Perry Anderson e o impacto de Bolsonaro nas redes que o elegeu




Post publicado originalmente no site Suplemento Pernambuco
Publicado: Quinta, 19 Março 2020 10:51

Abaixo, um trecho de Brasil à parte (1964-2019), reunião de ensaios do historiador Perry Anderson que será lançada pela Boitempo Editorial e chega às livrarias a partir da próxima quarta-feira (25). Em cinco ensaios, Anderson pensa a história política e econômica do Brasil desde a redemocratização. Também faz um breve apanhado dos primeiros meses do governo Jair Bolsonaro. A seguir, ele faz um breve apanhado do que tem sido o atual governo para a coligação de forças (mercado, Judiciário, Forças Armadas) que o elegeu. 
Agradecemos à Boitempo pela cessão do trecho. O livro está disponível para pré-venda no site da editora
A ilustração é de Marcos de Lima (Instagram: @eumutante).
***
Qual tem sido o impacto do estilo de governar de Bolsonaro – amadorismo político, gestos de prepotência e deslizes de impotência, obsessão por fantasias ideológicas – sobre o tripé sociológico que o levou ao poder: negócios, Justiça, Forças Armadas? O capital, apoiando-se na crença de que podia controlar o governo, celebrou a chegada de Bolsonaro ao Planalto com uma explosão de seu espírito animal (mais especulativa que produtiva): nos primeiros seis meses de 2019, o Ibovespa subiu 10% com a expectativa de privatizações e cortes no sistema de bem-estar social, batendo um recorde histórico em março. A chave para essa confiança no futuro foi a promessa de uma reforma previdenciária para reduzir a dívida pública, principal tarefa de Paulo Guedes no Ministério da Economia. No entanto, o pacote neoliberal radical de Guedes esbarrou em dois obstáculos. Por um lado, o próprio Bolsonaro deixou claro que estava disposto a abrir mão da peça central do projeto de reforma de Guedes: a mudança do sistema previdenciário de um benefício público garantido pelo governo para uma conta individual compulsória, administrada por um fundo privado, seguindo o molde chileno – uma proposta que era não apenas politicamente explosiva (a média das aposentadorias no Chile está abaixo do salário mínimo), como também um arranjo duvidoso em termos fiscais. Por outro lado, a falta de experiência do ministro na tramitação de qualquer medida no Congresso – ainda mais uma medida tão sensível como essa, que exigia uma emenda constitucional –, somada à falta de um apoio competente dentro do Executivo, fez com que o formato final da reforma coubesse a um Legislativo cheio de deputados suficientemente conservadores, mas receosos de uma reação negativa do eleitorado a um ataque tão incisivo contra seus direitos. No fim das contas, por pressão do empresariado, a Câmara aprovou uma reforma previdenciária neoliberal que, sem dúvida, será confirmada pelo Senado. Socialmente, seus efeitos atingirão de maneira mais dura os pobres e os que se encontram em situação precária; economicamente, provocará uma redução dos recursos necessários para financiar o novo sistema [nota 1].

Enquanto isso, todos os indicadores econômicos apontam para baixo, indicando uma estagnação prolongada. A recuperação da recessão de 2015-2016, quando o PIB caiu 7%, foi muito fraca em 2017-2018, chegando a no máximo 1,1% ao ano, à medida que os gastos públicos eram cortados, e o consumo, estabilizado. Um cenário ainda pior se desenharia no primeiro trimestre de 2019, quando a economia, longe de dar um salto com Bolsonaro, recuou 0,1%, e os investimentos – apesar das taxas de juros mais baixas desde a redemocratização – caíram 1,7% por falta de demanda efetiva, deprimida pela austeridade fiscal interna e pelo recuo dos mercados de commodities no exterior [nota 2]. Inalterado por Guedes, o tratamento neoliberal da crise herdada de Temer resultou em mais de 13 milhões de desempregados, o dobro do número anterior à crise, e fez aumentar o total de brasileiros abaixo da linha mínima de pobreza definida pelo Banco Mundial, superando os 7 milhões de pessoas. O próprio capital tem poucas razões para estar satisfeito com esse desempenho; as massas têm razões para um desespero cada vez maior. Sem uma reversão desse quadro, a legitimação econômica do governo desaparecerá.

