Por Wesley
Sousa – graduando em Filosofia pela UFSJ.
Está se
tornando cada vez mais comum, dentro da literatura política, dizeres sobre “os
perigos do fascismo”, ou seja, o perigo do “autoritarismo” que está “ameaçando
a democracia” liberal. Amplos setores mais progressistas e até mesmo liberais,
a narrativa que se constroi não passa de um pânico generalizado que, na ânsia
de “explicar” o imediato fenômeno, esquecem-se do principal: qual é o objeto de
fato pelo qual dizemos?
Em
outras palavras, a democracia está “morrendo”, mas não por conta da vontade
subjetiva de alguns indivíduos[1]. Na verdade, ela
agoniza porque mesmo nos países centrais a manutenção daquilo que se pensava os
fundamentos da sociedade ocidental estão ameaçados pela crise estrutural do
capital. E isso ultrapassa, portanto, qualquer adjetivação ou desejo que deve
ser nossa “democracia” [2]
Por isso, para entender o
que é “fascismo”, não basta apenas simulacros de fraseologias ou fórmulas como
se fossem “check list” de designação do movimento da realidade material. Então,
esse texto tenta dialogar criticamente, na medida do possível, contra esse
senso quase comum do “fascismo” no Brasil. Visto que muitos “teóricos” vêm
abraçando essa tese (cá entre nós, sem fundamento para além do “liberalismo”
tacanho que se propõem).
Assim, se a própria
história e sua processualidade é urdida no devir pelo movimento dela, dessa forma
emerge-se que o nome “fascismo” carrega, de fato, um teor negativo e nefasto. A
palavra “fascismo” tem sido utilizada como arma na luta política principalmente
pela esquerda contra a direita.
Contudo, é possível compreender que o uso acrítico e desesperado, com
uma pobreza analítica enorme, tome força como se pudesse corresponder à
realidade (MACHADO, 2016, p. 28). Veja-se, é preciso, sobretudo, que a esquerda ou a ala mais
progressista da sociedade – e principalmente os comunistas, historicamente os
bodes expiatórios das perseguições frente as crises do capitalismo –, se
utilize deste conceito com o devido rigor científico, histórico e filosófico,
para não extrair supostas “vantagens políticas” de uma análise concreta junto
às relações de forças, mas para que se possa organizar concretamente
alternativas que ultrapassem o horizonte bárbaro da reprodução capitalista que
o governo Bolsonaro representa e aprofunda.
O ponto mais importante é dizer
que nem todo movimento reacionário é fascista. Nem pode sê-lo: Júlio César de
Roma era “fascista”? Alexandre, o grande, era “fascista”? Fatalmente, uma análise equivocada pode levar a um determinismo e,
pior, uma inoperância frente ao próprio capitalismo hiper-tardio brasileiro
(MACHADO, idem).
Nesse diapasão, é que Leandro
Konder, historiador brasileiro, afirma em seu clássico “Introdução ao Fascismo”
a seguinte sentença:
“Nem toda repressão – por mais feroz que seja – exercida em nome da
conservação de privilégios de classe ou casta é fascista. O conceito de
fascismo não se deixa reduzir, por outro lado, aos conceitos de ditadura ou de
autoritarismo” (KONDER, 1977, p. 4).
O autor começa seu livro
chamando a atenção para a especificidade do fascismo, que não se reduz aos conceitos
de ditadura e autoritarismo, de despotismo ou outros movimentos reacionários.
Seu argumento é que o fascismo italiano dos anos 20 e o nazismo alemão dos anos
30, de Mussolini e Hitler, seriam pioneiros de “uma nova concepção política de
direita” (KONDER, 1977, p. 5).
Dentro dessa “nova”
concepção, no Estado moderno (capitalista fundamentalmente), não foi “a
burguesia unificada que constroi a república, mas o advento da república que
permite a unificação da burguesia”. Então, podemos considerar, que os
interesses parciais das frações dominantes produzem a crise da República, “não
são apenas as estratégias das classes que afetam a configuração das formas
políticas, mas também a configuração das formas políticas afeta o movimento
estratégico das classes” (PERISSINOTTO, 2007, p. 85-86).
