ideia segundo a qual existe um desígnio maior - pois de fato as legalidades universais da sociedade colocam possibilidades e limites e aparecem como legalidades naturais, já que alheias ao seu controle, tomam a forma de uma objetividade fantasmagórica, pois não visível de forma transparente em suas relações, aquelas que os indivíduos não adentram como escolha, mas são forçados de geração em geração pelo simples fato de nascer e viver socialmente. Dessas determinações do ser social nas sociedades de classes deriva a religião, aquela explicação que precisa de uma objetividade externa a vida e a história para dar sentido a vida individual. Isso, também por conta do acaso que atravessa nossas vidas, contudo, não entraremos nesse tópico. 

Parece-nos suficiente tal explicação para notarmos como no plano filosófico a ontologia marxiana é absolutamente inconciliável com qualquer religião. Inclusive explica a existência e a necessidade da religião nas sociedades de classes.  Poderiam perguntar: “mas a ontologia marxiana então prega o fim da religião?”. E podem estranhar, mas a resposta é não. Pois, enquanto existirem aqueles fundamentos da religião, isto é, a alienação do trabalho e, por conseguinte, o conjunto de alienações que daí derivam, a religião existirá, mesmo que em formas não especificamente deístas – pessoal do Karma, astrologia e demais crendices, são vocês mesmos e, sim, isso também se enquadra como explicação religiosa de mundo. 

No entanto, é evidente que a revolução comunista, abolindo aqueles pressupostos, abole também a religião. Mas veja bem, não abole de modo coercitivo, não proíbe, não caça às bruxas. A religião em um processo gradual vai desaparecendo, pois não condiz mais como explicação de mundo de uma realidade alterada e de relações sociais transparentes, pois aqui as relações dos indivíduos são claras e transparentes. Não existe mais a alienação e o fetichismo que encobre as relações e, portanto, não existe mais a necessidade objetiva da religião e nem sua possibilidade. 

E por fim, o fato da URSS ter tentado proibir a religião, só demonstra como o processo de transição era impossível naquele estado e por isso a tentativa de superação da religião foi feita via Estado e pela via política.  Mas isso é assunto para outra hora.

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Wesley Sousa

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