E a Justiça, o segundo pilar do tripé? Não fosse a operação Lava Jato, Bolsonaro jamais teria chegado ao poder. Uma vez eleito, nenhuma decisão deu mais brilho à aura de sua Presidência que a nomeação de Sergio Moro como ministro da Justiça. Personificação da luta contra a corrupção, mais popular que o próprio presidente, ao mesmo tempo em que lhe proporcionava um colete à prova de balas ético, Moro era visto como o candidato mais provável à sucessão de Bolsonaro. O único ponto de interrogação sobre seu futuro parecia ser se ele colidiria com o Congresso na busca de novas irregularidades políticas ou se, ao contrário, perderia seu esplendor ao permitir que as investigações se encerrassem depois de tomar posse como ministro. Pelo visto, nenhum dos dois cenários se materializou, sendo superados por algo mais sensacional. No início de junho, quase seis anos após divulgar as revelações de Edward Snowden sobre o império mundial de vigilância ilegal de Barack Obama, Glenn Greenwald e seus colegas do jornal The Intercept começaram a publicar conversas entre Sergio Moro e Deltan Dallagnol, o que deixou claro que o juiz e o procurador, desafiando a Constituição, confabularam para garantir a prisão de Lula, baseando-se em provas que ambos sabiam ser fracas, e que Moro orientou as operações da promotoria em um caso em que deveria ser imparcial.

Tudo isso já era, a rigor, óbvio para quem quisesse ver, mesmo na ausência dessas provas escritas. O que revelaram as conversas divulgadas por The Intercept foi algo mais, foi uma resposta brutal à pergunta colocada por André Singer ao descrever os procedimentos da Lava Jato como sendo ao mesmo tempo “republicanos” e “facciosos”: será que os procedimentos eram as duas coisas ao mesmo tempo em igual proporção? Pois as mensagens não mostram apenas que o veredito contra Lula em 2018 foi manipulado, que o juiz que o proferiu era parte interessada nas acusações contra ele e que o mesmo juiz mantinha contato secreto com aquele que na linguagem da máfia italiana é chamado de “referente” no Supremo Tribunal Federal, Luiz Fux, reafirmando a Dallagnol sua capacidade de garantir respaldo a suas maquinações com a frase memorável (que poderia ter saído de um romance de Leonardo Sciascia): “In Fux We Trust” [nota 3]. As mensagens também provaram, sem sombra de dúvida, que as motivações tanto do juiz quanto dos procuradores eram políticas, estendendo-se em chacotas ao PT, medidas para garantir que Lula não pudesse dar entrevistas à imprensa (que aumentariam as chances do partido nas eleições) e também – de certo modo, talvez o pior – para proteger Fernando Henrique Cardoso, arqui-inimigo político de Lula, de qualquer risco de investigação de suas finanças, também lubrificadas pela Odebrecht. Ao ser alertado por Dallagnol de que os procuradores em São Paulo, que aparentemente investigavam esses fatos, talvez só estivessem fingindo para manter um ar de imparcialidade, Moro não se tranquilizou e disse que isso era “questionável”, pois “melindra alguém cujo apoio é importante”. Os laços que uniam o grupo em Curitiba ao patriarca do PSDB não poderiam ser mais transparentes.

Descartada, claro, defensivamente por Fernando Henrique Cardoso como “tempestade em copo d’água”, as revelações da Vaza Jato caíram como uma bomba na opinião liberal menos comprometida. A reação de três dos mais conhecidos colunistas do país, dois deles famosos pela ferocidade de seus ataques ao PT quando o partido estava no poder, foi reveladora. Da direita para a esquerda do espectro: nas palavras de Reinaldo Azevedo, as informações da Vaza Jato significam que “havendo lei, a condenação de Lula é nula”; para Demétrio Magnoli, “o conluio de Sergio Moro com os procuradores […] paira como nuvem de chumbo sobre nossa democracia” e, agora que foi exposto, qualquer “governo decente afastaria Moro sem demora, mas não temos nada parecido com isso”; já para Elio Gaspari, a permanência de Moro no cargo “ofende a moral, o bom senso e a lei da gravidade”, e ele deveria renunciar imediatamente; a conduta política da dupla em Curitiba lembrou a incitação dos oficiais que queriam derrubar Getúlio Vargas em 1954 [nota 4]. No entanto, seria ingênuo esperar que essa reviravolta derrubasse Moro, por mais propagada ou clara que fosse. Muito valor simbólico foi investido nele para que o establishment brasileiro atual – presidente, Supremo Tribunal Federal, Congresso – o deixe cair. No entanto, Moro agora estava avariado, e de protetor de Bolsonaro passou principalmente a ser protegido por ele. O pilar judicial do tripé parece tão instável quanto o pilar econômico.

