A falácia do ranking de liberdade econômica




Você já viu na internet alguém usando um famoso “ranking de liberdade dos países” para justificar políticas neoliberais, entreguistas e minarquistas (estado-mínimo)? Esse ranking é o famoso HERITAGE, que está sendo muito utilizado por economistas adeptos do liberalismo ou simpatizantes em geral. Usa-o de forma bem superficial, com dizeres do tipo:

“Olha aqui, Suécia está lá em cima no ranking, é muito mais liberal que o Brasil…”

“Cingapura está lá no topo, temos que imitá-la em tudo!”




Vamos por partes.

Primeiro quero analisar a metodologia desse indicador e questionar sua correlação com a hipótese do “estado-mínimo” ou com a hipótese de um Estado eficiente que provém a sua população assistida uma melhor qualidade de vida (que é o que eu defendo).

Na página do próprio Instituto Heritage aqui na internet tem lá o link para o documento METHODOLOGY (está aberto a todos, confiram). A metodologia contém quatro eixos principais, são eles: (1) Rule of Law (Estado de Direito), (2) Government Size (tamanho de governo), (3) Regulatory Efficiency (eficiência regulatória) e (4) Market Openness (abertura de mercado). Só aqui eu já deveria parar e questionar um monte de coisas. Tamanho de governo e abertura de mercado vá lá que realmente esteja dentro dos ideais do liberalismo, que prega a globalização como igualmente boa para todos (pobres e ricos), estado-mínimo, estado enxuto, etc. Agora, a qualidade do Estado de Direito e a eficiência regulatória, qual é o cidadão, pesquisador do desenvolvimento das nações ou das regiões pobres, que se opõe a isso? Não é uma bandeira do liberalismo (ou das fanzetes de “liberdade”), é uma bandeira de todas as pessoas sensatas que divagam sobre o tema!

Melhorar o Estado que eu saiba sempre foi a luta dos heterodoxos, pós-keynesianos, institucionalistas e afins. Eu achava que a luta dos liberais era apenas por diminuir o Estado, não por melhorá-lo. Aliás, era isso que pregava Milton Friedman quando dizia: “Se você colocar o governo para administrar o deserto do Saara vai faltar areia”. Pura bravata.

Mas vamos lá, haja paciência para continuar dando crédito a esse ranking depois desse começo já bem questionável.

No eixo de “Estado de Direito”, você observa uma ênfase ao protecionismo à propriedade privada (ok) e uma ênfase (negativa) a corrupção. Pera aí, corrupção? E quem é a favor de corrupção no judiciário? Os intervencionistas é que não! Ninguém em sã consciência é a favor de corrupção! O conjunto de leis e a elaboração da legislação é outra história, mas a corrupção na jurisdição ninguém defende. Como que querem colocar isso dentro de um “indicador de liberdade”? Muita gente pode defender a ideia de que ortodoxos e heterodoxos podem ter pontos em comum. Keynesianos e neoclássicos, novos clássicos e novos keynesianos, pós-keynesianos a lá Galbraith e monetaristas a lá Friedman, institucionalistas e “austríacos”, blablabla. Mas vejam, a ideia ao mostrar esse indicador é “refutar” (verbo que os “austríacos” adoram utilizar) alguém com a ideia completamente oposta, não? Então não se deve misturar alhos com bugalhos. Mas tudo bem, vamos ter muita paciência e continuar resumidamente sobre o indicador. No eixo “tamanho de governo” está lá uma bem explicada conta sobre a carga de tributos e impostos de uma nação. Ok, nada a criticar. Depois, ainda nesse eixo, tem um item falando sobre os gastos de governo (spending component) proporcional nos países. Quanto maiores os gastos, pior a nota. Se abstrairmos os outros critérios do índice HERITAGE e pegar somente esse item (spending component), veremos países desenvolvidos com notas baixíssimas (Holanda, por exemplo, observe a nota deles), e países pobres e subdesenvolvidos com notas altas (tipo Jamaica, Trinidad & Tobago,etc.). O que eu quero dizer observando tal fato? Engraçado esse índice considerar como “qualidade” você manter um gasto baixo do governo enquanto sua população está na m… (desculpem o termo inadequado). E ninguém notar a casualidade (correlação) entre maiores gastos e menos subdesenvolvimento!

