Por
Alex Agra Ramos - mestrando em Ciência Política pela UFBA
Pode
até ser que as chuvas sejam consideradas um episódio de caso fortuito (sem
querer entrar em questões doutrinárias aqui, mas definindo caso fortuito como
evento da natureza de caráter imprevisível), não vejo impossibilidade de
responsabilização em alguns aspectos. Seria necessário outro espaço pra falar
sobre isso, então vou resumir em alguns pontos. As lacunas podem ser
preenchidas em debate futuro.
A
primeira questão é que cientificamente a imprevisibilidade do objeto não é
inquestionável não. Mas como essa cientificidade é de certa forma subjetiva e
não importa ao Direito, façamos primeiro uma consideração extrajurídica: o
aumento da financeirização da economia, que levou todo o setor industrial para
a esfera especulativa e oportunizou, não sem bastante incentivo de todos os
governos que vieram depois, a reprimarização da economia, somado ao abandono do
projeto nacional de mudança do padrão enérgico da energia hidroelétrica pra
energia nuclear vêm cobrando fortes preços. Precisamente porque quanto maior a
crise no setor externo da economia, maior a necessidade de expansão da produção
do agronegócio, pra inclusive compensar a deterioração dos termos de troca.
Isso passa pela expansão da fronteira agrícola que, por óbvio, passa pela
extensão do principal alvo dessa extensão: a região do MATOPIBA. Apesar de
captar até então a região oeste da Bahia, o MATOPIBA se expande pra o sul da
Bahia sem novidades há um bom tempo e a exploração tanto do agronegócio quanto
a exploração mineral se encontram entre Bahia e Minas Gerais há um certo tempo.
Somado
a isso, existem as hidrelétricas da região, que alteram os cursos dos rios e as
mineradoras que, optando por alteamentos à montante, ou seja, onde o alteamento
da barragem por ser muito mais econômico, é feito em cima do próprio resíduo da
barragem, sujeita a população à perigo que não é inevitável, considerando
formas mais seguras (porém, mais caras) de proteger as pessoas são deixadas de
lado por uma questão de taxa de lucro.
Tudo
isso tem promovido um resultado que não é novidade: fortes alterações
climáticas no Brasil. Na região da Bahia essas alterações têm sido gritantes e
o subdesenvolvimento da região tem tudo a ver com a tal MATOPIBA e a expansão
da fronteira agrícola. Aliás, poderia ser um tema à parte só a ligação entre
agronegócio e mineração e o subdesenvolvimento da região. Nesse sentido, seguindo
o fio, tais alterações climáticas têm sido cada vez mais recorrentes e embora
muitas vezes o MOMENTO de sua ocorrência seja imprevisível, o caso é que o FATO
em si não é. Trata-se evento certo, mas impreciso quanto ao momento.
Assim
entra a discussão sobre a responsabilização do Poder Público. Seria o caso de
investigar em quais áreas qual poder público pode ser responsabilizado, que não
é a ideia desse pequeno texto aqui. A Constituição brasileira, através do seu
artigo 37, parágrafo 6, estabelece que as pessoas jurídicas de direito público
e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos
danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o
direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa. Entra a
questão aí do caso fortuito ou força maior. Embora a consideração que fiz de
forma acima talvez não seja suficiente pra a atribuição dessa responsabilidade,
o resultado produzido é sim suficiente. E explico a razão de acreditar nisso.
Para caracterização da responsabilidade exige-se a fixação do nexo causal
(causa e efeito) entre o dano produzido e a atividade funcional desempenhada
pelo agente estatal. Aí é que está: a conexão entre o dano e a atividade
desempenhada pelo agente.
Antes
de tudo, quero dizer que qualquer aplicação punitivista e extensiva da teoria
do domínio do fato está sendo rejeitada aqui, tanto na sua forma ampliativa
(levando o domínio do fato a quem não possui qualquer vínculo mental com o
resultado) quanto na sua forma reduzida (restringindo o domínio do fato aos
"peixes pequenos"). Aliás, por uma questão de fidelidade doutrinária,
que acredito tenho aprendido bem com Greco e Roxin, sequer acredito que essa
teoria se aplique no caso, mas estou já me antecipando às forças punitivas que
buscaram encontrar nela as formas de responsabilização. Repito: seria uma
inovação de péssima qualidade aplicar essa teoria ao caso, então nem inventem.
Até
onde conheço, e me avisem se estiver errado porque assumo sempre essa
possibilidade, nos casos de enchente a responsabilidade é objetiva, ou seja, as
vítimas não precisam provar a culpa do Poder Público, apenas o fato (enchente)
e os danos. Mas isso no caso específico das enchentes. Quero tratar da soma das
tragédias (por isso seria importante fazê-lo em um debate separando caso a caso
ou em um outro espaço, mas busco só uma reflexão sobre o tema.
A
questão está relacionada a dois elementos importantes:
1 - A
tecnologia e o desenvolvimento técnico da área da construção civil, que
deveriam ser garantidos nos planejamentos de moradia das cidades e os planos de
emergência das prefeituras, permitem a tomada de medidas preventivas EFICIENTES
no caso em questão? Seja para evitar o dano ou repará-lo? Seria o caso de
analisar as duas hipóteses.
2 - Aqui está o elemento fundamental de toda a minha argumentação: foi respeitado o princípio da proibição da proteção deficiente?
No
caso da resposta para o primeiro item ser negativa, penso ser absolutamente
clara a possibilidade de atribuição de responsabilidade civil por meio de
Inquérito Civil instaurado pelo Ministério Público para apurar a devida medida
de responsabilidade do Poder Público, realizando posteriormente uma Ação Civil
Pública. Para isso, sendo sincero, seria necessário dar ao Ministério Público
que parece que não há interesse em oferecer, ao menos não quando se trata de
questão ambiental, habitacional ou urbana. Aparentemente, o Ministério Público
só é "bonito" para crimes de colarinho branco e para crimes contra a
vida, e olhe lá.
Paralelamente,
a resposta para o item 2 ser negativa, acredito que aí está o nexo causal que
se busca, supracitado.
O
princípio da proibição da proteção deficiente (Untermassverbot), que em tese
deveria ser muito usado no Direito Penal, diz respeito à atuação positiva e não
deficiente do Poder Estatal. Isso porque há uma compreensão de que os direitos
fundamentais não se limitam a impor obrigação negativa – abstenção de violação
– ao Estado. Os direitos fundamentais, especialmente os de segunda geração pra
frente, impõem obrigações positivas, já que se compreende que o Estado tem dever
de proteger os direitos fundamentais, não somente de não os violar.
Aí
está o nexo causal que figurava como pré-requisito, era dever estatal proteger
os direitos fundamentais que foram violados: o direito à vida (18 mortos até
agora), proteção do meio ambiente (enchentes e rompimento da barragem de
Itambé), direito à moradia (destruição e alagamento interno de diversas casas e
pessoas desabrigadas), direito à saúde (doenças desenvolvidas em decorrência
das enchentes) e por aí vai.
Enfim, posso estar errado em alguns aspectos dessa reflexão, talvez em todos, mas não poderia deixar de fazê-la.
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