Poucas horas depois dos ataques a Moro, não foi a Presidência que saiu em sua defesa. Bolsonaro, sem dúvida esperando para ver quais seriam as repercussões da Vaza Jato, ficou em silêncio. Quem se manifestou foi o general mais poderoso do governo, e em termos que deixaram clara a participação política dos militares na tarefa comum, que uniu oficiais e magistrados, de destruir Lula e garantir que o PT não vencesse as eleições de 2018. As mensagens interceptadas, segundo Augusto Heleno, “querem macular a imagem do dr. Sergio Moro, cujas integridade e devoção à pátria estão acima de qualquer suspeita”. […] Colegas militares contribuíram com outras declarações no mesmo sentido.

O que uma intervenção imediata como essa indica, num momento de crise, é que, no tripé de forças que sustentam Bolsonaro, os militares são de longe a mais importante, a que dá ao governo sua base mais estável e poderosa. Isso sempre esteve nítido pelo grande número e pela importância dos cargos que eles ocupam no governo de Bolsonaro. Começando por Heleno, no topo, encarregado da Segurança Institucional, os militares ganharam o controle das pastas de Infraestrutura, Ciência e Tecnologia, Minas e Energia, Defesa, Controladoria Geral, Secretaria-Geral da Presidência, Secretaria de Governo, sem falar da Secretaria de Imprensa, Correios, assessoria do presidente do Supremo Tribunal Federal etc. Ao todo, nada menos que 45 militares ocupam cargos nos dois níveis mais altos do governo. Em termos comparativos, o número de ministros das Forças Armadas no governo de Bolsonaro supera não só o do governo de Castelo Branco no início da ditadura em 1964, mas também o de qualquer um de seus sucessores militares após o fortalecimento do regime – Costa e Silva, Médici, Geisel ou Figueiredo [nota 5].

[…]

A colonização do governo Bolsonaro pelas Forças Armadas, cerca de cinquenta anos depois de um golpe do qual elas ainda se orgulham, confere a esse período de meio século da história brasileira a forma de uma parábola. Em 1964, os militares tomaram o poder para remover um presidente disposto a aceitar, na visão deles, mudanças radicais na ordem social. Em 2018, eles intervieram para garantir que um presidente ainda popular, na visão deles, após realizar mudanças bem menos radicais, não fosse reeleito, colocando no poder alguém que tivesse uma origem e um modo de pensar semelhante ao deles. A curva de uma parábola não precisa ser simétrica. A derrubada de Jango e o bloqueio de Lula foram operações distintas, a primeira exigindo o exercício da violência, a segunda, apenas a ameaça dela. Embora a linguagem da imposição seja diferente – prevenção da “subversão”, no primeiro caso, e da “impunidade”, no segundo, como atos do Estado –, o pronunciamento de Olímpio Mourão Filho em 1964 e o de Villas Bôas em 2018 foram semelhantes. Os regimes aos quais eles deram à luz não são os mesmos – cada um é criatura de seu contexto, produto de circunstâncias históricas contrastantes. Na época do segundo, não houve necessidade dos tanques e dos torturadores usados no primeiro, apesar da nostalgia de Bolsonaro por eles. A democracia se tornara segura para o capital havia muito tempo e, dentro dos limites da ordem social estabelecida, a combatividade popular estava em baixa. Uma vez instaurado, o novo regime corre muito mais risco vindo de sua própria aporia do que de qualquer oposição organizada.