A teoria deve ser do tipo: “vamos ficar aqui bem pobres, abdicando de ter o básico, de comer, pra no futuro ficarmos ricos!”, como se a miséria atual fosse uma espécie de poupança. Sinceramente? Eu nunca usaria um PhD ou uma titulação alta em ciências econômicas para tentar passar para os leigos um absurdo desse tipo. Por que razão um governo (Estado) deve manter baixo os seus gastos se sua população está atolada na miséria? Vai esperar a ‘mão invisível’ criar uma industrialização virtuosa e uma imensa base econômica de geração de tributos? Não dá. Vamos para o eixo Regulatory Efficiency (eficiência regulatória). Começa com o item ‘business freedom’ (liberdade de negócios), onde falam de rapidez na abertura de empresas, número de procedimentos na abertura de empresa (quanto menor, melhor), custo, etc. Também fala da rapidez no fechamento das empresas, custo, etc. Bom, por mim eu posso falar que não sou seguidor do liberalismo, mas nunca fui contra rapidez e eficiência nessas coisas, por mais que se possa falar do risco de muitas ’empresas-fantasmas’ abertas e tudo mais. Não entendo a lógica na inclusão desse item também. Depois chegamos no item labor freedom’ (liberdade no mercado de trabalho), aí diz que leva em conta o salário mínimo, leis que inibem demissões, indenizações, rigidez dos horários, dificuldade na demissão, etc.

Até aí tudo bem. Mas você vai olhar pra Austrália nesse item, ela tem uma nota alta (mais de 80), porém, sabe-se que é um país com um salário mínimo altíssimo estipulado por lei (não é a média de quanto a população do trabalho mais precarizado recebe). Fui conferir no google e são US$ 29.000 por ano (algo em torno de US$ 2400 por mês). Um país desse seria um empecilho enorme na possibilidade de atrair investimentos produtivos por lá, não? Quem vai querer pagar no mínimo 2400 dólares/mês para um australiano, por exemplo, lavar os pratos do seu restaurante de comida brasileira em Sidney? Péssimo pra se investir, né? Pois a nota do país no item ‘Labor Freedom’ está alta, vai entender…

Não venham falar (ou pensar) na argumentação de que o consumo lá no país deles vale qualquer investimento, pois essa era uma argumentação que um heterodoxo (tipo eu) poderia usar, mas não um liberal que odeia crescimento baseado no consumo (já que para eles isso é sempre insustentável, sem analisar contextos). E nesse texto estou apenas desmistificando uma argumentação típica deles…

O eixo Regulatory Efficiency termina no item ‘monetary freedom’ (liberdade monetária). E aí nem me dei o trabalho de analisar criteriosamente, pois já conheço os argumentos contra a expansão monetária, então vou deixar pra lá (fingir que eles estão certos aqui). No último eixo, Market Openness (abertura de mercado), tem os itens: ‘trade freedom’ (liberdade nas trocas), ‘investment freedom’ (liberdade no investimento) e ‘financial freedom’ (algo como “liberdade no mercado financeiro” ou “liberdade financeira”). Alheio a esses itens, vou avisando ao leitor desse blog que liberdade de trocas e ‘vantagens comparativas’ (procure no google se não souber do que se trata) é muito bom pra quem já tem um parque industrial gigantesco, moderno, sofisticado, que produz bens finais de altíssimo valor agregado (como semicondutores, para dar um exemplo), onde já se tem uma mão de obra treinada e qualificada, onde já se tem uma infraestrutura logística de altíssimo grau, etc. Evidentemente que países nessas condições vão querer se abrir às trocas com todas as nações do mundo mesmo, pois eles tem condições de competir.

É a mesma coisa de você colocar um desportista profissional, nível de Olimpíadas, competir contra um obeso destreinado. Ora, óbvio que ele vai adorar! E vai criar uma teoria para dizer que o obeso deve competir mesmo em pior situação (pra ficar mais competitivo com o tempo, sabe-se lá quanto tempo e sabe-se lá o abalo psicológico depois, que também pode ocorrer com a indústria nascente (em algum setor) de algum emergente, principalmente através de bombardeios da mídia, como aconteceu com a indústria naval brasileira), ao invés de se resguardar, treinar e só competir quando estiver melhor preparado!

Além disso, as ponderações matemáticas desses itens do HERITAGE são questionáveis demais, para dizer o mínimo (diria até desonestas mesmo). O que eu chamo de ‘ponderações matemáticas’ são os pesos relativos de cada indicador calculado de forma numérica. Como é que se bota o tamanho da carga tributária de um país e o volume de gastos de governo (duas coisas amplamente combatidas pelos liberais) ao lado da corrupção (que é algo que nenhum cientista econômico ou social defende, seja no ponto de vista econômico ou moral) e da rapidez (eficiência) em pequenos processos (como abertura e fechamento de empresas)? Tudo isso contribui para nota total.