Por que
isso? É aqui que podemos enfatizar logo que Bolsonaro é um gestor do Capital,
um “político-burguês”. Ele está comprometido com a burguesia degenerescente dos
trópicos em conluio com a burguesia imperialista. Noutras palavras, Bolsonaro
funciona de acordo com os anseios da classe à qual sua “representação” pertence:
possui em seu ser mesmo a “vontade de potência” de um junker alemão, ou do setor mais rebaixado e retrógrado da burguesia
colonial-prussiana. Essa burguesia lança mãos de todos os meios para
estraçalhar os pobres e aviltar minorias. Isso pouco tem a ver com a
“individualidade” e com a persona desse senhor (se é vil ou bom, não é sobre
ser militarista, belicista, agressivo em sua vida pessoal). Tem a ver, pois,
com a classe social da qual é representante político e não com o indivíduo
particular somente.
O Fascismo “rejeitaria” o
capitalismo e a economia liberal? Ora, seu crescimento ocorre primeiro dentro
de corporações e sindicatos. Contudo, não só via o socialismo como seu inimigo
(foi financiado para evitá-lo), mas negava a luta de classes; jamais eliminou
capitalismo ou propriedade privada, nem distribuiu poder aos trabalhadores. Em
vez disso, o Fascismo apostava em um modelo de corporativismo, em que o Estado
tinha parceria com grandes indústrias e empresas, exatamente para alavancar o
capitalismo tardio na Itália. Essa “aliança” fascista fez com que o país
pudesse de modernizar frente o ritmo e a direção de sua produção. Tudo isso ao passo que regulava as
condições de comércio e consumo, interfere na política de preços e salários e
obriga o capital à colaboração em troca de segurança e grandes contratos.
Dito isso, não consta nada
disso no atual governo Bolsonaro: para além de seu “entreguismo” nacional, ele
também se mostra avesso às quaisquer tentativas de “parcerias” com o setor
privado para alancar o capitalismo, de fazer com ele se “modernize” verdadeiramente. Nesse aspecto macro, seria o bastante para
descaracterizar o governo como “fascista”. Se há algo que diferencia Bolsonaro
dos representantes do capital que ocuparam o Planalto até aqui é sua
truculência e “conservadorismo” mediante sua aberta apologia à violência, ao
fundamentalismo evangélico doutrinário, etc. Esta constatação deve ser seguida
de uma questão: como foi possível que sobrevivesse como força tão expressiva
esta vertente política? A resposta, todavia, pode ser mapeada no “Integralismo” –
uma forma retardatária de “nação” e “nacionalismo”[1].
Esse devir histórico, entendido no processo
da luta de classes na sociedade capitalista, consiste em um elo entre a ideia
de repetição histórica do “18 Brumário” e aquela que se lê nas entrelinhas do
Manifesto Comunista, que poderia ser traduzida no esclarecimento de como
interagem entre si o econômico, social, político e o ideológico, como
instâncias de autonomia relativa entre si. No primeiro capítulo do “18 Brumário
de Luís Bonaparte”, a análise da repetição concentra-se na formação do
imaginário social que dá sustentação ao processo político que se realimenta do
passado e na formação e nas funções da ideologia. E é nesse momento que os mais oprimidos exercem funções da ideologia
dos opressores dentro da estratificação social existente. A classe
proletária pode, em certas circunstâncias, tornar-se reacionária.
A
sociedade é salva sempre que o círculo dos seus dominadores se estreita, sempre
que um interesse mais exclusivo é imposto a um mais amplo. Toda e qualquer
reivindicação da mais elementar reforma financeira burguesa, do mais trivial
liberalismo, do mais formal republicanismo, da mais banal democracia é
simultaneamente punida como “atentado contra a sociedade” e estigmatizada como
“socialismo”. (MARX, 2011, p. 37).