NOTAS
[nota 1] Ver Thomas Piketty et al., “A quem interessa aumentar a desigualdade?”, Valor Econômico, 11 jul. 2019.
[nota 2] Sobre a economia geral obtida com a austeridade de Dilma a Bolsonaro, ver o competente trabalho de Pedro Paulo Zahluth e seus colegas do Centro de Estudos de Conjuntura e Política Econômica da Universidade de Campinas: “A contração do PIB no primeiro trimestre e o risco de recessão em 2019”, Nota do Cecon, n. 5, maio 2019.
[nota 3] Posteriormente completado por Dallagnol, em referência a um segundo referente no Supremo Tribunal Federal, com um jubiloso: “Fachin é nosso”.
[nota 4] Em ordem cronológica: Elio Gaspari, “Moro, pede pra sair”, Folha de S.Paulo, 12 jun. 2019; Demétrio Magnoli, “'Não é sobre Lula ou Moro. A corrupção do sistema de justiça não reprime a corrupção política”, Folha de S.Paulo, 15 jun. 2019; Reinaldo Azevedo, “Havendo lei, condenação de Lula é nula”, Folha de S.Paulo, 21 jun. 2019.
[nota 5] Sob a ditadura, as Forças Armadas possuíam cada uma seu próprio ministério, além dos cargos ministeriais de chefe do Estado-Maior, chefe da Casa Militar da Presidência e chefe do aparelho de vigilância interna e repressão, o SNI. Após a democratização, essas seis posições foram reduzidas a duas – Defesa e Segurança Institucional. Para números relevantes, ver “Ministério terá mais militares do que em 1964”, O Estado de S. Paulo, 16 dez. 2018.
Qual tem sido o impacto do estilo de governar de Bolsonaro – amadorismo político, gestos de prepotência e deslizes de impotência, obsessão por fantasias ideológicas – sobre o tripé sociológico que o levou ao poder: negócios, Justiça, Forças Armadas? O capital, apoiando-se na crença de que podia controlar o governo, celebrou a chegada de Bolsonaro ao Planalto com uma explosão de seu espírito animal (mais especulativa que produtiva): nos primeiros seis meses de 2019, o Ibovespa subiu 10% com a expectativa de privatizações e cortes no sistema de bem-estar social, batendo um recorde histórico em março. A chave para essa confiança no futuro foi a promessa de uma reforma previdenciária para reduzir a dívida pública, principal tarefa de Paulo Guedes no Ministério da Economia. No entanto, o pacote neoliberal radical de Guedes esbarrou em dois obstáculos. Por um lado, o próprio Bolsonaro deixou claro que estava disposto a abrir mão da peça central do projeto de reforma de Guedes: a mudança do sistema previdenciário de um benefício público garantido pelo governo para uma conta individual compulsória, administrada por um fundo privado, seguindo o molde chileno – uma proposta que era não apenas politicamente explosiva (a média das aposentadorias no Chile está abaixo do salário mínimo), como também um arranjo duvidoso em termos fiscais. Por outro lado, a falta de experiência do ministro na tramitação de qualquer medida no Congresso – ainda mais uma medida tão sensível como essa, que exigia uma emenda constitucional –, somada à falta de um apoio competente dentro do Executivo, fez com que o formato final da reforma coubesse a um Legislativo cheio de deputados suficientemente conservadores, mas receosos de uma reação negativa do eleitorado a um ataque tão incisivo contra seus direitos. No fim das contas, por pressão do empresariado, a Câmara aprovou uma reforma previdenciária neoliberal que, sem dúvida, será confirmada pelo Senado. Socialmente, seus efeitos atingirão de maneira mais dura os pobres e os que se encontram em situação precária; economicamente, provocará uma redução dos recursos necessários para financiar o novo sistema [nota 1].Enquanto isso, todos os indicadores econômicos apontam para baixo, indicando uma estagnação prolongada. A recuperação da recessão de 2015-2016, quando o PIB caiu 7%, foi muito fraca em 2017-2018, chegando a no máximo 1,1% ao ano, à medida que os gastos públicos eram cortados, e o consumo, estabilizado. Um cenário ainda pior se desenharia no primeiro trimestre de 2019, quando a economia, longe de dar um salto com Bolsonaro, recuou 0,1%, e os investimentos – apesar das taxas de juros mais baixas desde a redemocratização – caíram 1,7% por falta de demanda efetiva, deprimida pela austeridade fiscal interna e pelo recuo dos mercados de commodities no exterior [nota 2]. Inalterado por Guedes, o tratamento neoliberal da crise herdada de Temer resultou em mais de 13 milhões de desempregados, o dobro do número anterior à crise, e fez aumentar o total de brasileiros abaixo da linha mínima de pobreza definida pelo Banco Mundial, superando os 7 milhões de pessoas. O próprio capital tem poucas razões para estar