E mesmo com a nota total tendo substrato num cálculo totalmente questionável, que é o indicador de liberdade, você nota algumas assimetrias interessantes. Por exemplo: você vê a França lá em baixo no ranking (posição 73ª), enquanto no IDH está 20ª e no PIB per capita PPP (paridade poder de compra) em 26ª. Itália em 80ª no indicador de liberdade, mas em 26ª no IDH e 29ª no PIB per capita PPP. Espanha em 49ª em liberdade econômica, mas em 27ª no IDH e 34ª em PIB per capita (PPP). Isso se a gente for falar de desenvolvimento CONSOLIDADO. Se formos falar de crescimento do PIB, veja a posição de dois dos países que mais crescem seu PIB na última década (Turquia e Indonésia), 70ª e 105ª, respectivamente. Da Europa, o que mais cresce (ou no mínimo um dos três que mais cresce) na última década é a Polônia, que está na modesta posição de 42ª no indicador de liberdade.

Isso para não fazer outras correlações menos óbvias e mais subjetivas. Por exemplo: Cingapura, que está na 2ª colocação do ranking, tem transporte totalmente público (sem concessões à iniciativa privada) com a empresa SMRT Trains (empresa pública). As telecomunicações e a internet do país são puxadas por uma empresa pública (Singtel).
E mais, isso tudinho, depois desse texto extenso, sem levar em conta as variáveis geográficas de cada país (demografia, clima, existência de commodities, acumulação primitiva de capitais, imperialismo, guerras, condições logísticas, política, etc.).


Resumindo: muito cuidado com essas argumentações de araque na internet afora, simplórias, colando esse índice HERITAGE para tentar dar substrato a mentiras!


Wesley Sousa

6 Comentários

  1. "Tamanho de governo e abertura de mercado vá lá que realmente esteja dentro dos ideais do liberalismo, que prega a globalização como igualmente boa para todos (pobres e ricos)..."
    Ora, quem escreve estas besteiras normalmente são os mesmos que culpam o embargo para justificar a pobreza cubaba. Bugou? rs
    "... estado-mínimo, estado enxuto, etc. Agora, a qualidade do Estado de Direito e a eficiência regulatória, qual é o cidadão, pesquisador do desenvolvimento das nações ou das regiões pobres, que se opõe a isso? Não é uma bandeira do liberalismo (ou das fanzetes de “liberdade”), é uma bandeira de todas as pessoas sensatas que divagam sobre o tema!"
    Ora, então kd a crítica ao indicador ou à ideologia? Foi do nada ao lugar algum.


    "Melhorar o Estado que eu saiba sempre foi a luta dos heterodoxos, pós-keynesianos, institucionalistas e afins. Eu achava que a luta dos liberais era apenas por diminuir o Estado, não por melhorá-lo."
    Pois é, achou errado.

    "Aliás, era isso que pregava Milton Friedman quando dizia: “Se você colocar o governo para administrar o deserto do Saara vai faltar areia”. Pura bravata."
    Bostejou. Friedman estava certo. O papel do governo não é administrar, mas prover políticas públicas.

    "Mas vamos lá, haja paciência para continuar dando crédito a esse ranking depois desse começo já bem questionável."
    Questionou nada e já soltou esta bravata. Prova de como é vazio o texto.

    "No eixo de “Estado de Direito”, você observa uma ênfase ao protecionismo à propriedade privada (ok) e uma ênfase (negativa) a corrupção. Pera aí, corrupção? E quem é a favor de corrupção no judiciário? Os intervencionistas é que não! Ninguém em sã consciência é a favor de corrupção!"
    Mais uma vez tentando contestar com uma frase que só confirma que aprova o que se propõe nas idéias liberais.

    Haja paciência para continuar lendo esse texto vazio.
    Parei por aqui, perdi meu tempo, achei que tinha algum conteúdo.

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  2. Faltou o índice de corrupção, que também usa critérios totalmente questionáveis

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  3. http://dralessandroloiola.blogspot.com.br/2018/01/esquerda-e-direita-numeros-como.html?m=1

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  4. http://dralessandroloiola.blogspot.com.br/2018/01/esquerda-e-direita-numeros-como.html?m=1

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