No que se
refere ao Brasil de hoje, pode-se, nesse prisma afirmar que em um país que
sequer contou com um ciclo de revoluções burguesas que possui déficits
civilizatórios pantagruélicos em sua democracia rota por conta disto; um país
de proporções continentais onde houve uma série de modernizações conservadoras
desde o império até os dias de hoje, “revoluções passivas”, sem o povo e contra
os trabalhadores, em conformidade com a lógica e com as ideias das classes
dominantes e das burguesias imperialistas as quais comandam a guerra,
diretamente do epicentro da via-clássica. Nesse caso, com perdão da grosseria
categorial, Mussolini é a tragédia, Bolsonaro, a farsa. Nas palavras do
filósofo brasileiro José Chasin:
“Via prussiana, ou caminho prussiano para o
capitalismo, como a denominou Lênin, aponta para um processo particular de
constituição do modo de produção capitalista. No dizer de Carlos Nelson
Coutinho, trata-se de um itinerário
para o progresso social sempre no quadro de uma conciliação com o atraso” (CHASIN, 2019, p. 133).
A “fórmula” de “fascismo à
brasileira”, por assim dizer, pode ser entendida como integralismo esse
movimento que, segundo Chasin, “diante de um mundo em radical crise e
transformação (o colapso do liberalismo, o primeiro conflito mundial, o
surgimento do primeiro estado socialista), inserido num segmento territorial de
extração colonial, lê catastroficamente o evolver do mundo e, na sua fragilidade
colonial, propõe um retrocesso” (CHASIN, 2019, 173).
Será nessa regressão que
se apresenta no capitalismo hiper-tardio brasileiro que o integralismo (e, vale
dizer, nem isso Bolsonaro e seu governo são)[2],
ao se opor à modernização fascista na Itália, se vê, nos ideais de Plínio
Salgado – seu mentor intelectual mais conhecido – a “fórmula” que se apresenta
hoje:
“Mas Salgado salta para trás, recusa a acumulação do “verdadeiro
capitalismo” em nome precisamente da preservação da integridade humana, identificando
a totalidade real, porém limitada, do camponês e do artesão como a totalidade
humana possível. É uma proposta regressiva, mas uma proposta. É a pequena
propriedade contra o grande capital” (CHASIN, idem).
Para fins de objetividade, é preciso saber a enorme diferença fundamental e não apenas as
“semelhanças” aparentes entre fascismo e o pensamento reacionário do
capitalismo hiper-tardio brasileiro. A via-colonial brasileira, portanto, é preciso
cuidado para a via-prussiana. O primeiro pode se remeter mesmo ao Brasil, mas o
segundo, se remete a Alemanha de Otto von Bismarck. Essa advertência importante
se faz válida. Esses elementos foram as forças motrizes para o desponte do
imperialismo germânico. Outrossim, não se pode ignorar o fenômeno do
transformismo lento e gradual da nobreza Junker em estratos da burguesia, tal
como o da burguesia débil e despida de um ‘caráter jacobino’ em defensores
da reação nobiliárquica. [3]
Por outro lado, é nisso que Marília Gabriela Machado, no seu
artigo “O fascismo através do prisma gramsciano” (2016), sintetiza:
“O
fascismo foi a tendência ao imperialismo, um meio para a Itália sair do atraso global.
Foi a expressão da necessidade de sair de um plano nacional e ir para o aspecto
internacional com uma economia elevada e uma política de controle, uma forma de
resolver a crise italiana, mas que contraditoriamente, a Itália se tornou um
objeto subordinado nas mãos das forças imperialistas” (MACHADO, 2016, p. 37).
Sendo assim, Bolsonaro
está mais para um “bonapartista”, ainda que as minúcias de Bonaparte e
Bolsonaro possam, também, ter certos problemas. Bem, fica evidente que nem todo Bonapartista é fascista. Mas, com o golpe de 18
Brumário, demostra-se historicamente o papel central das formas ideológicas que
incluem a tradição, o que levou o povo de volta ao passado e impediu que eles
agissem para transformar a ordem que os oprimia. O tipo eleitor de Bolsonaro,
ainda que venha da base social mais “fodida” ou não da sociedade burguesa (mesmo
chão social que o proletário), esse “tipo” de eleitor tem sua práxis
aburguesada, corrupta, violenta e calhorda. Sua consciência, é irreversível
ideologicamente (está fora de disputa), porque este é misógino, chauvinista,
homofóbico, etc. na exata medida que é, no final e ao cabo, anticomunista. Seu
medo é, no fim das contas, do “comunismo” (seja o que for que signifique tal
termo na sua cabeça); o medo desse setor despolitizado por décadas,
assimilado por uma malta apodrecida do proletariado, à qual possui e nutre
uma consciência igualmente apodrecida e anticomunista.