satisfeito com esse desempenho; as massas têm razões para um desespero cada vez maior. Sem uma reversão desse quadro, a legitimação econômica do governo desaparecerá.E a Justiça, o segundo pilar do tripé? Não fosse a operação Lava Jato, Bolsonaro jamais teria chegado ao poder. Uma vez eleito, nenhuma decisão deu mais brilho à aura de sua Presidência que a nomeação de Sergio Moro como ministro da Justiça. Personificação da luta contra a corrupção, mais popular que o próprio presidente, ao mesmo tempo em que lhe proporcionava um colete à prova de balas ético, Moro era visto como o candidato mais provável à sucessão de Bolsonaro. O único ponto de interrogação sobre seu futuro parecia ser se ele colidiria com o Congresso na busca de novas irregularidades políticas ou se, ao contrário, perderia seu esplendor ao permitir que as investigações se encerrassem depois de tomar posse como ministro. Pelo visto, nenhum dos dois cenários se materializou, sendo superados por algo mais sensacional. No início de junho, quase seis anos após divulgar as revelações de Edward Snowden sobre o império mundial de vigilância ilegal de Barack Obama, Glenn Greenwald e seus colegas do jornal The Intercept começaram a publicar conversas entre Sergio Moro e Deltan Dallagnol, o que deixou claro que o juiz e o procurador, desafiando a Constituição, confabularam para garantir a prisão de Lula, baseando-se em provas que ambos sabiam ser fracas, e que Moro orientou as operações da promotoria em um caso em que deveria ser imparcial.Tudo isso já era, a rigor, óbvio para quem quisesse ver, mesmo na ausência dessas provas escritas. O que revelaram as conversas divulgadas por The Intercept foi algo mais, foi uma resposta brutal à pergunta colocada por André Singer ao descrever os procedimentos da Lava Jato como sendo ao mesmo tempo “republicanos” e “facciosos”: será que os procedimentos eram as duas coisas ao mesmo tempo em igual proporção? Pois as mensagens não mostram apenas que o veredito contra Lula em 2018 foi manipulado, que o juiz que o proferiu era parte interessada nas acusações contra ele e que o mesmo juiz mantinha contato secreto com aquele que na linguagem da máfia italiana é chamado de “referente” no Supremo Tribunal Federal, Luiz Fux, reafirmando a Dallagnol sua capacidade de garantir respaldo a suas maquinações com a frase memorável (que poderia ter saído de um romance de Leonardo Sciascia): “In Fux We Trust” [nota 3]. As mensagens também provaram, sem sombra de dúvida, que as motivações tanto do juiz quanto dos procuradores eram políticas, estendendo-se em chacotas ao PT, medidas para garantir que Lula não pudesse dar entrevistas à imprensa (que aumentariam as chances do partido nas eleições) e também – de certo modo, talvez o pior – para proteger Fernando Henrique Cardoso, arqui-inimigo político de Lula, de qualquer risco de investigação de suas finanças, também lubrificadas pela Odebrecht. Ao ser alertado por Dallagnol de que os procuradores em São Paulo, que aparentemente investigavam esses fatos, talvez só estivessem fingindo para manter um ar de imparcialidade, Moro não se tranquilizou e disse que isso era “questionável”, pois “melindra alguém cujo apoio é importante”. Os laços que uniam o grupo em Curitiba ao patriarca do PSDB não poderiam ser mais transparentes.Descartada, claro, defensivamente por Fernando Henrique Cardoso como “tempestade em copo d’água”, as revelações da Vaza Jato caíram como uma bomba na opinião liberal menos comprometida. A reação de três dos mais conhecidos colunistas do país, dois deles famosos pela ferocidade de seus ataques ao PT quando o partido estava no poder, foi reveladora. Da direita para a esquerda do espectro: nas palavras de Reinaldo Azevedo, as informações da Vaza Jato significam que “havendo lei, a condenação de Lula é nula”; para Demétrio Magnoli, “o conluio de Sergio Moro com os procuradores […] paira como nuvem de chumbo sobre nossa democracia” e, agora que foi exposto, qualquer “governo decente afastaria Moro sem demora, mas não temos nada parecido com isso”; já para Elio Gaspari, a permanência de Moro no cargo “ofende a moral, o bom senso e a lei da gravidade”, e ele deveria renunciar imediatamente; a conduta política da dupla em Curitiba lembrou a incitação dos oficiais que queriam derrubar Getúlio Vargas em 1954 [nota 4]. No entanto, seria ingênuo esperar que essa reviravolta derrubasse Moro, por mais propagada ou clara que fosse. Muito valor simbólico foi investido nele para que o establishment brasileiro atual – presidente, Supremo Tribunal Federal, Congresso – o deixe cair. No entanto, Moro agora estava avariado, e de protetor de Bolsonaro passou principalmente a ser protegido por ele. O pilar judicial do tripé parece tão instável quanto o pilar econômico.Poucas horas depois dos ataques a Moro, não foi a Presidência que saiu em sua defesa. Bolsonaro, sem dúvida esperando para ver quais seriam as repercussões da Vaza Jato, ficou em silêncio. Quem se manifestou foi o general mais poderoso do governo, e em termos que deixaram clara a participação política dos militares na tarefa comum, que uniu oficiais e magistrados, de destruir Lula e garantir que o PT não vencesse as eleições de 2018. As mensagens interceptadas, segundo Augusto Heleno, “querem macular a imagem do dr. Sergio Moro, cujas integridade e devoção à pátria estão acima de qualquer suspeita”. […] Colegas militares contribuíram com outras declarações no mesmo sentido.O que uma intervenção imediata como essa indica, num momento de crise, é que, no tripé de forças que sustentam Bolsonaro, os militares são de longe a mais importante, a que dá ao governo sua base mais estável e poderosa. Isso sempre esteve nítido pelo grande número e pela importância dos cargos que eles ocupam no governo de Bolsonaro. Começando por Heleno, no topo, encarregado da Segurança Institucional, os militares ganharam o controle das pastas de Infraestrutura, Ciência e Tecnologia, Minas e Energia, Defesa, Controladoria Geral, Secretaria-Geral da Presidência, Secretaria de Governo, sem falar da Secretaria de Imprensa, Correios, assessoria do presidente do Supremo Tribunal Federal etc. Ao todo, nada menos que 45 militares ocupam cargos nos dois níveis mais altos do governo. Em termos comparativos, o número de ministros das Forças Armadas no governo de Bolsonaro supera não só o do governo de Castelo Branco no início da ditadura em 1964, mas também o de qualquer um de seus sucessores militares após o fortalecimento do regime – Costa e Silva, Médici, Geisel ou Figueiredo [nota 5]. […]A colonização do governo Bolsonaro pelas Forças Armadas, cerca de cinquenta anos depois de um golpe do qual elas ainda se orgulham, confere a esse período de meio século da história brasileira a forma de uma parábola. Em 1964, os militares tomaram o poder para remover um presidente disposto a aceitar, na visão deles, mudanças radicais na ordem social. Em 2018, eles intervieram para garantir que um presidente ainda popular, na visão deles, após realizar mudanças bem menos radicais, não fosse reeleito, colocando no poder alguém que tivesse uma origem e um modo de pensar semelhante ao deles. A curva de uma parábola não precisa ser simétrica. A derrubada de Jango e o bloqueio de Lula foram operações distintas, a primeira exigindo o exercício da violência, a segunda, apenas a ameaça dela. Embora a linguagem da imposição seja diferente – prevenção da “subversão”, no primeiro caso, e da “impunidade”, no segundo, como atos do Estado –, o pronunciamento de Olímpio Mourão Filho em 1964 e o de Villas Bôas em 2018 foram semelhantes. Os regimes aos quais eles deram à luz não são os mesmos – cada um é criatura de seu contexto, produto de circunstâncias históricas contrastantes. Na época do segundo, não houve necessidade dos tanques e dos torturadores usados no primeiro, apesar da nostalgia de Bolsonaro por eles. A democracia se tornara segura para o capital havia muito tempo e, dentro dos limites da ordem social estabelecida, a combatividade popular estava em baixa. Uma vez instaurado, o novo regime corre muito mais risco vindo de sua própria aporia do que de qualquer oposição organizada.[nota 1] Ver Thomas Piketty et al., “A quem interessa aumentar a desigualdade?”, Valor Econômico, 11 jul. 2019.[nota 2] Sobre a economia geral obtida com a austeridade de Dilma a Bolsonaro, ver o competente trabalho de Pedro Paulo Zahluth e seus colegas do Centro de Estudos de Conjuntura e Política Econômica da Universidade de Campinas: “A contração do PIB no primeiro trimestre e o risco de recessão em 2019”, Nota do Cecon, n. 5, maio 2019.[nota 3] Posteriormente completado por Dallagnol, em referência a um segundo referente no Supremo Tribunal Federal, com um jubiloso: “Fachin é nosso”.[nota 4] Em ordem cronológica: Elio Gaspari, “Moro, pede pra sair”, Folha de S.Paulo, 12 jun. 2019; Demétrio Magnoli, “'Não é sobre Lula ou Moro. A corrupção do sistema de justiça não reprime a corrupção política”, Folha de S.Paulo, 15 jun. 2019; Reinaldo Azevedo, “Havendo lei, condenação de Lula é nula”, Folha de S.Paulo, 21 jun. 2019.
Wesley Sousa

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