Na guerra de classes, é
sempre o trabalhador que morre até que se faça uma revolução que ceife as
classes dominantes. O fascismo historicamente provou-se assim. Bolsonaro é uma
farsa que incorpora não o seu olhar para o futuro, mas o desejo mais rebaixado
e retardatário: seu apoio vem do pequeno proprietário, das milícias e dos
pobres de consciência vil e calhorda. Esse apodrecimento da consciência se
soma, a um profundo desconhecimento da história nacional, à uma alienação
famigerada sobre todas as etapas da produção e reprodução da vida objetiva, que
possui sua causalidade nas relações de produção durante o desfruto da
mais-valia. O lúmpemproletariado (como descrevi), segundo Marx, leva ao poder
“um personagem medíocre e grotesco desempenhar o papel do herói” (MARX, 2011,
p. 18).
Depois de nossa breve
exposição, desejo finalizar com uma passagem de Chasin para arrematação: o “fascismo
e integralismo se põem como objetivações distintas” (p. 163). E acrescento: governo Bolsonaro pode se movimentar
no restrito espaço de defesa do neoliberalismo e da ordem do capital, mas nunca
tomar para si a tarefa se “salvá-lo”, seja pelo “fascismo” seja por qualquer
outra coisa.
Referências
CHASIN, José. As
vias prussiana e colonial de objetivação do capitalismo e suas expressões
teóricas conservadoras: o fascismo e o integralismo. Excerto do livro O
integralismo de Plínio Salgado: forma de regressividade no capitalismo
híper-tardio. 2. ed. Santo André: Ad Hominem/UNA, 1999, pp. 567-96. Revisão
ortográfico-gramatical de Vânia Noeli Ferreira de Assunção.
KONDER, Leandro. Introdução ao fascismo. Rio de Janeiro: Edições do Graal, 1977.
MACHADO, Marília Gabriella. O Fascismo através
do prisma gramsciano. In:
Revice - Revista de Ciências do Estado, v1, n.2, Belo Horizonte, 2016, p. 27-41.
MARX, Karl. O 18 de
Brumário de Luís Bonaparte. Tradução e notas Nélio Schneider; prólogo
Herbert Marcuse. São Paulo-SP: editora Boitempo, 2011.
PERISSINOTTO, Renato
Monseff. O 18 Brumário e a análise de classe contemporânea. Revista
Lua Nova, São Paulo, 71: 81-121, 2007.
1)
Em referência
ao livro “Como as democracias morrem”, de Steven Levitsky e Daniel Ziblatt,
publicado no Brasil pela Zahar Editores.
2)
Texto de
Frederico Lambertucci https://acervocriticobr.blogspot.com/2019/10/democracia-morrendo-sobrevida-capital.html
3)
Texto de
Felipe Lustosa https://acervocriticobr.blogspot.com/2019/09/imperialismo-germanico.html
[1]
Nesse texto não
adentro sobre o Integralismo de Miguel Reale. Para quem tiver interesse em
saber sobre Reale: PINHO, Rodrigo Maiolini Rebello. O pensamento integralista
de Miguel Reale. Revista Verinotio -
Revista on-line de Filosofia e Ciências Humanas. Ano XIV. nov./2019. v. 25.
n. 2.
[2]
Como descreve Chasin no seu livro que estuda o pensamento “imanente” do
Integralismo, ele descreve: “É precisamente
sobre estas ''verdades essenciais da Terra e da ‘ação’ que Salgado busca
formular a solução política para o quadro brasileiro dos princípios da década
de 30. "Como força moral, para reerguimento de uma pátria humilhada por
largos anos de submissão passiva e dolorosa ao capitalismo estrangeiro, e como
base política de uma fraternidade absoluta entre todos os elementos humanos que
aqui se caldeiam, a mobilização e a utilização dos nossos fatores autóctones trarão
consigo a força indomável que vem das próprias raízes de um povo” (CHASIN, 1999,
p. 112)